Por Rogério Neiva
É preciso repensar a previsão de “atualidades” nos editais dos concursos públicos. A cobrança desta “matéria” tende a atentar contra a lógica administrativista-republicana que tem predominado no funcionamento e tratamento dado ao mecanismo do concurso público, bem como tem sido objeto de abusos que atentam contra o princípio da razoabilidade.
Não há como negar que o concurso público tem vivenciado um espetacular processo evolutivo. As construções e teses aplicadas ao funcionamento dos concursos talvez sejam as mais evoluídas manifestações republicanas, em termos de materialização dos avançados dos princípios constitucionais da Administração Pública, previstos no artigo 37 da Constituição Federal.
Se há um espaço no qual o Judiciário tem cercado cada vez mais o administrador público, no sentido de impor a observância do respeito à coisa pública, tem sido em matéria de concurso público. E este cenário se estabelece a partir de teses jurídicas, construções principiológicas e decisões judiciais de relevantes repercussões.
O acórdão do RE 598.099/MS, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, no qual o Supremo Tribunal Federal consolidou a tese do direito subjetivo à nomeação em favor do candidato aprovado dentro das vagas é uma verdadeira aula e motivo de orgulho de todos os brasileiros.
A referida decisão firmou suas conclusões baseadas em premissas como as seguintes: (1) “…o dever de boa-fé da Administração Pública exige o respeito incondicional às regras do edital…Isso igualmente decorre de um necessário e incondicional respeito à segurança jurídica como princípio do Estado de Direito. Tem-se, aqui, o princípio da segurança jurídica como princípio de proteção à confiança…”; (2) “…É preciso reconhecer que a efetividade da exigência constitucional do concurso público, como uma incomensurável conquista da cidadania no Brasil, permanece condicionada à observância, pelo Poder Público, de normas de organização e procedimento e, principalmente, de garantias fundamentais que possibilitem o seu pleno exercício pelos cidadãos…”; (3) “…O princípio constitucional do concurso público é fortalecido quando o Poder Público assegura e observa as garantias fundamentais que viabilizam a efetividade desse princípio. Ao lado das garantias de publicidade, isonomia, transparência, impessoalidade, entre outras, o direito à nomeação representa também uma garantia fundamental da plena efetividade do princípio do concurso público…”.
E assim existem várias outras decisões e precedentes, muitas das quais fundadas nos princípios da vinculação ao instrumento convocatório, da razoabilidade e da proporcionalidade. Por conseguinte, neste contexto no qual predomina a segurança jurídica, a isonomia, a impessoalidade e a razoabilidade, é preciso refletir sobre o cabimento da “matéria” “atualidades” nos programas dos editais.
Neste sentido, uma primeira questão relevante a ser considerada é que os programas dos editais de concursos públicos contam com matérias e conteúdos inerentes a essas mesmas matérias. Já o conceito de matéria, até por uma questão de bom senso, pressupõe algum status de ciência.
Ou seja, sem ter a pretensão de adentrar nos debates sobre paradigmas e filosofia da ciência, direito, língua portuguesa, contabilidade e raciocínio lógico são exemplos de campos do conhecimento sistematizados que contam com alguma delimitação e reconhecimento científico e acadêmico.
Porém, pensando em “atualidades”, a pergunta que se faz é: trata-se de um campo organizado do saber? Existe graduação de “atualidades”? “Atualidades” consiste em matéria de algum curso de graduação? Salvo melhor juízo, entendo que a resposta é não.
E o problema é que essa falta de academicismo ou status científico leva a um estado de insegurança por parte dos candidatos. Insegurança por parte dos candidatos que se traduz, por outro lado, em discricionariedade excessiva por parte das bancas examinadoras.
Ou seja, em função da previsão desta “matéria”, podem ser cobrados nas provas temas de história geral, história do Brasil, história da arte, geografia, relações internacionais, ciência política, literatura e de vários outros campos do conhecimento sistematizado.
Por outro lado, também podem ser cobradas questões que atentam contra o bom senso, em termos do que se espera de uma prova de concurso público. Um exemplo emblemático, que ganhou repercussão na imprensa, foi a cobrança de questão sobre o caso “Luíza no Canadá”. Em outra prova, da mesma organizadora que fez a mencionada prova, foi cobrado tema relacionado ao jogador Ronaldinho Gaúcho. Da forma como anda, logo teremos temas de novelas e outros programas de TV.
No recente edital do concurso público convocado para o cargo de agente da Polícia Federal consta em “atualidades” o seguinte conteúdo: “Tópicos relevantes e atuais de diversas áreas, tais como segurança, transportes, política,economia, sociedade, educação, saúde, cultura, tecnologia, energia, relações internacionais, desenvolvimento sustentável e ecologia, suas inter-relações e suas vinculações históricas.”
Diante de tal previsão editalícia, caberia indagar: o que é sociedade? O que pode ser cobrado sobre cultura? Caberia a pergunta sobre a “Luíza no Canadá”? E sobre futebol? Caberia perguntar qual o time do jogador Ronaldinho Gaúcho?
Assim, de modo a respeitar toda a base principiológica aplicada aos concursos públicos, considerando princípios como o da razoabilidade, e de modo a promover segurança e isonomia entre os candidatos, não fazendo do concurso público um processo totalmente aleatório e pautado por casuísmos, é preciso que os editais definam o campo do conhecimento que pretendem cobrar, se a intenção for exigir temas atuais. E assim, ao invés de prever “atualidades”, que a previsão seja, enquanto matéria, de geografia, relações internacionais, economia, história, literatura e outros que efetivamente guardam relação com o conteúdo de questões cobradas enquanto temas atuais. Obviamente que isto também pressupõe a definição precisa dos conteúdos e o respeito destes nas questões da prova.
E mais, em consideração ao princípio da proporcionalidade, é preciso que exista alguma pertinência temática entre as matérias e conteúdos do edital, considerando as atribuições do cargo.
A falta de pertinência temática pode ser considerada inclusive um desvio de finalidade. Não tenho dúvida de que se na prova de Agente da Polícia Federal for cobrada questão sobre a “Luíza no Canadá”, estará ocorrendo, em algum nível, desvio de finalidade.
Portanto, diante de todas as considerações apresentadas, o objetivo é que este debate seja realizado, bem como sejam promovidas as necessárias reflexões sobre o tema. E assim, se mantenha este evoluído e republicano tratamento que tem sido dado à temática dos concursos públicos.
Rogério Neiva é juiz do Trabalho, professor e psicopedagogo. Twitter: @rogerioneiva.