Supremo não respeita seus próprios precedentes

Por Lucas De Laurentiis

Uma autêntica Corte Constitucional tem de observar e, em regra, respeitar seus próprios precedentes. Essa é uma regra e uma prática e geral da jurisprudência, não só constitucional. A razão que está por detrás disso é simples: espera-se um mínimo de previsibilidade e segurança dos posicionamentos adotados por órgãos que detenham alto nível de poder e influência sobre a conformação dos padrões de conduta adotados na sociedade. Sistemas jurídicos em que a importância conferida aos precedentes jurisdicionais é elevada tendem a acentuar o rigor de tal regra. Por isso, dois dos comentadores mais conhecidos do Direito Constitucional americano teceram severas críticas à facilidade com que, a partir da década de quarenta, a Suprema Corte passou a “superar” seus antigos posicionamentos. Edward Corwin, por exemplo, observou que em um período de sete anos daquela década, quatorze precedentes foram reformados.

Em sua avaliação: “confissões de erro em tal proporção por parte dos guardas oficiais do controle judicial não é de molde a demonstrar sua tendência a preservar a Constituição nacional” (Corwin, 1959, p. 177). Bernard Schwartz foi mais contundente e incisivo, afirmando que: “A situação, na verdade, chegou ao ponto que um juiz da Corte Suprema, há alguns anos passados, declarou que a disposição do tribunal em revogar decisões consideradas errôneas tende a colocar as sentenças desse tribunal na mesma classe que uma passagem ferroviária restrita, que serva apenas para esse dia e esse trem” (Schwartz, 1966, p. 201).

Ao que parece, nos últimos temos, o Supremo Tribunal Federal se esqueceu completamente dessas lições. Exemplo disso aconteceu no julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade 4.078/DF. Em linhas muito gerais: tal demanda foi proposta pela Associação dos Magistrados do Brasil. O pedido era para que fosse concedida interpretação conforme a Constituição do artigo 1º, inciso I, da Lei 7.746/89, de forma a considerar que só os membros dos tribunais que não tenham “origem” no quinto constitucional poderiam integrar a lista tríplice para a composição do Superior Tribunal de Justiça. Ao que parece, algumas peculiaridades procedimentais foram solenemente desconsideradas na análise de tal demanda. A primeira delas está na contradição de se demandar a interpretação conforme a Constituição de uma norma qualquer.

Isso porque, ao menos na doutrina brasileira prevalente, há certo consenso ao se afirmar que, na interpretação conforme a constituição, a decisão a ser tomada pelo tribunal é de improcedência total do pedido de declaração de inconstitucionalidade. Para citar só um dos autores brasileiros que adotaram esse ponto de vista, veja-se a seguinte passagem de conhecida obra de Regina Maria Macedo Nery Ferrari: “A interpretação conforme à (sic) Constituição traduz a pronúncia de constitucionalidade de uma ou algumas possibilidades de interpretação, em virtude da adoção daquela que se adapta à Constituição” (Ferrari, 2004, p. 248). Como seria então possível utilizar Ações Diretas de Inconstitucionalidade, que têm o objetivo de declarar a inconstitucionalidade de leis ou sentidos normativos, para alcançar o resultado de uma interpretação conforme a Constituição, que fundamentalmente é a improcedência do juízo de inconstitucionalidade?

Mas o que importa aqui acentuar é o que ocorreu no julgamento da questão de fundo dessa ação direta. Nele, contrariando o voto do Ministro relator, o Supremo considerou constitucional o dispositivo questionado constitucional. Para tanto, o argumento utilizado foi a similitude entre tal norma e dispositivo constitucional que lhe confere fundamento. É o que se lê na seguinte passagem: “Observou-se que a regra do quinto constitucional objetivaria valorizar a composição dos tribunais judiciários com a experiência profissional colhida no exercício das funções de representante do parquet e no desempenho da atividade de advogado. Nessa contextura, asseverou-se que o preceito impugnado seria repetição (norma de repetição), não literal, do artigo 104 da CF, motivo por que não poderia conter inconstitucionalidade e tampouco comportaria interpretação plúrima” (ADI 4078/DF, Informativo 647). Essa interpretação está inteiramente de acordo com o que foi firmado na Representação de inconstitucionalidade 1.417/DF, ocasião em que, seguindo o entendimento do Ministro Moreira Alves, o Tribunal assentou que “o princípio da interpretação conforme a Constituição (Verfassungskonforme Auslegung) é principio que se situa no âmbito do controle da constitucionalidade, e não apenas simples regra de interpretação”.

