Os métodos de fiscalização da Receita Federal estão atrasando as importações e, por consequência, gerando processos administrativos nas delegacias de julgamento e no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Fazenda. Os importadores reclamam de classificações arbitrárias feitas pelos fiscais em relação aos produtos que entram no país. Dependendo da interpretação, a alíquota do Imposto de Importação sobe, levando consigo as de outros tributos como PIS, Cofins, IPI e ICMS sobre importações.
Foi o que aconteceu com a importação de um equipamento eletrônico de medição em obras, usado na construção civil. A importadora foi autuada em R$ 1 milhão por classificar o aparelho como unidade independente. Os fiscais da Receita entenderam que ele era parte de um sistema maior, e cobraram multa de 50% por terem de alterar a classificação escolhida pela empresa.
“O próprio laudo do perito dizia que o equipamento era independente, e que poderia ser acoplado a medidores de vapor, mas o fiscal entendeu pela posição tarifária maior”, conta o advogado Felippe Breda, do escritório Emerenciano, Baggio e Associados – Advogados, membro da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-SP e professor da PUC-SP/Cogeae. Segundo ele, as multas podem ser ainda maiores se o produto vier sendo importado com regularidade. “As multas retroagem a cinco anos. Tenho casos de aparelhos de cartões de crédito que sofreram multa de R$ 50 milhões devido à revisão aduaneira para os três anos anteriores.”
Breda conta ter pelo menos 20 casos em discussão na esfera administrativa, originários de portos como Santos (SP), Paranaguá (PR), Itajaí (SC) e Canoas (RS). Um deles trata de uma pasta química usada como fertilizante, mas que também tem aplicação na construção civil. “Pelo fato de o produto vir em pó, o fiscal achou que não era químico, mas material de serraria”, explica. Em outra situação, a multa foi aplicada porque não se sabia se uma matéria-prima usada na indústria alimentícia tinha ou não lactose, que garante isenções. “A discussão era se o ingrediente era ou não lactose.”
Quando o nível de detalhamento desce a tanto, a Receita se utiliza do trabalho de peritos para avaliar o material. Mas mesmo quando o laudo técnico confirma a classificação dada pela importadora, a interpretação não vincula a fiscalização. “O importador não pode habilitar seu próprio perito para criar o contraditório, apenas fornece documentos”, protesta Breda. Segundo ele, o argumento dificilmente convence em primeira instância, nas delegacias de julgamento, mas tem sido aceito no Carf, último grau de julgamento de recursos fiscais. “As delegacias dizem que a prova pericial não é necessária porque esse trabalho já foi feito.” Procurada, a Receita Federal, por meio de sua assessoria de comunicação, disse não comentar o assunto.
Pelo menos três casos semelhantes tem o tributarista Roberto Junqueira Ribeiro, sócio do Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados. Em um deles, envolvendo componentes de ar condicionado, a autuação retroativa chegou a R$ 2 milhões. “Eram dois produtos com nomenclaturas e códigos diferentes que poderiam ser vendidos separadamente por terem funções próprias, mas o Fisco entendeu que faziam parte de uma só máquina”, explica. “As autuações milionárias podem quebrar as empresas, que seguem por anos importando de determinada forma, sempre com a liberação alfandegária e o desembaraço autorizado.”
Segundo a Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, a pauta brasileira de importações é claramente voltada para a atividade produtiva. Entre janeiro e junho de 2011, matérias-primas e intermediários responderam por 45,4% do total. Só em janeiro de 2012, o país comprou US$ 7,8 bilhões em produto dessa natureza, praticamente o dobro de categorias como bens de capital (US$ 3,8 bilhões) e bens de consumo (US$ 3,2 bilhões), e ainda maior do que a de combustíveis e lubrificantes (US$ 2,6 bilhões). A maior parte das matérias-primas e intermediários são produtos químicos e farmacêuticos (US$ 2,2 bilhões).
Nem todas as empresas têm dificuldades em ser ouvidas nas reclassificações do Fisco. A advogada Luciana Sobral Tambellini, do Diamantino Advogados Associados, conta ter conseguido, ainda na primeira instância administrativa, nomear um assistente técnico para opinar juntamente com o perito da Receita. “Pudemos também listar quesitos, perguntas a serem feitas aos profissionais”, diz.
O caso é de uma autuação de R$ 500 mil de 2007, originária de uma fiscalização sobre importação de máquinas. A Receita reclassificou como cavilha um sistema de ancoragem de rochas para exploração minerária. “Tivemos de mostrar que cavilha era apenas um tubo metálico contendo outro em seu interior, e a máquina era muito mais do que isso, tinha tubos e andaimes de sustentação”, explica Luciana. Segundo ela, a confusão se deu porque o sistema era uma inovação tecnológica. A empresa aguarda agora que a Receita aprove o assistente técnico escolhido. A advogada diz ter cerca de 40 casos semelhantes, todos em primeira instância administrativa.
