Sistematizar legislação expõe incongruências de penas

Por Alexandre Rocha Almeida de Moraes e Fernando Grella Vieira

Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo desta sexta-feira (23/3)

O editorial da Folha de 18 de março apresenta com lucidez e correção a necessidade de se restabelecer a proporcionalidade entre penas, crimes e valores mais caros à sociedade. O direito, como fenômeno histórico e social, jamais pode ser divorciado dos anseios da sociedade.

No contexto da política criminal do país, várias questões preocupam.

Uma é o elevado número de subnotificações -somente um quarto dos crimes são formalmente registrados. Existe ainda uma crise das demais formas de controle social, colocando o direito penal como única instância para solução dos conflitos sociais.

Há ainda incapacidade do Estado em executar políticas públicas suficientes e a necessidade de tutela de novos bens difusos trazidos com a Constituição de 1988 -como o meio ambiente, a ordem tributária, a segurança viária e a saúde pública.

O Estado é incapaz de fiscalizar e executar adequadamente o sistema penitenciário e a política legislativa de adoção de penas restritivas de direitos seja para crimes médios, seja para crimes de alta periculosidade.

Isso ocorre, entre outros fatores, porque crimes de pequeno e médio potencial ofensivos são assim classificados pelas penas abstratamente contempladas e não pelo valor do bem que protegem.

Desde 1988, foram formatados quase 700 novos crimes, sendo certo que somente um quarto destas infrações se sujeita, na prática, à pena privativa de liberdade.

Será que precisávamos criminalizar tanto? Não seria o caso de uma adequada ponderação de interesses para garantir às infrações mais graves a aplicação efetiva da pena privativa de liberdade?

A Folha ressalta com propriedade essas distorções: enquanto crimes como molestar cetáceos, soltar balões e falsificar medicamentos possuem elevada proteção penal, crimes graves como o cárcere privado, o homicídio, o abuso de autoridade, a prevaricação e a corrupção não possuem penas compatíveis com os bens tutelados.

É evidente que o sistema de penas deve ser construído de modo a obedecer ao escalonamento de valores historicamente construídos pela sociedade, visando a proporcionalidade entre o crime e a pena.

Mas é imperioso constatar que o direito penal cumpre uma função ética e social, protegendo valores fundamentais para a subsistência da vida em sociedade.

Na medida em que o Estado se torna omisso ou mesmo injusto, dando tratamento díspar a situações assemelhadas, acaba por incutir na consciência coletiva a pouca importância que dedica aos valores que pretende tutelar.

Em vez de se legitimar socialmente, o direito penal como hoje é concebido afeta a crença na justiça penal. Ele propicia que a sociedade deixe de respeitar tais valores, gerando um círculo vicioso. Em pouco tempo, a desilusão com a incerteza de um direito justo gera clamores por uma nova lei penal.

É preciso coerência e congruência normativa -além do domínio da dogmática e da técnica legislativa em geral, a lei deve ser funcional, fragmentária, mas eficiente no que se propõe a tutelar.

Para tanto, é preciso é preciso denunciar a falácia de que o criminoso é vítima da sociedade e reconhecer que as propostas de mudanças legislativas em matéria criminal não podem se distanciar dos interesses de um direito penal da sociedade.

Somente assim cumprimos o papel e objetivo fundamental de nossa República: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

Estamos trabalhando com esse intuito e precisamos levantar uma bandeira: a recodificação da legislação penal. Somente com a sistematização da legislação penal será possível expor as incongruências das penas, a desnecessidade de vários crimes e proteger suficientemente a sociedade.

Alexandre Rocha Almeida de Moraes é promotor de Justiça do MP-SP.

Fernando Grella Vieira é procurador-geral de Justiça de São Paulo.

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