Ora, se a interpretação conforme é mesmo um instrumento de controle de constitucionalidade, como alias está expresso no parágrafo único do artigo 28 da Lei 9.868/99, é difícil conceber a possibilidade de normas idênticas a parâmetros constitucionais sofrerem a incidência dessa técnica. Isso porque sua aplicação em relação a esses preceitos infraconstitucionais implicaria necessariamente a utilização da interpretação conforme para limitar o sentido dos próprios parâmetros constitucionais. Mas com isso seria também preciso admitir que normas constitucionais, até mesmo as originárias, como ocorria no caso da composição da lista do STJ, possam ser objeto de questionamento pela via das ações diretas de inconstitucionalidade. Acontece que, como todos sabem, o Supremo afirma já há algum tempo que não se admite tal modalidade de questionamento (ADI 813/DF, rel. Min. Moreira Alves, Pleno, DJ 10 de maio de 1996).

Até aí, nada a questionar. O problema é que, há menos de seis meses, o Supremo Tribunal afirmou justamente o contrário. Quem acompanhou as discussões relacionadas ao reconhecimento do valor jurídico das uniões de pessoas do mesmo sexo deve se lembrar que o pedido formulado nas ações que culminaram na modificação do entendimento anterior da Corte, que não admitia tal tipo de união, era exatamente a interpretação conforme de um dispositivo do Código Civil brasileiro (artigo 1.723, CC) que nada mais é que uma norma de repetição de um dispositivo constitucional (artigo 226, parágrafo 3º, da CF/1988). A pergunta é então: qual é a grande diferença entre esses dois casos – o da lista tríplice para compor o STJ e o da união de pessoas do mesmo sexo – que faz com que uma mesma técnica seja considerada aplicável em uma das situações e inaplicável em outra? A única resposta plausível para essa questão está na mudança do entendimento da Corte. É preciso admitir, portanto, que entre maio e novembro do ano de 2011, o Supremo mudou seu entendimento acerca do cabimento da interpretação conforme e, consequentemente, do controle de constitucionalidade de normas que integrem a redação original da Constituição Federal.

Contudo, essa conclusão denuncia duas outras possíveis mudanças de entendimento. Ou, a partir do julgamento das ações em que se discutiu a possibilidade jurídica da união de pessoas do mesmo sexo, o Supremo considera que normas constitucionais originárias também podem ser objeto das ações de controle concentrado de constitucionalidade, ou a partir de então ele considera que a interpretação conforme a Constituição é uma forma de interpretação, não de controle. Em ambas as hipóteses a Corte teria “superado” entendimentos consolidados na jurisprudência constitucional brasileira.

Não é tudo. Seria também preciso admitir que esse mesmo entendimento também já foi suplantado pela recente decisão relacionada à lista para a composição do STJ. Se tais constatações são certas, caberá ao Supremo responder: que jurisprudência constitucional é essa que, na análise de questões de extrema importância, muda radicalmente de direção, duas vezes ao ano? Mais: que guardião da Constituição é esse que, ao desconsiderar com facilidade alguns de seus mais importantes precedentes, não se dá conta da insegurança jurídica que isso acarreta?

Referências Bibliográficas

Corwin, Edward, A Constituição norte-americana e seu significado atual, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1959.

Schwartz, Bernard, Direito Constitucional americano, Forense: Rio de Janeiro, 1966.

Ferrari, Regina Maria Macedo Nery, Efeitos da declaração de inconstitucionalidade, 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

Lucas De Laurentiis é advogado, professor e consultor de empresas, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo.

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