O advento da Lei n. 12.403, de 4 de maio de 2011, segundo se percebe já pela sua ementa: “Da Prisão, das Medidas Cautelares e da Liberdade Provisória”, impôs uma ampliação do Título do IX do Código de Processo Penal (CPP), antes restrito a apenas dois desses tópicos: “Da Prisão e da Liberdade Provisória”.
As modificações trazidas pela Lei n. 12.403/2011, no entanto, representam bem mais do que isso, pois municiam o juiz criminal de novos instrumentos capazes de restringir a liberdade de forma mais gradativa ou proporcional, razão pela qual, se bem aplicadas às medidas cautelares pessoais, essas se afigurarão suscetíveis de propiciar melhor equilíbrio ao binômio “Segurança Pública e Garantismo Penal” ou, então, entre a prisão e a liberdade [1].
De qualquer forma, o legislador ordinário se preocupou em deixar claro quais os requisitos para o manejo dos novos institutos, consoante se observa da nova redação conferida ao art. 282 do CPP, dispositivo ao qual foram acrescentados novos incisos e parágrafos. Sob esse enfoque, aliás, parece importante destacar, já de início, que as medidas cautelares somente podem recair sobre o indiciado ou acusado se necessárias à aplicação da lei penal, à instrução criminal e ao afastamento da prática de infrações penais, desde que adequadas à gravidade do crime, às circunstâncias do fato e às condições pessoais do acusado.
Ora, a partir da leitura dos pressupostos acima mencionados, já é possível perceber que a intenção do legislador é alcançar uma maior adequação entre os meios – adequados à gravidade do crime, às circunstâncias do fato e às condições pessoais do acusado –, e os fins: maior eficácia na aplicação da lei penal e na instrução criminal ou, então, para evitar a prática de infrações penais.
Aqui, contudo, parece importante indagar se tais alterações encontram eco nos ditames constantes da Constituição.
Neste sentido, cumpre lembrar que o art. 1º da Lei Maior de 1988, grosso modo, estabelece que o Brasil se organiza como um Estado Democrático de Direito, o que evidencia um plus sobre o Estado de Direito [2]– proveniente da concepção liberal –, mas também sobre o Estado Social, que teve como marco a Constituição de Weimar de 1919, mas, cujas diretrizes foram distorcidas – o absolutismo do Estado Monarca, foi substituído pela praticas autoritárias ou ditatoriais do Estado Fascista e Nazista –, até que superadas pelas ideias hoje, felizmente, encampadas pelo Estado de Direito Democrático [3].
Ora, a mudança quanto à concepção do Estado acaba por se refletir tanto no âmbito das regras de conduta [4], quanto na esfera das normas processuais, haja vista a busca pelo equilíbrio na aplicação da segurança pública ou social [5], agora qualificado pelo valor democracia, o que se afigura relevante não apenas para questões hermenêuticas, mas na busca de soluções a serem adotadas no caso concreto, pois quaisquer condicionantes ao exercício do direito constitucional à liberdade devem respeitar a efetividade das garantias magnas [6].
Ou seja, no Estado de Direito Democrático, cujas concepções ultrapassam o Estado de Direito e a igualdade meramente formal, o que se visa quando da aplicação da lei é a realização da igualdade material ou substancial, daí porque em nome dessa isonomia real, necessariamente, deve haver uma maior proporcionalidade [7] mediante à consideração dos critérios ou parâmetros ora explicitados pelo legislador ordinário.
Em conclusão, não é possível desconsiderar o caráter magno do direito à liberdade, cuja importância é retratada, direta e indiretamente, em várias passagens do art. 5º da CF. Tampouco é possível esquecer o papel das correspondentes garantias – e, dentre elas, “ninguém será considerado culpado até o transito em julgado da sentença penal condenatória” e “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança” [art. 5º, LVII e LXVI da CF]. Daí porque a prisão preventiva se mostra como exceção e não a regra [art. 282, parágrafo 6º do CPP], bem como que o manejo das medidas cautelares somente se justifica, face aos princípios da legalidade e finalidade, nos casos necessários e expressamente previstos – aplicação da lei penal, instrução criminal e impedimento à prática de infrações penais –, desde que observados os parâmetros ditados pela razoabilidade e proporcionalidade.
Parâmetros que, todavia, decorrem da gravidade do crime, das circunstâncias de fato e das condições pessoais do agente [artigo 282, incisos I e II do CPP], o que, aliás, não discrepa, ao contrário, implementa ou realiza a igualdade material, por isso mesmo também consentânea com os ditames do Garantismo Penal [8], inclusive no caso de se proceder a aplicação cumulativa das novas cautelares face às peculiaridades do caso concreto [9], embora aquelas sempre essencialmente atreladas ao equilíbrio entre meios e fins [artigo 282, parágrafo 1º do CPP], salvo se esgotada ou incabível sua utilização – e, mesmo, a já mencionada cumulação –, deva o juiz criminal determinar a prisão preventiva nos casos e atendidos os requisitos legais expostos no artigo 311 e seguintes do CPP, grosso modo, em obséquio à ordem pública, à ordem econômica. Ou, então, quando houver prova de existência do crime e indício suficiente de autoria.
