Competência do CNJ é concorrente à dos tribunais

Por Milton Augusto de Brito Nobre

O Conselho Nacional de Justiça, cuja criação é decorrente de muitas lutas de diversos segmentos da sociedade capitaneados pela OAB, e de tão relevantes serviços prestados à República e à democracia brasileiras, caso venha a prevalecer o entendimento de que a Constituição só lhe atribuiu competência correicional e disciplinar subsidiária à dos tribunais, será transformado em uma corregedoria de segunda divisão, voltando quase tudo a ser como era antes.

Em outras palavras, essa ideia de limitar a atuação censória do CNJ aos casos em que haja inércia, incapacidade, procrastinação e simulação investigatória dos tribunais ou, ainda, a título revisional das decisões destes, fundada em construções interpretativas que vislumbram tensões entre normas constitucionais que, com todas as vênias, contêm antinomia simplesmente aparente e, portanto, superável sem qualquer necessidade de invocação ou criação de princípio, além do notório desgaste político que tem causado ao Poder Judiciário, pode terminar provocando grandes perdas.

Acontece, porém, que, embora a velocidade da vida moderna confira aos fatos certa fluidez capaz de esmaecer sua realidade, não adianta tentar desconhecê-los ou esquecê-los na interpretação jurídica, sobretudo quando são recentes.

O CNJ foi criado também como órgão de planejamento nacional do Poder Judiciário, conforme expressa a Constituição para “o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” exatamente porque o modelo anterior não funcionava. Os trabalhos congressuais que resultaram na aprovação da Emenda 45 de 2004 e a quase unanimidade das publicações que tratam da matéria não deixam margem para dúvida a esse respeito.

Ao lado disso, todos os textos contidos no parágrafo 4º do artigo 103-B da Constituição, que refletem as atribuições do CNJ, evidenciam que elas são imediatamente concorrentes com as dos tribunais e não estão represadas pela eventual omissão ou mau exercício das competências destes.

O CNJ, como a simples leitura atenta da Constituição revela, é o órgão administrativo de cúpula do Judiciário Nacional que, sujeito exclusivamente ao controle jurisdicional direto do STF, exerce competências correicionais e disciplinares concorrentes com as de todos os demais tribunais e de fiscalização financeira paralela com as das cortes de contas, sendo imperioso reconhecer que, quando o inciso III do parágrafo 4º do artigo 103-B dispõe que lhe compete “receber e conhecer reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário (…) sem prejuízo da competência disciplinar ou correicional dos tribunais”, ao contrário de estar criando uma instância recursal ou uma instituição fiscalizadora de segunda linha, quer dizer apenas que, a despeito de o novo órgão disciplinar e correicional, os tribunais não perderam suas atribuições quanto a essa matéria.

Note-se, por outro lado, que não tem nenhum cabimento invocar a tão falada autonomia dos tribunais, nos termos do artigo 96 da Constituição, para criar tensão ou confronto com as atribuições do CNJ, em especial porque essa autonomia é desenhada constitucionalmente para garantia do exercício das funções privativas destes frente aos órgãos dos demais Poderes (Executivo e Legislativo) e não, obviamente, em relação a um órgão administrativo de controle interno do Poder Judiciário Nacional (CNJ), ou seja, do próprio Poder ao qual pertencem os tribunais.

Do mesmo modo, não procede a tentativa de invocar algum reflexo do princípio federativo para reforço em especial da autonomia dos tribunais estaduais, por duas razões: uma porque, aplaudindo a doutrina majoritária, o STF na ADI 3.367-DF, sob relatoria do ministro Cezar Peluso, já fixou o entendimento de que o Poder Judiciário tem um perfil organizacional nacional que não maltrata a nossa forma federativa de Estado; e duas porque o CNJ integra a estrutura do Poder Judiciário nacional como órgão de controle interno, não tendo, por isso mesmo, qualquer cabimento a pretensão de que o papel político-jurídico exercido pelos tribunais de Justiça, em decorrência da divisão de funções nos estados membros, crie qualquer elemento diferenciador impeditivo da atuação correicional concorrente do Conselho.

