Por Heraldo Garcia Vitta
A Lei 8.666, de 21.6.1993 é a legislação fundamental, considerada, no todo, normas gerais de licitação e contratação [cf.art. 22, XXVII, da Constituição]. Como essa legislação contém o arcabouço jurídico do instituto, ela é aplicada, de forma complementar, às licitações de ‘regime especial’ (parcerias público-privadas – Lei 11.079/04, concessão de serviço e obra públicos – 8.987/95, só para mencionar algumas).
Noutro dizer, aplica-se a Lei 8.666/93, subsidiariamente, às legislações que referem à licitação de ‘objetos específicos’. Só por esse singelo argumento, as leis de regime especial não precisariam expressar a aplicação subsidiária da Lei 8.666/93; pois decorre do próprio sistema jurídico.
Apesar disso, a Lei 12.462, de 5 de agosto de 2011, que regula o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC, com eficácia até 2016; Jogos Olímpicos e Paraolímpicos e Copa do Mundo), regulamentada pelo Decreto 7.581, de 11 de outubro de 2011, no artigo 1º, §2º, estabelece regra segundo a qual a opção pelo regime deve constar de forma expressa no instrumento convocatório, e ‘resultará no afastamento das normas contidas na Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, exceto nos casos expressamente previstos nesta Lei.’[12.462].
Parece preocupante a exclusão deliberada da Lei 8.666/93, lei geral de licitações, do sistema do RDC. Pois, haverá situações em que, certamente, deverá aplicar-se norma do estatuto geral, ante a ‘omissão da lei’ do RDC.
O simples fato de dado dispositivo da lei do RDC silenciar quanto à aplicação da Lei 8.666/93 não pode conduzir o intérprete concluir no sentido de haver intenção deliberada, proposital, do legislador e, dessa forma, buscar outros ‘caminhos jurídicos’, outras vias menos prestantes para o interesse público.
Absolutamente. Deve-se, por imperiosa necessidade metodológica, quanto à interpretação e aplicação de normas jurídicas; devido mesmo às implicações de ordem moral (princípio da moralidade administrativa); ou ao princípio da eficiência – princípio esse ligado, umbilicalmente ao da economicidade e ao da competitividade -; ou ao princípio da razoabilidade, tão encarecido pelos tribunais – aplicar, subsidiariamente, a Lei 8.666/93 – norma geral de licitações -, a qual, com certeza, traria soluções às diversas demandas proporcionadas pelo cotidiano forense.
Na verdade, trata-se de exigência constitucional, eis que o artigo 22, XXVII, da CF, determina o dever jurídico inarredável, da União, de legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, para toda a Administração Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Ora, se a própria Constituição Federal determinou a elaboração, pela entidade competente, de normas com aplicação obrigatória a todas as entidades políticas, não teria sentido lógico – e nem jurídico – a exclusão delas do RDC, “a priori”, isto é, desde logo, sem qualquer fato concreto justificador. É que, elaborada a legislação (L.8.666/93), ela tem pertinência obrigatória a todos os entes da Administração Pública (quanto aos Estados e Municípios, somente as normas gerais).
Caso contrário, haveria aberração; rasgar o Texto Constitucional, para prestigiar leis elaboradas ao arrepio daquel’outra, promulgada visando regular, frear, estabelecer regras, condutas e, portanto, controlar atos da Administração Pública.
Evidentemente, se dada norma da Lei 8.666/93 for incompatível com o regime, ou finalidade de interesse público, instituído no RDC, então, sim, ela não seria aplicada. Isso é de evidência solar.
Portanto, o Estatuto Jurídico de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 8.666/93) aplica-se, a rigor, subsidiariamente, ao Regime Diferenciado referido na Lei 12.462, de 5 de agosto de 2011; exceto se, perante a situação concreta, considerando-se a peculiaridade do regime RDC, a norma da Lei 8.666/93 seja incoerente, sem sentido, ou cause danos justamente ao interesse público protegido pela lei do RDC.
Por consequência, como regra básica, na mesma situação, o decreto que regulamenta o RDC (D.7.581, de 11 de outubro de 2011) não pode estabelecer parâmetros outros, diferentes daqueles constantes na Lei 8.666/93. Exceto se houver justificação plausível, motivada pelas exceções acima apontadas, para ‘atender’ as normas da lei do RDC.
Heraldo Garcia Vitta é professor de Direito Administrativo, mestre e doutor pela PUC-SP, e Juiz Federal em Campo Grande (MS).