Base da interpretação
A perícia nos processos fiscais está disciplinada no Decreto 70.235/1972 — no artigo 16, inciso IV —, em soluções de consulta e em acórdãos do Carf. Em um deles, as perícias foram justificadas da seguinte forma: “em matéria de alta complexibilidade científica, como é o caso do setor de informática, a fiscalização deve se valer da perícia técnica para comprovar suas eventuais suspeitas de incorreção quanto a classificação fiscal do produto importado”.
A impossibilidade de o contribuinte interferir nesse procedimento ficou clara no acórdão 3101-000.543 da 1ª Turma da 1ª Câmara da 3ª Seção do Carf, que definiu ser a perícia “atividade fiscal da fase inquisitória do procedimento de determinação da exigência do crédito tributário, em que não há necessidade de quesitos [perguntas] por parte do importador’. Por outro lado, o Carf definiu ser “incabível a aplicação de multas de ofício relativas a exigência de imposto apurado em razão de desclassificação tarifária, quando o produto encontra-se corretamente descrito pelo importador”.
Pesquisa feita pela tributarista Luciana Tambellini na jurisprudência do Carf não retornou resultados favoráveis ao contribuinte nos casos de erro de classificação. “Não importa se o importador agiu de boa ou má-fé. Segundo as decisões, o erro é objetivo e gera, no mínimo, multa, sem prejuízo do tributo não recolhido”, diz.
Em 2009, a Solução de Divergência 6 da Receita Federal deu nova interpretação para a classificação de componentes de computadores. Segundo o entendimento, placas de vídeo passaram a ser enquadradas como “outras unidades de máquinas para processamento de dados”. Essa mudança levou o Imposto de Importação de 0% para 15% e o IPI de 2% para 16%. “Essas placas ficaram 30% mais caras ao consumidor”, afirma o advogado André Luiz dos Santos, sócio da área tributária do Tostes e Associados Advogados.
Em novembro, o escritório preparou um parecer questionando a mudança. “O entendimento da Receita não pode redundar em majoração de alíquota sem edição de lei com sentido estrito, o que viola o princípio constitucional da legalidade estrita em matéria tributária”, diz Santos. “Além disso, o contribuinte não pode se surpeender com inovações por parte de regulamentos ou interpretações da Receita ou mudanças de critério que causem ônus a quem recolhe.”
Contra o relógio
A burocracia atrapalha ainda mais quando os produtos dependem de autorização especial para entrar no país. É o caso de artigos têxteis, brinquedos e papel, por exemplo, que necessitam de licenças de importação. Algumas licenças que eram de responsabilidade direta da Secex hoje são emitidas pelo Banco do Brasil. Por lei, o órgão emissor tem até 60 dias para expedir a autorização, mas o mercado estava acostumado com prazos bem menores.
“Despachos aduaneiros, via de regra, saíam em sete dias úteis e, em alguns casos, em 48 horas”, conta Felippe Breda. Segundo ele, o Banco do Brasil tem demorado até 20 dias para cumprir a rotina. “O produto fica no porto dando causa a mais taxas de armazenagem, isso quando não se trata de mercadorias que não podem sair do contêiner, o que significa pagar mais aluguel ao navio.” A justificativa para a diferença, segundo o advogado, é a falta de material humano e de experiência aos técnicos do banco.
O tempo é a contraindicação para se levar os casos à Justiça. “As ações ordinárias são demoradas, têm sucumbência e dependem da nomeação de um perito”, explica Breda. “Não é todo juiz que tem conhecimento técnico sobre como funcionam as coisas.” Segundo ele, também é necessário que o pagamento do tributo seja feito em juízo, quando a empresa já está sofrendo uma execução fiscal. “É preciso esperar cerca de quatro anos para o término do processo. Ou seja, se unir o tempo da fase administrativa mais a do Judiciário, o processo corre em cerca de oito anos.”
Já segundo Roberto Ribeiro, a Receita, via de regra, apreende as mercadorias até que o contribuinte recolha os tributos exigidos, o que exige a intervenção da Justiça. “Segundo o Supremo Tribunal Federal, a apreensão de mercadorias não pode ser forma de coação para o recolhimento”, diz.
Na esfera administrativa, o rito processual na primeira instância leva entre 90 e 100 dias. É quando as empresas pedem a realização de prova, pedindo perícia e indicando um técnico. Negativas são levadas ao Carf, em Brasília, em recursos que podem levar, no mínimo, entre um ano e meio e três anos para serem julgados. “Na pior das hipóteses, pode levar cinco anos”, diz Breda. Segundo ele, depois das últimas reformulações na estrutura do Conselho, esses prazos vêm sendo reduzidos. “Casos de valores maiores andam mais rápido.”
Apesar do baixo índice de decisões favoráveis aos contribuintes na primeira instância, Ribeiro afirma já ter conseguido, no caso das peças para ar condicionado, a anulação de multas isoladas aplicadas no auto de infração. O caso ainda aguarda solução no Carf desde meados de 2006. “Às vezes nem é necessário perícia, basta uma interpretação da lei e uma demonstração fática de que os produtos podem ser usados de forma separada”, afirma.