Só pode advogar quem sabe ler e escrever?

Por Laura Frade

A princípio a resposta imediata parece ser sim. Então fica o convite para uma reflexão mais aprofundada. Pois a afirmativa dada de forma impulsiva nos leva a desconsiderar que “há vida para mais além da escrita e da leitura”.

Hoje as pessoas que não podem ver dispõem de tecnologia que as auxilia a viver em um mundo programado para a escrita e a leitura. Os disléxicos, entretanto, ainda não têm seus dons suficientemente conhecidos para angariarem da sociedade uma visão mais justa de suas dificuldades, que vão mais além do que apenas as letras. Entretanto, seu mundo mental rico e inovador acaba desvalorizado e subaproveitado na prevalência dos padrões paradigmáticos que adotamos há gerações.

Esse é um chamado à sociedade, mas em especial à Ordem dos Advogados do Brasil que, através da implementação de um Exame de Ordem com formatação rígida, pode estar a excluir um contingente significativo de profissionais inteligentes, originais e inventivos. Para compreender essa afirmativa, vamos analisar mais profundamente o que é, afinal, a dislexia.

A dislexia é um dom! É assim que Ronald D. Davis a define[1]. Um talento latente, que muitas vezes se apresenta sob a forma de transtorno de aprendizagem. Seus efeitos, entretanto, vão além de problemas com a leitura e a escrita, envolvem desorientação e algumas vezes problemas com a matemática. Com grande freqüência está associada ao Transtorno de Déficit de Atenção (TDA). Mas o que todos costumam observar é que o disléxico tem “uma falta de jeito”. Isso, em verdade, é a face externa de algo muito especial.

O transtorno na aprendizagem é apenas um aspecto da dislexia. A genialidade de muitas pessoas famosas que são disléxicas, não ocorreu apesar da dislexia, mas por causa dela. A mente do disléxico funciona do mesmo modo que a mente do grande gênio. O fato de terem um problema com leitura, escrita, ortografia e matemática não significa que sejam burros. A mesma função mental que produz um gênio pode também produzir esses problemas. A função mental que causa a dislexia é um dom, uma habilidade natural, um talento.

Assim, a dislexia é resultado de um talento perceptivo. Os disléxicos são altamente conscientes do ambiente ao seu redor. São mais curiosos do que a média. Pensam, principalmente, através de imagens, em vez de palavras. São altamente intuitivos e capazes de muitos insights. Pensam e percebem de forma multidimensional, utilizando todos os sentidos.

A dislexia não é resultado de uma lesão cerebral ou nervosa. Também não é causada por uma má formação do cérebro, do ouvido interno ou do globo ocular. A dislexia é produto do pensamento e uma forma especial de reagir a um sentimento de confusão que aparece quando o disléxico entra em contato com palavras que não podem ser “vistas” como imagem.

O disléxico pensa com imagens, como em um filme. Por isso, palavras que descrevem coisas reais, não causam muito embaraço a ele. É impossível a um pensador não verbal pensar em palavras cujos significados não possam ser representados em imagens, como os artigos definidos “um” e “uma”. Ler uma frase que contenha palavras que não podem ser representadas por imagens causa sintomas nos diléxicos, como tontura, desconforto, confusão. A pessoa fica desorientada. Isso significa que a percepção dos símbolos se altera e se distorce, de modo que ler ou escrever se torna difícil ou impossível.

Ironicamente, essa alteração da percepção é precisamente o mecanismo que os disléxicos consideram útil para reconhecer objetos e situações da vida real em seu ambiente antes que começassem a aprender a ler. Orientação significa saber onde você está em relação ao seu ambiente. Os seres humanos se orientam visualmente olhando o mundo com os dois olhos. O cérebro compara as duas imagens e usa a diferença entre elas para formar uma imagem mental tridimensional. Esta técnica é conhecida como triangulação. O ponto exato a partir do qual você percebe visualmente não está na lente dos seus olhos, porque estes são dois pontos diferentes. Na verdade trata-se de uma tela mental no cérebro. As pessoas têm a impressão de estar olhando o mundo a partir de algum lugar atrás de seus próprios olhos.

