PPP no Judiciário é ameaça à imparcialidade

Por Wadih Damous

Dentre os inúmeros assuntos relevantes na pauta do Conselho Nacional de Justiça está a discussão acerca da possibilidade de o Poder Judiciário se valer do instrumento administrativo denominado Parceria Público-Privada (PPP), especialmente com a finalidade da construção de prédios para abrigarem órgãos judiciais.

A discussão surgiu a partir de uma consulta realizada pela Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Maranhão. Segundo o requerimento, tal medida teria como finalidade suprir a falta de recursos do Poder Judiciário maranhense, com a possibilidade de investimento da iniciativa privada. Em contraprestação, o investidor receberia 30% dos valores arrecadados para o Fundo de Modernização do Tribunal de Justiça do Maranhão.

A consulta conta com 10 votos contrários, o que já constitui maioria do Plenário do CNJ. No entanto, como o julgamento ainda está em aberto e os votos podem ser modificados, decidiu-se, por sugestão do conselheiro Bruno Dantas (que ainda não havia votado), criar grupo de trabalho (a ser presidido por esse mesmo conselheiro, por deliberação de seus colegas), para melhor analisar essa questão. Além dele e dos conselheiros Jorge Hélio e Sílvio Rocha, a comissão convidará e dialogará com administrativistas renomados, que darão suas opiniões sobre a matéria.

A proposta, do ponto de vista pragmático, é interessante. E também é louvável a iniciativa do Conselho em promover um debate mais amplo, com a participação de autoridades no assunto. É notória a falta de estrutura generalizada do Poder Judiciário, tanto do ponto de vista material, quanto humano (falta de magistrados em comparação com o número de processos). Mas resta saber se a proposta sobrevive a uma análise jurídico-constitucional.

A primeira premissa a ser fixada é a de que o Poder Judiciário exerce uma das atividades-fim do Estado, que é a prestação da Justiça, o exercício da Jurisdição. Uma das características fundamentais desse Poder, ou dessa função de Estado, é a indelegabilidade. Apenas os servidores públicos devidamente habilitados e que, por essa habilitação, passam a representar o Poder Judiciário, podem exercer a Jurisdição.

Outra premissa essencial é a de que o Poder Judiciário, mais do que qualquer outro, deve ser protegido de qualquer intrusão externa, que seja capaz, ainda que potencialmente, de afetar a imparcialidade no exercício de sua atividade-fim.

Por outro lado, é evidente que, no âmbito do Judiciário, se exercem atividades-meio, como, por exemplo, a gestão dos espaços físicos, de pessoal etc. E a criação da estrutura física e material é parte dessa atividade. Mas, ainda assim, a maioria já formada no Conselho Nacional de Justiça está com a razão, ao negar a possibilidade da utilização das PPPs no âmbito daquele Poder.

Em primeiro lugar, a lei 11.079/2004 estabelece que as parcerias público-privadas se concretizam por meio de contrato de concessão, que desembocará em cobrança de tarifa por algum serviço público que venha a ser prestado, por meio da parceria (artigo 2º, parágrafos 1º, 2º e 3º).

Além disso, a lei veda que a parceria tenha como objeto simplesmente a execução de obra pública (artigo 2º, parágrafo 4º, inciso III).

Sendo assim, só seria possível a aplicação do instituto em discussão no Judiciário se, por exemplo, após a construção de um novo fórum, fosse concedida ao parceiro privado a administração dos cartórios, direcionando-lhe parte dos emolumentos judiciais (como pretende o TJ-MA).

Mesmo que se mantenha a função primária do Poder Judiciário intocada (eis que indelegável, como, aliás, reitera a própria lei das PPPs no artigo 4º, inciso III), ainda assim haveria potencial risco de atentado à sua imparcialidade. É que as atividades cartorárias, muito embora não se confundam com o exercício da função jurisdicional em si, servem de apoio direto a esta. Não é à toa que a Constituição de 1988 acabou com os cartórios judiciais privados.

Além disso, a relação de parceria criada com o ente privado poderia, em tese, afetar a imparcialidade nos julgamentos dos processos em que venha a figurar como parte, e que tramitem perante o respectivo Tribunal.

Em suma: a ideia, do ponto de vista pragmático, é boa, dada a notória falta de recursos materiais do Poder Judiciário. Mas a exigência de imparcialidade desse Poder é tão relevante, tão fundamental para sua legitimidade democrática, que não se pode admitir qualquer possibilidade de mácula, ainda que potencial. A eficiência é um imperativo quando se trata da prestação jurisdicional, mas não pode ser alcançada ao custo de suas características fundamentais.

Wadih Damous é presidente da OAB-RJ.

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