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[1]“[…] Observa-se, então, o natural confronto entre a liberdade e a segurança, quando se trata de aplicar, na prática, as normas penais e processuais penais. Porém, […] tem-se que a liberdade é de suma importância desde que não deva abrir espaço para aplicação da pena – sanção fixada em decisão definitiva, respeitado o devido processo legal. […]
O sistema é harmônico, mas estruturado em regras mínimas de coerência e eficácia. De início, pois, vale lembrar que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória [art. 5º, LVII, CF]. É a presunção de inocência, valor absoluto, quando se trata de Estado Democrático de Direito.
Assim, sendo, […] transfere-se ao Estado, por seus órgãos constituídos, voltados à investigação, acusação e julgamento, o ônus de provar a culpa do réu. Considerando-se ser o acusado inocente […], não deve ser recolhido ao cárcere antes da hora. Disso deduz-se, com lógica, ser a prisão cautelar um momento excepcional na vida do indiciado ou réu.
A liberdade individual é a regra; a prisão cautelar, exceção.” [NUCCI, Guilherme de Souza. Prisão e liberdade. São Paulo: RT, 2011, p. 13-14].
[2] “Na origem […], o Estado de Direito era um conceito tipicamente liberal […], cujas características básicas […]: a) submissão ao império da lei […] nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do […] povo-cidadão; b) divisão de poderes que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure […] a independência e a imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; c) enunciado e garantia dos direitos individuais. Essas exigências continuam a ser postulados básicos do Estado de Direito, que configura uma grande conquista da civilização liberal.” [SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9ª ed., São Paulo: Malheiros, 1993, p. 103].
[3] “Uma nova concepção de Estado de Direito decorre da insatisfação social com o Estado Liberal de Direito […].
[…] Assim, o qualificativo `social´ tornou-se exigência para uma adequação do modelo de Estado de Direito […], principalmente, diante da degradação da qualidade desta vida, na sociedade do final do século XIX e início do século XX, com uma concentração de riquezas em face de uma enorme classe trabalhadora empobrecida e desempregada, fruto da revolução industrial.
[…] Este novo modelo, o Estado Social de Direito, acabou por assumir regime antagônicos de governos sobre o equívoco de manter social como qualificador do Estado e não do Direito, possibilitando o convívio sob o manto do Estado Social de Direito de sistemas ditadores de política de capital, neofascistas, por exemplo, na mesma medida de sistemas democráticos.
[…] Diante disto, é fácil reconhecer a necessidade de um Estado de Direito que, mesmo com um sistema rígido de legalidade, priorize os direitos, as liberdades e as garantias individuais, utilizando-se das políticas sociais, econômicas e culturais na busca do direito à personalidade individual, em uma concepção mais adequada de Estado Justiça.
[…] A democracia como um conceito histórico, não deve ser considerado na formação do Estado de Direito como um elemento de natureza política, mas como uma reafirmação dos direitos e garantias individuais que, por meio da legalidade, o Estado institui atendendo à conquista da soberania popular. O poder é exercido de forma indireta, mas sempre através e em proveito do povo. [PEREIRA, José Langroiva. Proteção jurídico-penal e direitos universais – tipo, tipicidade e direitos universais. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 34-37].
[4] A preocupação quanto aos bens jurídicos protegidos na esfera penal ou processual penal é antiga e repercute na sua própria denominação, senão vejamos:
“[…]. A expressão Direito Penal é de origem recente. Segundo provas, foi empregada pela primeira vez no século XVIII. A expressão Direito Criminal é mais antiga, porém, está perdendo a atualidade.
Argumenta-se que a locução Direito Criminal é mais compreensiva, abrangendo o crime e suas consequências jurídicas, ao passo que a denominação Direito Penal dá a ideia de pena, deixando o lado o instituto das medidas de segurança. […]
Vários nomes tem sido escolhidos pelos doutrinadores: Direito Protetor dos Criminosos – Dorado Monteiro; Direito de Defesa Social – Martinez; Princípios de Criminologia – De Luca; Direito Repressivo – Puglia.
Não obstante a existência de discussão a respeito, a expressão Direito Penal é a mais generalizada.” [JESUS, Damásio E. de. 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 4]
[5] “A história do processo penal é marcada por movimentos pendulares, ora prevalecendo a idéia de segurança social, de eficiência repressiva, ora predominando pensamentos, de proteção ao acusado, de afirmação e preservação de suas garantias. Essa diversidade de encaminhamentos são manifestações naturais da eterna busca de equilíbrio entre o ideal da segurança social e a imprescindibilidade de resguardar o indivíduo de seus direitos fundamentais.
