Por Fabio Machado de Almeida Delmanto
Vivemos hoje no Brasil uma realidade que, infelizmente, tem causado prejuízo a muitas pessoas, em especial a trabalhadores candidatos a emprego. O que na prática tem ocorrido é basicamente o seguinte: o cidadão que foi investigado ou mesmo processado criminalmente, após ter conseguido o arquivamento do inquérito ou sua absolvição na Justiça – o que muitas vezes dura longo tempo, com inúmeros sacrifícios para o acusado e sua família, com sequelas geralmente graves na sua saúde física e psíquica –, faz uma entrevista de emprego e obtém um desempenho excelente, sendo quase certa a sua contratação. Volta para a casa feliz e conta para sua esposa e família que se saiu muito bem na entrevista, e que certamente o emprego é seu.
Sucede que, após alguns dias, recebe um telefonema da empresa que, sem justificar exatamente o motivo da decisão ou fornecendo uma “desculpa” qualquer, informa que o candidato não será contratado. O cidadão, perplexo, indaga o real motivo e, sem mesmo aguardar a resposta, já sabe o que ocorreu: a informação sobre aquele inquérito arquivado ou aquele processo em que foi absolvido “vazou”, não tendo sido preservado o sigilo previsto em lei.
A primeira pergunta que surge é óbvia: como isso tem sido possível se a lei “exige” e “garante” o sigilo das informações? A resposta, que certamente já pode ser imaginada pelo leitor, tem a ver com a obtenção de forma ilegal dessas informações sigilosas por parte de empresas ou mesmo de pessoas físicas contratantes, junto a funcionários públicos que deveriam manter em sigilo essas informações.
A segunda pergunta, menos óbvia, mas fundamental é a seguinte: as informações relativas a inquérito policial arquivado e a processo criminal do qual resultou absolvição ou declaração de extinção da punibilidade devem ser mantidas ad aeternum no banco de dados do IIRGD – Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt ?
Para responder a esta última pergunta, é preciso lembrar que a Constituição Federal de 1988 estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III), sendo garantidos aos brasileiros e aos estrangeiros residentes, dentre uma série de garantias, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X).
No âmbito infraconstitucional, o sigilo das informações também é previsto. Por analogia ao que dispõe o art. 748 do CPP (que assegura ao reabilitado o sigilo das condenações criminais anteriores na folha de antecedentes, salvo para consulta restrita pelos agentes públicos), tem-se entendido que “devem ser mantidos nos registros criminais sigilosos os dados relativos a inquéritos arquivados e a processos, em que tenha ocorrido a absolvição do acusado por sentença penal transitada em julgado, com o devido cuidado de preservar a intimidade do cidadão” (STJ, 2ª Turma, RMS 28.838/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, julgado em 01.10.2009).
Em decisão recente, o STJ, ao analisar o pedido de exclusão dos registros criminais de um cidadão que, acusado por um crime, teve o processo suspenso por 02 anos (art. 89 da Lei nº 9.099/95), e após o cumprimento das condições, teve extinta a punibilidade, julgou que “As informações relativas a inquérito e processo criminal (no qual foi declarada extinta a punibilidade) não podem ser excluídas do banco de dados do instituto de identificação porque fazem parte da história de vida do agente e, assim, devem ser mantidas ad aeternum”. Na mesma decisão, concluiu-se, ainda, que “o acesso a dados policiais pode contribuir para o esclarecimento da autoria de crimes. Em outras palavras, a polícia precisa de organização. E, ao cancelar registros policiais, o Judiciário estará contribuindo para a própria desorganização da atividade policial e, de forma oblíqua, prejudicando a própria sociedade, tornando menos eficaz o trabalho investigatório da polícia”. Todavia, ainda conforme essa decisão do STJ, resguardado está o sigilo das informações referente àquele processo, “para efeitos civis”. Porém, “para efeitos penais”, deverão ser mantidos os seus registros, pois tais dados, somente no caso de requisição judicial, poderão ser fornecidos pelo IIRGD (STJ, 6ª Turma, RMS 19.153-SP, Rel. Min. Celso Liomgi, julgado em 7.10.2010).
Verifica-se, assim, que, mesmo nos casos de inquéritos arquivados ou processos em que tenham ocorrido a absolvição, tanto a lei quanto a jurisprudência prevêem a manutenção desses registros no IIRGD, devendo o seu acesso, todavia, ser admitido somente mediante ordem judicial ou realizado por aqueles que detém o acesso a tais informações sigilosas, isto é, os órgão da Secretaria de Segurança Pública, em especial as Delegacia de Polícia Civil.
Sucede, todavia, que o sigilo das informações constantes do IIRGD tem sido constantemente violado – fato que ocorre também com o sigilo fiscal, diga-se de passagem –, o que, como visto, tem causado sérios prejuízos ao cidadão, sobretudo àquele que busca uma vaga no já concorrido mercado de emprego.
