Considerável parcela da comunidade jurídica professa um discurso corrente de que, no Brasil, um dos grandes males do sistema de justiça civil seria o da profusão de recursos.
Ainda que não se concorde, às inteiras, com esse entendimento, reconhece-se a necessidade de redimensionamento da utilização, entre nós, dos meios de impugnação das decisões judiciais.
As reformas propostas, todavia, devem ser ponderada e razoavelmente consideradas, não se podendo, em favor da celeridade, sacrificar garantias constitucionais do processo, resultantes de conquistas históricas das sociedades democráticas.
Ressalte-se que a precariedade do debate processual estabelecido perante o órgão jurisdicional a quo é fator de estímulo à recorribilidade, por gerar o inconformismo da parte sucumbente especialmente em decorrência de nossa prática judiciária ainda não ter assimilado a garantia do contraditório em toda a sua extensão, abrangendo, os direitos de informação, de manifestação e de as partes verem seus argumentos considerados.
Em outros sistemas jurídicos, percebeu-se que a tibieza do contraditório pela falta de efetivo debate, especialmente no juízo de primeiro grau, provoca a necessidade do uso de recursos, uma vez que se aumenta a proporção de erros judiciais, bem como, instiga a parte vencida a submeter os seus argumentos para que sejam suficientemente analisados.
Ao passo que, quando a decisão é precedida por um contraditório dinâmico, diminuem os recursos, ou, ao menos, atenuam-se, consideravelmente, as chances de êxito, possibilitando que técnicas de julgamento abreviado (por exemplo: julgamento liminar pelo juízo monocrático: relator – art. 557) ou de executividade imediata da sentença[1] não contrastem com as garantias constitucionais do processo, ao mesmo tempo que viabilizam a realização mais célere dos direitos juridicamente tutelados. Frise-se que esse primeiro debate, com respeito efetivo aos princípios constitucionais do processo, com uma oralidade ou escritura levada a sério, garante uma participação e influência adequada dos argumentos de todos os sujeitos processuais. [2]
Em outras palavras, uma das soluções para a mitigação da importância técnica dos recursos, é a de se reforçar a cognição de primeiro grau e ampliar a participação das partes.[3]
No Brasil, o Agravo de Instrumento é o recurso que protagoniza o movimento reformista da legislação processual civil. Nas duas últimas décadas, contou esse recurso com enorme empenho do legislador em redimensiona-lo, uma vez que o acusam, com recorrência, de ser um dos principais responsáveis pelas elevadas taxas de congestionamento dos processos nos tribunais.
A situação não se modifica no Projeto de reforma global de nossa legislação processual civil, em curso na Câmara dos Deputados, desde 15 de dezembro de 2010. No PL 8046/2010, destinado à edição de um Novo Código de Processo Civil, as mudanças no regime jurídico da recorribilidade das decisões interlocutórias despertou intenso e caloroso debate.
A proposta originária, apresentada pela Comissão de Juristas nomeada para elaboração do Anteprojeto do NCPC foi mantida no PLS 166/2010, e pelo que se constata nos debates legislativos e nas emendas parlamentares até então apresentadas, a tendência é de que o regime do Agravo de Instrumento, tal como concebido no anteprojeto, seja mantido pela Câmara dos Deputados.
Relativamente a essa matéria, a maior inovação trazida pelo projeto do Novo Código de Processo Civil é a mitigação do regime das preclusões, pois, no CPC vigente, precluem as decisões interlocutórias não impugnadas pelo recurso de Agravo, retido ou de instrumento.
As sucessivas modificações do Código de Processo Civil, no que diz respeito ao agravo de instrumento, apesar do aprimoramento técnico do ordenamento jurídico processual, não implicou em diminuição do número desses recursos, fazendo, reverberar, no Projeto do NCPC, o clamor por soluções que reduzam sua utilização.