Essa dicotomia é, em regra, representada pelo confronto entre a eficiência e garantismo no processo penal. Em uma visão moderna, esses dois vetores não se opõem, pois não se concebe um processo penal sem garantismo.” [FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed., São Paulo: RT, 2010, p. 19].
[…] Neste sentido, o garantismo, como técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos, voltado a determinar o que estes não devem e o que devem decidir, pode ser bem concebido como a conotação [não formal, mas] estrutural e substancial da democracia: as garantias, sejam liberais ou sociais, exprimem de fato os direitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes do Estado, os interesses dos fracos respectivamente aos dos fortes, a tutela das minorias marginalizadas ou dissociadas em relação às maiorias integradas, as razões de baixo relativamente às razões do alto.” [CHOUKR, Fauzi Hassan. O que é garantismo in Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 693].
Por exemplo, ciente de que o indiciado ou acusado, em virtude circunstâncias relacionadas ao fato, não deve se encontrar com uma pessoa ou frequentar determinado local para evitar o risco de novas infrações, o juiz criminal poderia determinar, cumulativamente, a aplicação da proibição de acesso ou frequência, mas também a vedação de manter contato com pessoa determinada, tal como previsto nos incisos II e III do art. 319 do CPP.
[6] “Firmada a Magna Carta, procurou João Sem Terra livrar-se dela, solicitando a suspensão de seu cumprimento ao Papa, e vários séculos se passaram antes de que seus princípios fossem respeitados. […]
[…]
O campo estava preparado, portanto, para o surgimento da Reforma, cujo princípio fundamental foi a liberdade de consciência, de Rosseau, do enciclopedismo e da Revolução Francesa. […] A Revolução Francesa e a Independência Americana, através de declarações formais de direitos, consagraram, então, a experiência inglesa da Magna Carta e do Habeas Corpus Act de 1679, especialmente quanto à consciência de que os direitos somente tem consistência se acompanhados dos instrumentos processuais para sua proteção e efetivação. [GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 30].
[7] “O princípio da proporcionalidade […], foi desenvolvido inicialmente na Alemanha, sob inspiração de pensamentos jusnaturalistas e iluministas, com os quais se afirmaram as ideias de que a limitação da liberdade individual só se justifica para a concretização de interesses coletivos superiores, e, no plano do Direito Administrativo, de que o exercício do poder polícia só estaria legitimado se não fosse realizado com excesso de restrição a direitos individuais. Na Alemanha, tais ideias influíram, principalmente, após a 2ª Guerra Mundial, na doutrina e na jurisprudência, sendo sistematizado o princípio da proporcionalidade, denominado, naquele país, de princípio de proibição do excesso. […]
Há vertente doutrinária que identifica o princípio da proporcionalidade com o princípio da razoabilidade, cuja origem remonta à garantia do devido processo legal […]. Outros, entretanto, distinguem proporcionalidade e razoabilidade. […] Para Luiz Virgílio Afonso da Silva a `regra da proporcionalidade diferencia-se da razoabilidade, não só pela sua origem, mas também pela sua estrutura´; origina-se a primeira da jurisprudência alemã e a segunda da jurisprudência inglesa ou norte-americana; a proporcionalidade tem uma estrutura racionalmente definida, enquanto a razoabilidade é `um dos vários topoi dos quais o STF se serve, ou uma simples análise de compatibilidade entre os meios e os fins. […]
Há intima ligação entre o princípio da proporcionalidade e o princípio da isonomia, pois, embora tenham objetivos e fins próprios, tangenciam-se principalmente no fato de que para haver igualdade, devem ser superadas as desigualdades dos indivíduos e especificados os critérios para determinar em que medida as distinções entre eles podem ser admitidas. […]” [FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit., p. 49-51].
[8] “[…] Precisamente, se a regra do Estado liberal de direito é que nem sobre tudo se pode decidir […], a regra do Estado social de direito é aquela a qual nem sobre tudo se pode não decidir, nem mesmo pela maioria: sobre questões de sobrevivência e subsistência, por exemplo, o Estado não pode não decidir, mesmo se não interessarem à maioria. […]
[…] Neste sentido, o garantismo, como técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos, voltado a determinar o que estes não devem e o que devem decidir, pode ser bem concebido como a conotação [não formal, mas] estrutural e substancial da democracia: as garantias, sejam liberais ou sociais, exprimem de fato os direitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes do Estado, os interesses dos fracos respectivamente aos dos fortes, a tutela das minorias marginalizadas ou dissociadas em relação às maiorias integradas, as razões de baixo relativamente às razões do alto.” [CHOUKR, Fauzi Hassan. O que é garantismo in Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 693].
[9] Por exemplo, ciente de que o indiciado ou acusado, em virtude circunstâncias relacionadas ao fato, não deve se encontrar com uma pessoa ou frequentar determinado local para evitar o risco de novas infrações, o juiz criminal poderia determinar, cumulativamente, a aplicação da proibição de acesso ou frequência, mas também a vedação de manter contato com pessoa determinada, tal como previsto nos incisos II e III do art. 319 do CPP.