Voltando à decisão do STJ acima trazida, não se pode, data venia, concordar com o posicionamento daquela Corte, porque os registros criminais não podem nem devem servir como instrumento de investigação criminal. Isso porque, em nosso Estado Democrático de Direito, a pessoa deve ser investigada e responder pelo que fez e não pelo seu passado, sobretudo se teve o inquérito arquivado, foi absolvida ou teve declarada a extinção da punibilidade. Por isso, na doutrina moderna defende-se o “direito penal do fato” e não o “direito penal do autor”.
Qual a finalidade, então, de se manter o registro criminal de alguém que teve o inquérito arquivado, foi absolvido ou teve declarada extinta a punibilidade? Nenhuma, a não ser tornar possível a prática da discriminação por parte da sociedade, e a perseguição ad aeternum por parte dos órgãos de segurança pública.
Entendemos que tais registros são verdadeiros resquícios da ditadura militar, e fundamento algum justifica sua manutenção nos casos de arquivamento, absolvição ou extinção da punibilidade.
O que se dirá, então, de inquéritos ou processos em andamento, que sequer foram ainda julgados, tendo a favor do investigado ou acusado a garantia da presunção de inocência (art. 5º, LV)? Esses inquéritos ou processos em andamento devem ser mantidos no IIRG, mas devem ser de acesso exclusivo de juízes, sempre mediante ordem judicial fundamentada (CF, art. 93, IX). O “vazamento” das informações nesses casos é igualmente muito grave, pois permite que o cidadão “pague” pelo que ainda está sendo investigado ou processado, podendo ser absolvido ao final, o que caracteriza manifesta violação da garantia da presunção de inocência (CF, art. 5º, inciso LVII).
O cidadão que já se viu investigado ou processado criminalmente – e ninguém, inclusive o leitor, está imune de sê-lo algum dia, ainda que por um crime de pequena gravidade, como a lesão corporal no trânsito –, fica “marcado” para sempre, tal como ocorria na Idade Média, em que os condenados eram marcados a ferro ou sujeitos a mutilações, tornando eterna a sua pena por meio da “marca corporal”.
O que fazer, então, para solucionar este gravíssimo problema ?
A primeira solução seria a exclusão imediata dos registros sobre feitos criminais em que tenha havido o arquivamento do inquérito, absolvição ou extinção da punibilidade. Tal solução, todavia, não encontra amparo na 6ª Turma do STJ (embora existam decisões contrárias da mesma Corte), e decerto sofrerá forte resistência de alguns setores mais radicais da sociedade, sobretudo daqueles que pugnam por um Estado mais severo, inclusive com aqueles cidadãos que um dia se viram investigados ou processados por algum crime (Movimento de Lei e de Ordem). Para esses, o tempo ou mesmo a absolvição não conta a favor do cidadão, devendo aquele “passado criminoso” ser eternizado até os últimos dias da sua vida; tudo para que o Estado (policialesco) não perca a vigília sobre os infratores da lei penal, ainda que venham a ser inocentados pela Justiça.
A segunda solução seria impor um maior rigor na fiscalização desses registros, punindo, sem exceção, o funcionário público que violar o sigilo funcional ou o particular que se utilizar indevidamente das informações ilegalmente obtidas. Ocorre que, apesar da conduta configurar crime previsto no Código Penal (art. 325 – Violação de Sigilo Funcional – Pena – detenção, de 6 meses a 2 anos ou multa), a fiscalização sobre os funcionários públicos que têm acesso às informações sigilosas tem sido ineficiente, o mesmo se podendo dizer acerca da punição daqueles que se beneficiam dessas informações, como é o caso, por exemplo, de empresas interessadas na contratação de trabalhadores.
Uma terceira solução, que defendemos, seria limitar o acesso dessas informações criminais aos juízes, de forma que somente por decisão judicial, desde que devidamente fundamentada (CF, art. 93, IX), o IIRGD poderá fornecer informações ou mesmo certidões criminais, ficando a polícia impedida de fazê-lo sem ordem judicial. Aos órgãos de segurança pública – leia-se, polícia civil, polícia militar e polícia federal –, o acesso deve ser limitado para saber se existe mandado de prisão ou de busca e apreensão contra o cidadão (isto é, para saber se o cidadão é “procurado” pela Justiça), devendo maiores informações (sobre a existência de algum procedimento criminal em curso ou mesmo sobre o “passado criminal” do cidadão) ser prestada somente mediante ordem judicial.
O que não se pode é deixar as coisas como estão, pois cidadãos de bem que buscam empregos estão sendo constantemente discriminados e seriamente prejudicados, por fatos muitas vezes ocorridos há muitos anos ou mesmo por fatos dos quais tenham sido absolvidos ou sequer processados. É hora de mudar.
Fabio Machado de Almeida Delmanto é advogado criminalista e mestre em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da USP