Por Gustavo Rabay Guerra
O Conselho Nacional de Justiça enfrenta um julgamento desafiador. Nele os demandados não são membros do Poder Judiciário, mas suas próprias funções constitucionais. É que sua atribuição de fiscalizar magistrados é objeto de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) no Supremo Tribunal Federal. O clima desconfortável que pairava em torno do julgamento esquentou ainda mais com as declarações da Corregedora-Nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, que incisivamente qualificou a ação da AMB como “primeiro caminho para a impunidade da magistratura, que está com problemas de infiltração de bandidos escondidos atrás da toga”. O presidente do STF e, também, do CNJ, Ministro Cezar Peluso comandou nota de repúdio em que condena “acusações levianas que, sem identificar pessoas, nem propiciar qualquer defesa, lançam, sem prova, dúvidas sobre a honra de milhares de juízes que diariamente se dedicam ao ofício de julgar com imparcialidade e honestidade”. O julgamento no STF foi suspenso e, agora, a suposta tensão entre setores ditos conservadores e progressistas do Judiciário brasileiro se instalou de forma reducionista e perigosa: não há que ou como ser contra ou favor do CNJ, mas compreender adequada e constitucionalmente seu papel.
O Conselho, em apenas 6 anos de existência, alterou profundamente o panorama dos tribunais e da própria Administração Pública brasileira. Foi o CNJ que, em uma de suas primeiras resoluções instituiu a proibição ao nepotismo nos tribunais – controle que depois se estendeu aos demais poderes, e, também, passou a cobrar estrita obediência ao teto remuneratório e aos procedimentos de convocação de juízes pelos tribunais superiores, além a regular atividade financeira e administrativa por parte dos órgãos da Justiça. Os mutirões carcerários apontaram diversas falhas no sistema judicial, expondo a fragilidade dos mecanismos e aparatos de execuções criminais. E os projetos de incentivo à conciliação e justiça restaurativa permitiram novas reflexões sobre a cultura de judicialização excessiva por que passa a “nação dos bacharéis”.
Destacados os inúmeros avanços granjeados a partir da criação e instalação do CNJ, é preciso um rigoroso exame da controvérsia estabelecida na cúpula do Judiciário. Por meio das inspeções realizadas pelo CNJ, foram investigados e punidos casos de desaparecimento de processos e manobras para evitar a obtenção de quórum para aplicação de punições a magistrados nas corregedorias de tribunais estaduais. É com respeito ao controle disciplinar que AMB e CNJ divergem. Atualmente este poder é compartilhado entre o Conselho e as corregedorias dos tribunais. Mas, para a AMB, o CNJ só estaria autorizado a investigar juízes de maneira complementar em relação aos tribunais, em casos em que houver omissão ou negligência. Muito se reclama do fato que os tribunais estaduais arrastarem por anos o julgamento de seus pares, acusados de descalabros e tantas irregularidades. No Nordeste, alvo de severas críticas, o Tribunal de Justiça de Pernambuco puniu, nos últimos cinco anos, dez juízes com a pena de aposentadoria compulsória, máxima sanção aplicável no âmbito administrativo.
Atuação respeitosa
À vista de todas as transformações por que vem passando o Judiciário brasileiro, é preciso extrair uma lição: não se deve buscar diminuir ou aumentar os poderes disciplinares do CNJ, tal qual estabelecidos pela Constituição, a partir da Reforma do Judiciário (Emenda à Constituição 45/2004). Ao se proceder uma leitura moral e constitucional do órgão, porquanto integrante do Poder Judiciário, é nítido que não se deve levar a débito sua razão-de-ser: detectar problemas no sistema judicial e promover práticas e ações que conduzam ao aprimoramento dos serviços prestados. Em diversos julgamentos, o STF já teve oportunidade de sedimentar que o CNJ só poderia ter punido magistrados acusados de irregularidades após o imprescindível pronunciamento de seus órgãos de origem. Apenas em situações de confessional omissão ou flagrante desídia, os ministros do Supremo entenderam cabível a intervenção do Conselho para julgar e punir magistrados faltosos. Das 33 punições impostas pelo CNJ a juízes, desde sua instalação, 15 foram suspensas por decisões emanadas do STF.
O dado mais relevante sinaliza para uma harmonização da disputa em curso: em todos esses casos o Supremo não precisou declarar a inconstitucionalidade de qualquer função constitucional do CNJ. A interpretação conforme a Constituição aponta para a necessária existência do Conselho sem, contudo, tornar reféns as corregedorias ao seu alvedrio. O caminho a ser trilhado não passa pela instituição de limites para a atuação do CNJ, mas racionalizar seu campo de atuação, com a preservação de um dos maiores legados que a modernidade e a democracia já pode enunciar: a independência dos tribunais.
Gustavo Rabay Guerra é advogado, mestre em Direito Público pela UFPE e professor da UFPB