Ademais, tendo o CNJ abrigo na Constituição, por via de uma Emenda, em consequência, após ter sido consagrada essa autonomia, vez que integrante do seu texto original, tem-se como de maior correção técnica, para afastar a aparente antinomia entre as regras conformadoras da competência correicional e disciplinar do novo órgão e aquelas que asseguram o exercício dessas atividades pelos tribunais, a compreensão de que aquelas deram nova modelagem a estas, de modo que, antes de serem excludentes umas das outras, ambas passaram a ser concorrentes, evidentemente com a prevalência das iniciativas do órgão administrativo de controle hierarquicamente superior.

Pretender que uma instituição administrativa encarregada pela Constituição do controle dos deveres funcionais dos juízes, à qual foi conferida a atribuição de zelar pelos princípios fundamentais da Administração Pública e a competência de conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Judiciário, bem como para avocar processos disciplinares em curso nos tribunais e julgá-los e, mais ainda, para rever, de ofício ou mediante provocação, os mencionados processos findos há menos de um ano, não possa apurar diretamente fatos ofensivos a esses deveres funcionais que cheguem ao seu conhecimento, em razão daquelas reclamações ou por outra via, e dependa, para esse fim, de ação ou omissão do tribunal a que pertencer o possível infrator, com todo respeito aos que possam assim pensar, afronta, mais do que a lógica jurídica, qualquer lógica razoável.

Com efeito, sendo o CNJ, como antes mencionado, essencialmente um órgão administrativo de controle interno, é de todo evidente que pode proceder imediatamente à apuração de condutas infracionais praticadas por magistrados ou efetivar medidas visando corrigir atos administrativos irregularmente realizados pelos tribunais que cheguem ao seu conhecimento, mormente porque — e neste ponto parece-me residir o equívoco do entendimento contrário — no âmbito do direito administrativo disciplinar, por força dos princípios da informalidade, da verdade real e da prevalência do interesse público primário, não podem ser aplicados para condicionar a atuação dos órgãos de controle, com idêntico rigor, os mesmos princípios e regras que informam e conformam o instituto da competência no processo jurisdicional (delimitação rígida, exclusividade e exclusão).

É por essa razão — de não se aplicarem no procedimento administrativo com o mesmo rigor os princípios e regras do processo judicial — que, não obstante existam instâncias administrativas diversas, se pode alegar, com maior justificativa perante uma instância especial de controle e fiscalização como o CNJ, tudo o que não foi arguido na inferior ou inicial; produzir, sem quaisquer restrições, desde que seja resguardado o direito de manifestação de todos os interessados, provas novas perante o órgão de controle; bem como este pode sempre conhecer de ofício o que sequer foi ventilado na instância inferior e, não havendo regra expressa dispondo em sentido contrário, não é possível se exigir que seja exaurida a instância cujo ato deva ser controlado, haja omissão desta ou, ainda, sua disfunção para que, só então, a controladora possa atuar.

Por todo o exposto, querer enxergar alguma tensão entre a autonomia que a Constituição assegura aos tribunais e as competências que confere ao CNJ para, sob pretexto de eliminá-la, invocar o princípio da subsidiariedade, cuja aplicação, cumpre acentuar, não é compatível com a efetividade das atividades administrativas de fiscalização e controle, soa, quando pouco, artificioso e prejudicial àquilo que todos os brasileiros almejam: um Judiciário límpido, verdadeiramente republicano e que garanta o exercício democrático do direito, vale dizer, por todos e cada um.

Tal postura, que também aparenta ser mais um fruto do generalizado recurso a princípios e à técnica da ponderação na aplicação do direito no nosso país, hoje sob críticas de parte da boa doutrina[1], inclusive por contribuir, ante a existência de indeterminações ou de confrontos ilusórios nos textos constitucionais, para elaborações retóricas adequadas à ação discursiva que possibilita extrair das normas em potência o que chamo de regras convenientes de decisão, as quais, não raro, são teleologicamente ditadas por objetivos que ultrapassam o âmbito jurídico, certamente acarretará, caso venha a prevalecer, o que não se pode descartar pelo teor dos debates, grandes perdas para a transparência e a credibilidade do Poder Judiciário.

