Por Fábio Barbalho Leite
Estudo da FGV recentemente divulgado aponta, entre suas conclusões, que liminares em face de decisões administrativas advindas de agências reguladoras só deveriam valer se deferidas pela segunda instância (tribunais). Os argumentos para tanto são velhas e conhecidas falácias: muitas decisões das agências reguladoras penderiam de eficácia por causa das liminares concedidas pela primeira instância (o terror da “indústria de liminares” no Judiciário); decisões das agências reguladoras envolveriam conhecimento técnico especializado de difícil compreensão pela magistratura; as liminares produziriam um ambiente de incerteza jurídica dada a demora entre a decisão liminar e a decisão final de mérito.
De tempos em tempos, reaparece essa ideia esdrúxula em público e de tão repetida a sensação que fica é de um certo desconforto e ainda estranheza com uma função jurisdicional elementar e imprescindível para o Estado de Direito: o controle externo da Administração Pública. No fundo, um tanto de gente bem gostaria que as agências reguladoras fossem imunes ao mesmo quando menos ali no exercício de sua competência regulatória. É o sonho imemorial da tecnocracia, que poderia até lustrar-se dalgum classicismo reconhecendo seu débito ao delírio de Platão com seu “governo dos filósofos”.
Evidentemente, ao que parece até o próprio estudo reconhece a inconstitucionalidade de qualquer lei que pretenda criar um foro especial em razão da matéria (decisões de agências reguladoras) para os tribunais, afastando a intervenção da primeira instância no controle judicial das mesmas. De fato… De um lado, nossa Constituição (CF, art. 5º, XXXV) torna ínsita e inafastável da função jurisdicional (de qualquer instância judiciária) a competência cautelar (poder jurisdicional de expedir liminares para evitar ameaça de lesão a direito), o que impede cogitar lei que a restrinja ou a interdite quando exercida pela primeira instância judicial em face de quaisquer órgãos administrativos, inclusive agências reguladoras. De outro, sendo pacífico que o foro especial pressupõe explícita instituição por norma constitucional (embora bem se o possa reconhecer por exegese sistemática do texto constitucional), constata-se que o vigente Texto Constitucional (que mal reconhece a figura da agência reguladora, só o fazendo quanto àquela de telecomunicações, CF, art. 21, XI, embora reconheça a existência da competência regulatória da economia: CF, art. 174) não traz nenhuma ressalva ao foro comum para as ações ajuizadas em face de agências reguladoras e seus atos de qualquer natureza ou conteúdo.
Mas a argumentação em favor de um hipotético foro especial para agências reguladoras não para em pé nem quando abstraída a Constituição da discussão. A própria realidade e a própria lógica lhe cassam fundamento, ora:
i)se expedidas liminares pela primeira instância em face de atos de agências reguladoras, razoável supor que tenham sido questionadas as mesmas perante a segunda instância, que as manteve (revelando-se, portanto, a liminar o mais das vezes como uma decisão exarada não por um magistrado solitário, mas avalizada por um colegiado na segunda instância);
ii) o argumento da especialização técnica do mérito das decisões das agências reguladoras, se levado a sério como fundamento para restringir-se competência jurisdicional, por coerência deveria nos levar a mais longe: à extinção do próprio sistema democrático, pois as próprias leis em que assentadas as agências reguladoras advém, afinal, de um órgão sem especialização técnica: o Parlamento!… Ademais, com relação aos atos das agências reguladoras e suas questões técnicas, não se passa para o magistrado nada diferente do que ocorre toda vez em que, num processo, a discussão de mérito envolve tema fático que pede prova técnica (pericial): e a solução que nosso sistema jurídico a espelho de dezenas de outros adotou foi ensejar ao juiz o recurso ao conhecimento técnico de uma especialista (perito judicial).
iii) se existem muitas liminares — avalizadas pela segunda instância — sustando atos de agências reguladoras, a primeira hipótese de problema a se retirar desse fato, em rigor, é que existem muitas decisões das agências reguladoras questionáveis mediante argumentos verossímeis e não que o problema resida com a magistratura de primeira instância.
No mais, é secular a discussão sobre os limites do controle judicial dos atos administrativos pelo Judiciário. É que, junto a essa regra elementar dos Estados de Direito, comparece uma outra também igualmente relevante: o da separação de poderes (mormente em regimes presidencialistas), que implica em interditar ao juiz que se substitua às opções administrativas de conveniência e oportunidade sobre o teor de atos discricionários — tudo isso em respeito à legitimação democrática da autoridade administrativa (diretamente auferida ou por delegação do mandatário) Mas nosso direito há muito já apresentou solução adequada a esse dilema sem cogitar de afastar a competência da primeira instância judicial: revisa-se o ato administrativo por vícios formais graves e, no mérito, prevalece a opção administrativa quando ausente prova consistente (que pode ter seu ônus invertido pela autoridade judicial para incumbir à própria Administração) de seu equívoco, inverdade ou desvio de finalidade. Além disso, no nosso sistema processual, a Administração Pública, além do acesso à via recursal para tentar cassar liminares perante a segunda instância, ainda conta com um grande instrumento para afastar situações de grave risco de comoção pública: o conhecido e assaz eficaz Pedido de Suspensão de Liminares e de Sentença (Lei 8.437/92, artigo 4º; Lei 12.016/09, artigo 15).
Com tudo isso em mãos também das agências reguladoras, não soa exatamente republicano cogitar-se em restrição ao exercício do controle judicial de seus atos.
Fábio Barbalho Leite é sócio da Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados e mestre em Direito do Estado.