Por Rogerio Mollica
Num momento em que se prega o respeito aos precedentes judiciais como forma de garantir uma prestação jurisdicional mais célere e segura, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional editou o Parecer 492, de 2011, que parece extrapolar a visão sobre a autoridade dos precedentes ao prever que os novos precedentes do Supremo Tribunal Federal poderiam atingir inclusive as decisões acobertadas pelo manto da coisa julgada.
A coisa julgada é um dos pilares do nosso ordenamento ao garantir segurança às relações jurídicas e impedir a etenização dos conflitos. Não faz muito tempo começou a ser mais difundida em nosso país a teoria da relativização da coisa julgada, que ainda hoje é muito controvertida tanto na doutrina quanto na jurisprudência. A teoria surgiu para evitar a eternização de injustiças, principalmente nos casos de reconhecimento de paternidade, que com a chegada dos testes de DNA puderam certificar com quase cem por cento de certeza se uma pessoa é o não o pai de uma criança. A teoria se alastrou e começou a ser aplicada para rediscutir indenizações em desapropriações e em muitas outras áreas.
A análise do Parecer 492/2011 parece evidenciar que a Procuradoria da Fazenda Nacional exacerba a referida teoria ao pretender aplicar de forma automática a relativização da coisa julgada sem a necessidade da participação do Poder Judiciário. De fato, o referido parecer versa que “os precedentes objetivos e definitivos do Supremo Tribunal Federal constituem circunstância jurídica nova, apta a fazer cessar, prospectivamente, eficácia vinculante das anteriores decisões tributárias transitadas em julgado que lhes foram contrárias.
A cessação da eficácia vinculante da decisão tributária transitada em julgado opera-se automaticamente, de modo que: (i) quando se der a favor do Fisco, este pode voltar a cobrar o tributo, tido por inconstitucional na anterior decisão, em relação aos fator geradores praticados dali para frente, sem que necessite de prévia autorização judicial nesse sentido; (ii) quando se der a favor do contribuinte-autor, este pode deixar de recolher o tributo, tido por constitucional na decisão anterior, em relação aos fatos geradores praticados dali para frente, sem que necessite de prévia autorização judicial nesse sentido.”
Mais a frente o parecer esclarece que “possuem força para, com o seu advento, impactar ou alterar o sistema jurídico vigente, precisamente por serem dotados dos atributos da definitividade e objetividade, os seguintes precedentes do STF: (i) todos os formados em controle concentrado de constitucionalidade, independentemente da época em que prolatados; (ii) quando posteriores a 3 de maio de 2007, aqueles formados em sede de controle difuso de constitucionalidade, seguidos, ou não, de Resolução Senatorial, desde que, nesse último caso, tenham resultado de julgamento realizado nos moldes do art. 543-B do CPC; (iii) quando anteriores a 3 de maio de 2007, aqueles formados em sede de controle difuso de constitucionalidade, seguidos, ou não, de Resolução Senatorial, desde que, nesse último caso, tenham sido oriundos do Plenário do STF e sejam confirmados em julgamentos posteriores da Suprema Corte.”
Assim, de acordo com o referido entendimento bastará que exista o trânsito em julgado da decisão em alguma das hipóteses supra referidas para que o Fisco automaticamente possa passar a cobrar o contribuinte e somente em relação aos períodos posteriores à referida decisão no caso dos períodos anteriores não terem sido alvo de lançamento tributário pela Fiscalização Federal. No caso da decisão que seria apta a afastar a coisa julgada ter ocorrido antes da publicação do parecer e não tendo havido lançamento tributário, o Fisco só pode voltar a exigir o tributo do contribuinte a partir da data da publicação do parecer (26/05/2011).
Apesar do parecer resguardar o direito em relação aos períodos anteriores, parece óbvio que os contribuintes não se contentarão com o afastamento automático de sua decisão transitada em julgado e recorrerão ao Poder Judiciário para resguardar os seus direitos. Mesmo antes do referido parecer já ocorriam tentativas do Fisco afastar a coisa julgada, sendo que o Judiciário vinha invalidando tal pretensão, conforme se depreende do seguinte julgado do Tribunal Regional Federal da 3ª Região:
“MANDADO DE SEGURANÇA – CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITOS – COMPENSAÇÃO AUTORIZADA JUDICIALMENTE – LANÇAMENTO DE OFÍCIO – DESRESPEITO À DECISÃO JUDICIAL. 1. Nos termos dos artigos 205 e 206 do Código Tributário Nacional, a certidão negativa só será fornecida quando não existirem débitos pendentes, e a certidão positiva com efeitos de negativa apenas quando existirem créditos não vencidos, créditos em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora, ou cuja exigibilidade esteja suspensa. 2. A impetrante fundamenta sua pretensão no fato de ter realizado compensação de créditos recolhidos a título de FINSOCIAL com parcelas da COFINS. Entretanto, a autoridade impetrada recusa a expedição da certidão negativa, ao fundamento de ter sido reconhecida pelo STF a validade das alterações de alíquotas do FINSOCIAL para as empresas prestadoras de serviços. 3. Assim, agindo ao arrepio de uma decisão judicial que certificara o direito do impetrante à compensação, a autoridade impetrada lançou de ofício crédito tributário que, uma vez não solvido, veio a obstaculizar a expedição de certidão negativa de débitos em favor do impetrante. Disso verifica-se a ilegalidade de seu ato, uma vez que, discordando a autoridade impetrada dos fundamentos da decisão que autorizou a compensação, deveria contra a mesma ter se insurgido, pelos diversos meios de impugnação de decisão judicial, ao invés de agir à revelia do Poder Judiciário, constituindo situações jurídicas já declaradas inexistentes pelo Estado-juiz. 4. Apelação e Remessa Oficial improvidas.” (g.n.)