David ensina que há um ponto mental de percepção a que ele chama de “olho mental”. A desorientação é comum. Ocorre a todos nós quando estamos assoberbados por estímulos ou pensamentos, ou quando o cérebro recebe informações conflitantes dos diversos órgãos dos sentidos e tenta correlacioná-las. Sempre que a desorientação ocorre, todos os sentidos, exceto o paladar, são alterados.

Embora a desorientação seja comum, para os disléxicos ela é vivida bem mais além do que o habitual. Eles a usam em um nível inconsciente, a fim de perceberem multidimensionalmente. Alterando seus sentidos, são capazes de experimentar múltiplas visões do mundo. Podem perceber objetos a partir de várias perspectivas e assim obter mais informações do que outras pessoas.

Durante a primeira infância eles encontram uma forma de acessar a função cerebral da desorientação e a incorporam aos seus processos de pensamento e recognição. Os disléxicos não se dão conta do que ocorre durante a desorientação porque ela acontece depressa demais. Ela é útil quando é preciso resolver um problema de forma criativa, mas atrapalha muito no caso do uso da linguagem. Quando o disléxico precisa lidar com objetos concretos, ela é uma facilidade, mas atrapalha e causa confusão quando a linguagem verbal é o foco.

À medida que aprende a ler as confusões se amontoam. É como se ele não visse mais o que está escrito na página e sim o que ele imagina que esteja escrito. Como o símbolo não é um objeto e representa somente o som de uma palavra, que designa um objeto, ação ou ideia, a desorientação não auxiliará em sua recognição. Como o símbolo não é reconhecido, o disléxico cometerá um erro. Esses erros são sintomas primários da dislexia.

O problema para os disléxicos, na leitura, são as “palavras gatilho”: se o disléxico vai ler a frase “o cavalo pulou o muro”, já na primeira palavra a desorientação vai surgir. Isso ocorre porque “cavalo”, “pulou” e “muro” podem ser visualizados, mas “o” não tem representação visual nenhuma e deixa o disléxico confuso, atrapalhando a leitura, a memorização e a compreensão.

As desorientações da infância começam a causar erros. A criança se sente frustrada. Desenvolve “soluções” para os seus problemas, como a “Cantiga do Alfabeto”, mas elas se tornam recursos compulsivos. Não resolvem o problema. Produzem, apenas, alívio temporário.

Esses, entretanto, não são problemas sem solução. É possível ao disléxico encontrar seu ponto ótimo de orientação. Um profissional da área da psicopedagogia pode auxiliar bastante. Atestar a dislexia também é importante, pois possibilita o acesso à legislação que garante apoio aos disléxicos, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/1996, a Lei 8.069/1990 do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Deliberação do Conselho Estadual da Educação 11/1996. No Brasil, atualmente, a Associação Brasileira de Dislexia realiza exames, atesta a dislexia e tem auxiliado crianças e adultos a compreenderem melhor o quanto são especiais. Justamente por constituírem um conjunto privilegiado de mentes inovadoras e criativas é que precisam ver reconhecidos seus dons.

Entendendo o Direito e o Exame da Ordem
É necessário estudar a crença dos antigos para conhecer suas instituições. O Direito tem em sua base o culto dos mortos, o fogo sagrado, a religião doméstica. É sobre uma base familiar, o conceito de propriedade, o direito de sucessão, a indivisão do parimônio, a “gens”, a frátria, a cúria, a tribo e o culto ao fundador e os deuses da cidade que se estruturaram as regras de convívio em sociedade que chegaram até nossos dias.