O projeto, aparentemente, viria para modificar sensivelmente a disciplina do recurso de agravo de instrumento, ao estabelecer hipóteses numerus clausus de seu cabimento, que seriam, a priori, quando a decisão interlocutória: conceder ou negar tutela antecipada; versar sobre o mérito da causa; rejeitar a alegação de convenção de arbitragem; decidir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica; negar o pedido de gratuidade da justiça ou acolher o pedido de revogação desse mesmo benefício; determinar a exibição ou posse de documento ou coisa; excluir litisconsorte; limitar o litisconsórcio; admitir ou não admitir de intervenção de terceiros; versar sobre competência; determinar a abertura de procedimento de avaria grossa; indeferir a petição inicial da reconvenção ou julgá-la liminarmente improcedente.
O modelo proposto não está imune a uma série de criticas consistentes, como, v.g., a de que o rol casuístico de hipóteses de cabimento de agravo de instrumento não abarca todas as situações que evitariam a futura anulação da sentença, criando idas e vindas do procedimento. Afirma-se, também, que o projeto não diminuirá o numero de agravos de instrumento, eis que, estatisticamente, o grande percentual desses recursos versam exatamente sobre as hipóteses contempladas no Projeto[4].
Percebe-se, antecipadamente, que essa mudança não tem a carga de inovação que a ela se atribuí. Instituições do porte da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade Federal da Bahia irmanaram-se para, ao longo do último biênio, realizarem pesquisa financiada pelo Ministério da Justiça, intitulada “Avaliação do impacto das modificações no regime do recurso de agravo e proposta de simplificação do sistema recursal do CPC”[5], sob a coordenação da profaessora Miracy Barbosa de Sousa Gustin, da qual se apreende que:
A dicotomia entre os dois modelos, o vigente e o do projeto, no que tange à recorribilidade ou irrecorribilidade das decisões interlocutórias, é apenas aparente. Pois, à luz dos dados estatísticos levantados perante o Tribunal de Justiça da Bahia, constata-se, com relativa clareza, que as hipóteses de irrecorribilidade do projeto representam pouco menos de 12% dos agravos de instrumento interpostos naquele tribunal. Ou seja, como serão mantidas as hipóteses de cabimento relativas à urgência, à execução civil, dentre outras previstas em lei, a inovação legislativa constante do NCPC vai alterar muito pouco a quantidade de recursos de agravo de instrumento existentes no TJ-BA. […][6]
Inovação de maior impacto refere-se ao fim do regime das preclusões. A redação proposta para o parágrafo único do art. 963 do projeto de NCPC, ao dispor que “As questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo, tem de ser suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões”, extingue o agravo retido. Com efeito, as decisões interlocutórias não precluem, salvo as decisões impugnáveis por agravo de instrumento.
Como se vê, não existindo mais a impugnação por agravo retido, as matérias interlocutoriamente decididas, por não precluírem, poderão ser rediscutidas e reexaminadas por ocasião do julgamento da apelação.
Caso aprovado o texto proposto, pondo fim às preclusões, haverá uma abrupta ruptura com o sistema processual civil até então experienciado pela comunidade jurídica. Esse ruptura paradigmática, contudo, é de duvidosa utilidade para se alcançar os fins pretendidos com a reforma da legislação processual, que é a de se assegurar maior celeridade à prestação jurisdicional, conforme preconizado pela Comissão de Juristas como um dos sustentáculos ideológicos do Projeto.