Como certa vez bem definiu o ministro Carlos Ayres de Britto, o CNJ terminou aparecendo constitucionalmente como a longa manus do Supremo Tribunal Federal para o controle das atividades administrativas e financeiras do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados e servidores desse Poder. De fato, antes da inserção do Conselho na Carta Republicana, o colendo STF só podia intervir na administração dos tribunais ou nos problemas disciplinares dos magistrados e servidores caso algum questionamento judicial conseguisse chegar ao seu conhecimento pela via recursal. Hoje, porém, como toda a atuação administrativa e funcional dos órgãos, integrantes e servidores do Judiciário, salvo obviamente o que diga respeito ao próprio Supremo, está submetida à fiscalização do CNJ e as decisões deste, por sua vez, diretamente sujeitas ao controle jurisdicional do STF, ao qual a Constituição incumbiu, na condição de órgão máximo do Poder Judiciário Nacional, a missão de, por via judicial, rever, suspender, anular e corrigir os atos administrativos do CNJ, fecha-se harmonicamente o sistema, sem que qualquer excesso, lesão ou ameaça a direito resultante do funcionamento deste último possa escapar de apreciação da Suprema Corte que, assim, ficou mais fortalecida.

Não há, portanto, nenhum exagero na afirmação de que, na prática, a prevalecer essa incidência do princípio da subsidiariedade como limitador da atuação do CNJ, ao fim e ao cabo, quem igualmente perderá poder é o Supremo Tribunal Federal.

Aliás, a aplicação desse princípio, no meu modo de ver, só tem algum cabimento nos estritos termos propostos pelo ministro Gilmar Mendes em audiência na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, isto é, como um filtro aplicado pelo próprio Conselho, de modo a evitar que “se embaralhe com a atividade dos casos repetidos, dos casuísmos que se repetem e que são desafiadores”. Fora dessa hipótese, de autocontensão para evitar envolvimento em questões menos importantes, reclamações repetitivas e problemas que não apresentem relevância para merecer atuação de um órgão nacional de controle administrativo e disciplinar, a atuação apenas subsidiária do Conselho Nacional de Justiça no campo correicional será um retrocesso.

Para ser mais enfático, qualquer outro freio à atuação correicional direta do CNJ, estando este, como ninguém pode discordar, submetido ao eficiente controle jurisdicional imediato do STF, certamente não serve à cidadania, ao interesse público, ao Poder Judiciário e aos próprios tribunais, cujos dirigentes (inclusive corregedores de tribunais de Justiça), como tive a oportunidade de comprovar nos dois anos do meu mandato no CNJ, algumas vezes provocam a atuação disciplinar do Conselho, de modo a superar obstáculos internos de governança.

As questões concretas que motivaram as mais recentes liminares do Supremo apresentam nuances propiciadoras de soluções que até dispensariam um posicionamento definitivo sobre o alcance e os limites da competência fiscalizadora e correicional do CNJ. Não obstante, como a dúvida a esse respeito terminou envolvida por contornos político-emocionais, quanto mais rapidamente o STF firmar uma posição esclarecedora mais eficiente será para conter os desgastes que já vão longe. Afinal, ainda que essas decisões liminares sejam indicativas de uma tendência, por serem liminares e, portanto, proferidas em primeiro olhar e sem caráter terminante, podem ser nesse ponto mudadas para melhor.

A esmagadora maioria da magistratura brasileira cumpre os seus deveres funcionais e éticos, dedicando-se denodadamente a distribuir justiça nos rincões mais distantes deste país, algumas vezes sem contar com meios materiais e auxiliares minimamente adequados. Não teme, em consequência, ser fiscalizada pelo CNJ que, ninguém pode negar[2], nestes sete anos de existência tem acertado muito mais do que errado com reflexos até nos relatórios de agências internacionais, os quais, após a sua instalação, registram os grandes avanços da Justiça brasileira. Além disso, o STF está aí mesmo para corrigir qualquer equívoco. É preciso, pois, ter muita prudência e, como disse recentemente um douto ministro da Suprema Corte, lembrando a letra da música, “levar o barco devagar” e, digo eu, não mudar o rumo.

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[1] Veja-se, por todos: Humberto Ávila (“Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”, in Revista Eletrônica de Direito do Estado, Bahia: nº 17, 2009); Marcelo Neves (Entre Hidra e Hércules – princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. Brasília: UNB, 2010).

[2] E ainda que queira, pois sempre há lugar para insensatos, estará antecipadamente desmentido pelo excelente retrospecto feito ontem no CONJUR pelo Conselheiro Marcelo Nobre.

Milton Augusto de Brito Nobre é desembargador, ex-presidente do TJ-PA, professor Emérito da Universidade da Amazônia e associado I da UF-PA, integrante do Conselho Nacional de Justiça no biênio 2009/2011.

Revista Consultor Jurídico, 6 de janeiro de 2012

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