(AMS nº 98.03.102103-6, Rel. Des. Fed. Lazarano Neto, 6ª Turma do TRF da 3ª Região , in DJF3 CJ1: 17/08/2009)
Outro não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, conforme se depreende do recente julgado da 1ª Seção prolatado sob a égide dos processos repetitivos (art. 543-C do CPC):
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. RITO DO ART. 543-C DO CPC.
CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO – CSLL. COISA JULGADA. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 7.689/88 E DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA. SÚMULA 239/STF. ALCANCE. OFENSA AOS ARTS. 467 E 471, CAPUT, DO CPC CARACTERIZADA. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL CONFIGURADA. PRECEDENTES DA PRIMEIRA SEÇÃO DO STJ.
RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.
1. Discute-se a possibilidade de cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro – CSLL do contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado declarando a inconstitucionalidade formal e material da exação conforme concebida pela Lei 7.689/88, assim como a inexistência de relação jurídica material a seu recolhimento.
2. O Supremo Tribunal Federal, reafirmando entendimento já adotado em processo de controle difuso, e encerrando uma discussão conduzida ao Poder Judiciário há longa data, manifestou-se, ao julgar ação direta de inconstitucionalidade, pela adequação da Lei 7.689/88, que instituiu a CSLL, ao texto constitucional, à exceção do disposto no art 8º, por ofensa ao princípio da irretroatividade das leis, e no art. 9º, em razão da incompatibilidade com os arts. 195 da Constituição Federal e 56 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT (ADI 15/DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, DJ 31/8/07).
3. O fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade.
4. Declarada a inexistência de relação jurídico-tributária entre o contribuinte e o fisco, mediante declaração de inconstitucionalidade da Lei 7.689/88, que instituiu a CSLL, afasta-se a possibilidade de sua cobrança com base nesse diploma legal, ainda não revogado ou modificado em sua essência.
5. “Afirmada a inconstitucionalidade material da cobrança da CSLL, não tem aplicação o enunciado nº 239 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual a “Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores” (AgRg no AgRg nos EREsp 885.763/GO, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, Primeira Seção, DJ 24/2/10).
6. Segundo um dos precedentes que deram origem à Súmula 239/STF, em matéria tributária, a parte não pode invocar a existência de coisa julgada no tocante a exercícios posteriores quando, por exemplo, a tutela jurisdicional obtida houver impedido a cobrança de tributo em relação a determinado período, já transcorrido, ou houver anulado débito fiscal. Se for declarada a inconstitucionalidade da lei instituidora do tributo, não há falar na restrição em tela (Embargos no Agravo de Petição 11.227, Rel. Min. CASTRO NUNES, Tribunal Pleno, DJ 10/2/45).
7. “As Leis 7.856/89 e 8.034/90, a LC 70/91 e as Leis 8.383/91 e 8.541/92 apenas modificaram a alíquota e a base de cálculo da contribuição instituída pela Lei 7.689/88, ou dispuseram sobre a forma de pagamento, alterações que não criaram nova relação jurídico-tributária. Por isso, está impedido o Fisco de cobrar a exação relativamente aos exercícios de 1991 e 1992 em respeito à coisa julgada material” (REsp 731.250/PE, Rel. Min. ELIANA CALMON, Segunda Turma, DJ 30/4/07).
8. Recurso especial conhecido e provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução 8/STJ.” (g.n.) (RESP nº 1.118.893/MG, 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, in DJe de 06/04/2011)
Logo, já tendo ultrapassado o prazo para o ajuizamento de Ação Rescisória e caso o Fisco entenda que ocorreram modificações fáticas ou jurídicas aptas a afastar o entendimento transitado em julgado deve procurar o Judiciário e somente após a obtenção de uma tutela jurisdicional nesse sentido empreender qualquer cobrança em relação ao contribuinte. Não parece correta essa inversão, do Fisco decidir ao seu talante a decisão judicial transitada em julgada que não deve mais prevalecer e obrigar o contribuinte, que está resguardado pelo manto da coisa julgada, a empreender gastos, contratar advogado para resguardar os seus direitos perante o Poder Judiciário.
Assim, caso o entendimento exposto no referido parecer venha a ser efetivamente aplicado pela União Federal é de se esperar que não gere aumento de arrecadação, pois todos os contribuintes que se sentirem prejudicados deverão recorrer ao Poder Judiciário para garantir os seus direitos e assim teremos mais ações judiciais e recursos, com o aumento da insegurança jurídica e a eternização dos litígios judiciais.
Rogerio Mollica é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo e sócio do escritório Cunha, Oricchio, Ricca, Lopes Advogados.