Por Marcelo Semer,
ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia (*)
A incontinência verbal da ministra Eliana Calmon e a liderança corporativista do ministro Cezar Peluso recolocaram em público a discussão sobre as funções e os limites do controle externo do Judiciário. Curiosamente, os dois são os expoentes do Conselho Nacional de Justiça, o órgão encarregado do controle, que parece agora partido.
A entrevista de Eliana Calmon, na qual diz que é grave a situação do Judiciário, em razão dos “bandidos de toga”, tinha objetivo claro: reverter provável decisão do STF de explicitar a competência apenas supletiva do CNJ nos processos contra juízes. Ou seja, o conselho só poderia agir depois das corregedorias.
Com a ação ostensiva de Peluso e a forte reação da opinião pública a ela, o julgamento parece não estar tão seguro e a imprensa noticia a formulação de um acordo.
Se é certo que o CNJ foi desenhado para ser órgão de planejamento e não uma super corregedoria, de outra parte é inequívoca a tradição de omissão que atinge a vários tribunais na punição de magistrados.
A bem da verdade, e isso parece ter escapado ao debate, a omissão é especialmente sentida quanto aos membros das cúpulas.
Não é totalmente certo dizer que as corregedorias não fiscalizam nem punem juízes. Para baixo, diz o ditado, todo santo ajuda. Mas é seguro afirmar, no entanto, que os tribunais mal fiscalizam e praticamente não punem desembargadores.
O CNJ ensaiou romper com essa tradição -e foi coincidentemente o afastamento de dez desembargadores, que levou o STF a considerar a hipótese da competência subsidiária.
Cabendo ao CNJ receber e conhecer reclamações contra juízes e ainda avocar processos administrativos, como está na Constituição, reconhecer a supletividade da competência parece um exagerado formalismo.
Se a opacidade na administração da justiça, pela tradição das sessões secretas, contribuiu para a criação do órgão externo, a leniência no controle aos magistrados, ou o desigual julgamento destes, pôs em dúvida a eficácia das corregedorias.
O sigilo dos processos administrativos também ajuda a que a sociedade desconheça a existência das punições.
Ao final, o excesso de proteção acaba por provocar um efeito reverso.
A ação movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros questiona, ainda, a falta de capacidade do CNJ para editar resolução que se sobreponha à lei. Mas a ausência de uma regulamentação pode ser atribuída principalmente ao próprio Supremo que até agora não encaminhou o Estatuto da Magistratura ao Congresso.
A corrupção não é, nem de longe, o maior problema da Justiça – embora seja o que dê mais visibilidade.
A CPI do Judiciário foi combustível para a aprovação da reforma, ainda que apenas um único magistrado tenha saído de suas reuniões com o destino selado.
Mesmo no CNJ, o volume de juízes punidos é ínfimo em relação às representações formuladas, e quase insignificante diante do conjunto de magistrados.
Se a imagem do Judiciário na sociedade é a pior possível, como diz Calmon, parte dessa aversão se dá por uma inequívoca sensação de elitismo. Impressão inarredável de que certas situações são tratadas de forma distinta, de acordo com as partes que disputam.
O volume de presos pobres que superlota cadeias e as decisões garantistas dos tribunais superiores que alcançam a poucos, como as do STJ da ministra Eliana, alimentam fortemente essa má impressão.
De outro lado, o Judiciário ainda é um poder com resquícios oligárquicos – e nesse particular a influência do órgão de controle quase não é sentida.
A administração nos Estados está a cargo dos desembargadores e a atenção destes à primeira instância é mínima – que o diga a forma como o TJ carioca garantia a proteção de Patrícia Acioli.
Mas o papel do CNJ na redução desse quadro imperial tem sido pequeno. O órgão continua acreditando ser possível modernizar o Judiciário sem ao mesmo tempo democratizá-lo.
O CNJ teve uma postura pífia na única medida de democratização interna da reforma do Judiciário, a eleição de metade dos órgãos especiais. A princípio, suspendeu a eleição por liminar e depois garantiu inexistentes direitos adquiridos justamente aos membros das cúpulas.
Recentemente, com a divulgação de pesquisas sobre elevado percentual de presos provisórios, o órgão resolveu diagnosticar os atrasos. Exigiu dos juízes relação dos processos com réus presos há mais de noventa dias -mas não se preocupou em fazê-lo em relação àqueles que aguardam anos para julgamento nos tribunais.
Por fim, a própria Resolução nº 135 do Conselho, questionada no STF, perpetua um inadmissível foro privilegiado, para continuar excluindo desembargadores do alcance das corregedorias.
Se o problema do Judiciário é lidar com a igualdade, difícil crer que privilégios possam produzir bons resultados.
De fato, não é caso de mutilar nem reduzir competências do CNJ, mas apenas de exigir que o órgão as cumpra fielmente.
O Judiciário é um poder importante demais para ter sua legitimidade diminuída pelo malversar de um punhado de maus juízes, ou ficar marcado pela excessiva tolerância com eles.
Mas é imperioso que jamais reproduza as desigualdades que, por essência, deveria combater.
marcelo_semer@terra.com.br