A matéria não passou despercebida à equipe de pesquisadores da UFMG e UFBA, constando do relatório da referida pesquisa[7], que
A preclusão é, reconhecidamente, instituto essencial ao processo civil, constatação que se faz quando se leva em consideração a reforma processual civil na Alemanha, realizada com os mesmos fins da que aqui se pretende, ou seja, celeridade e simplificação procedimentais. Naquele país, aliou-se ao regime da preclusão as técnicas da oralidade, da imediação e do fortalecimento do papel do juiz. Com maior razão o nosso sistema processual não prescinde do regime das preclusões, pois imediação e oralidade não são características determinantes do processo civil brasileiro. Os seguidores do movimento reformista sustentam a tese de que a concentração, na apelação, da resolução de todas as questões interlocutórias, funcionaria como instrumento apropriado para a diminuição do tempo de duração do processo, já que este, em primeiro grau, fluiria sem interrupções, rumo ao esperado provimento final. Porém, ao se considerar que na última década a média de provimento de agravos de instrumento no TJ-MG foi de 30,46%, não há como desconsiderar a ameaça que a concentração do reexame das decisões interlocutórias no julgamento da apelação poderá representar para a almejada celeridade. Se aproximadamente 1/3 dos agravos de instrumento manejados contra decisões interlocutórias são providos, pode-se antever considerável número de nulidades processuais decretadas, com o consequente refazimento dos atos subsequentes àquele eivado pelo vício. Trata-se, portanto, de mais um elemento para inferir que as disposições do Projeto poderão ter, como efeito reverso, um verdadeiro aumento da morosidade, decorrente, nesse aspecto, da invalidação de processos somente após encerrada a sua tramitação, abrindo-se a possibilidade para a rediscussão das questões decididas, e não mais estabilizadas pelo instituto da preclusão. Não faz sentido abolir o agravo retido – impossibilitando-se a preclusão para a impugnação das interlocutórias – sem que se crie, ao mesmo tempo, um procedimento que privilegie a concentração dos atos processuais e o princípio da oralidade.[8]
Diante do que foi exposto, evidencia-se que os problemas que afligem, genericamente, a técnica de elaboração das leis no processo legislativo brasileiro, atinge, em particular esse projeto.
Um problema dos mais severos no processo de reformas legislativas é o fato de não serem antecedidas por uma análise mais acurada de dados de pesquisa que permitiriam avaliar o acerto ou erro das propostas. O diagnóstico prévio deveria, necessariamente, anteceder os debates parlamentares, a fim de possibilitar identificar os problemas e as divergências na aplicação dos institutos processuais e, consequentemente, orientar na busca de soluções destinadas a combatê-los.
Esse diagnóstico consistiria em uma pesquisa prévia que buscasse informações acerca do funcionamento do sistema de justiça e das mazelas que o acomete, a fim de garantir a manutenção de técnicas processuais que funcionam bem e sugerir novas técnicas – inclusive mediante a busca de institutos do direito comparado – que permitam uma melhoria prática e institucional do sistema.[9]
Todavia, em relação à proposta de nova legislação processual civil, adota-se o velho modelo do ensaio e erro.[10]
Além disso, as reformas macroestruturais não devem se restringir à observância das fases constitutivas do devido processo legislativo. Pela generalidade e repercussão social do Códigos de Processo Civil deve-se agregar ao procedimento de elaboração das leis outras fases que confiram maior legitimidade às reformas, mediante a ampliação da oportunidade de participação cidadã.
A Câmara dos Deputados, em relação ao Senado, ampliou a possibilidade de participação nos debates em torno do projeto do Novo CPC,[11] sem, no entanto, conferir-lhe a permeabilidade necessária para o acolhimento de proposições advindas de outras instâncias não institucionais. Veja, a propósito, como pontuado, que o sistema projetado de agravo, a despeito da grande polêmica em torno do tema, conserva-se da forma como foi aprovado no Senado Federal, desconsiderando o legislador, por exemplo, as avaliações de impacto das últimas reformas legislativas que o modificaram.
Ainda não se pode olvidar do impacto da alteração no regime do agravo de instrumento, para admitir sua interposição apenas nas hipóteses taxativamente previstas. Uma vez que dá ensejo, portanto, à substituição do agravo de instrumento pelo mandado de segurança contra ato judicial. O fato de utilizar uma ação constitucional em substituição a um recurso, por si só, já atentaria contra a efetividade do processo, porquanto seu procedimento é mais oneroso.