Isso implica dizer que nossas práticas estão instaladas em nós de forma muito mais profunda do que imaginamos. Isso porque nossa sobrevivência exige o conhecimento a respeito do mundo em que vivemos. Para isso criamos imagens mentais do mundo externo. Essas imagens externas da realidade são introjetadas e transformadas por nossa subjetividade, reformando imagens anteriores e constituindo crenças. Esse conhecimento do mundo não é uma simples descrição ou reprodução do estado das coisas, ele emerge do contato e das trocas humanas. Esse conhecimento nunca é desinteressado.

Ao conjunto desses hábitos, crenças e pensamentos que norteiam nossas ações sem que possamos sequer perceber é que damos o nome de representações sociais. Essas representações comportam um caráter social e simbólico. Circulam nas relações humanas e são construídas no processo de socialização e transformadas no âmbito da sociedade. Estão na base da formulação das regras e das políticas sociais. São mais fortes quanto mais invisíveis.

A ideia do juiz, assim como a de mãe ou criminoso é parte dessas representações sociais através das imagens que lhe são atribuídas. Assim também há crenças a respeito de quem sejam os advogados, profissionais do Direito e agentes da área. E em nossas representações, eles precisam ler e escrever.

O mais surpreendente é que, de fato, o Exame da Ordem barra o acesso daqueles bacharéis em Direito que, na busca do exercício da advocacia, não dominam a língua pátria. Mas, agindo de forma indiscriminada, acaba por punir os portadores de dislexia excluindo da profissão um contingente criativo e genial de pessoas que teriam muito a acrescentar no mundo do Direito.

Ciência de beleza extrema, fundada em filosofia extraordinária, o Direito nasceu cercado de formalidade e ritos. Seu propósito é a justiça. O humano. O convívio social pacífico. A possibilidade de florescimento dos dons de cada um na contribuição para a constituição de um todo mais forte e enriquecido.

Daí a importância de que se abra para a diferença. E esse propósito já é parte constitutiva de seu propósito. Causa, portanto, espécie, que os exames que historicamente abrangeram defesas orais, tenham sido substituídos pela caneta e o papel, exclusivamente, quando da entrada dos profissionais do Direito na carreira. O exame da Ordem, composto atualmente por duas fases distintas, restringe a segunda etapa exclusivamente à redação, barrando a muitos disléxicos, a maioria deles, o acesso à advocacia.

É evidente que nossas representações sociais vêm contribuindo para que se associe a ideia de que um advogado deve, necessariamente, saber ler e escrever muito bem. Entretanto, e sem desmerecer a qualidade daqueles que argumentam brilhantemente, por escrito, há de se admitir que também existam aqueles cujo poder da oratória e a inteligência brilhante merecem ser acopladas no arcabouço dos profissionais que zelam pela Justiça em nosso mundo.

O propósito desse trabalho é defender que o Direito retome, em seu Exame de Ordem, essa busca pelo justo. Que incorpore o exame oral como alternativa e possa se abrir à qualidade excepcional daqueles cuja dificuldade com a leitura e a escrita é resultado do desconhecimento da própria escola e dos educadores e não uma falha de cognição. Nossa ignorância vem punindo esses seres extraordinários há tempo demais. Passa da hora de nos abrirmos a conhecer melhor a estrutura e dinâmica de funcionamento dessas mentes extraordinárias.

Este é um momento na humanidade em que se busca uma inclusão crescente e não haveria injustiça em perceber que a avaliação deve ser um processo que utiliza distintas ferramentas na tentativa de quantificar os dons de cada candidato e não uma barreira cega e desigual.

O texto foi originalmente publicado na revista Axiologia Jurídica, da Faculdade Processus de Brasília.

[1]DAVIS, Ronald D.” O Dom da Dislexia” , Rio de Janeiro: Rocco, 2004

Laura Frade Laura Frade é advogada, doutora em Sociologia e mestre em Ciência Política, ambos pela Universidade de Brasília (UnB).

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