Considerações finais
A elaboração do projeto de Código de Processo Civil por não ter sido precedida de estudos prévios de impacto da legislação em vigor, a fim de identificar os problemas a serem solucionados, no que diz respeito à disciplina do agravo de instrumento e do regime das preclusões propõe medidas de questionável utilidade.
Diante da realidade existente e da que se projeta prospectivamente, a partir do exame do projeto do Novo CPC permite afirmar que a inadequação da metodologia adotada na sua elaboração vulnera a confiança de que possa influir decisivamente para atenuar o problema da morosidade da prestação jurisdicional.
Os estudos até aqui realizados ratificam as criticas e demonstram a necessidade de revisão, no Projeto do Novo Código de Processo Civil, das propostas relacionadas ao recurso de agravo de instrumento, haja vista que o sistema projetado pode potencializar os déficits operacionais eis que diminuirá modestamente o número destes recursos nos tribunais, além de delinear, mediante uma técnica legislativa casuística, um sistema de recorribilidade das interlocutórias mais complexo do que o atual. O mesmo vale em relação ao regime das preclusões que, além de tudo, promove um indesejado abrandamento da responsabilidade ética das partes em litígio.
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[1] Vide o art. 282 do Codice di Procedura Civile italiano, que conduziu a reforma portuguesa de 2003 e a proposta do art. 949 da PLS nº 166/2010 brasileira (para um novo CPC) e art. 997 com redação na Câmara (PL 8046). Perceba-se que a adoção da executividade imediata da sentença exige a análise de dados estatísticos das taxas de reforma das sentenças. Caso haja baixas taxas, a opção seria aconselhável, caso contrário não. Esta é uma constatação da importância do primeiro grau e da necessidade de seu reforço para geração de resultados com legitimidade. No Brasil, não contamos com dados fidedignos acerca da temática, mas os parcos dados indicam taxas superiores a 20% (Cf.
[2] NUNES, Dierle et al. Curso de direito processual civil – Fundamentação e aplicação. Belo Horizonte: Forum, 2011, p. 265-266.
[3] Cf. BAUR, Fritz. Wege zu einer Konzentration der mündlichen Verhandlung im Prozeß. Berlim: Walter de Gruiter & co., 1966. BENDER, Rolf, STRECKER, Christoph. Access to justice in the Federal Republic of Germany. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Access to justice – a world survey, Milano: Giuffre, 1978. v. I, livro II, p. 527-577. NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. cit.
[4] PICARDI, Nicola, NUNES, Dierle. O Código de processo civil brasileiro: origem, formação e projeto de reforma. Revista de Informação Legislativa. N. 190, Abr.-Jun. /2011, tomo 2, p. 112-113.
[5] BRASIL. Ministério da Justiça. Avaliação do impacto das modificações no regime do recurso de agravo e proposta de simplificação do sistema recursal do CPC. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa (coord). Programas de Pós-graduação das Faculdades de Direito da UFMG e da UFBA. 2011.
[6] BRASIL. Ministério da Justiça. Avaliação do impacto das modificações no regime do recurso de agravo e proposta de simplificação do sistema recursal do CPC. Cit.
[7] BRASIL. Ministério da Justiça. Avaliação do impacto das modificações no regime do recurso de agravo e proposta de simplificação do sistema recursal do CPC. Cit.
[8] BRASIL. Ministério da Justiça. Avaliação do impacto das modificações no regime do recurso de agravo e proposta de simplificação do sistema recursal do CPC. Cit.
[9] NUNES, Dierle; BARROS, Flaviane. As reformas processuais macroestruturais brasileiras. BARROS, Flaviane de Magalhães; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis (org). Reforma do Processo Civil – Perspectivas constitucionais. Belo Horizonte: Fórum. 2010.
[10] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual – 8ª série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 11 – 13.
[11] Decorrência da qualidade dos membros da Comissão designada (presidida pelos Deputados Fabio Trad e Sergio Barradas Carneiro), e do nível dos juristas que os vem assessorando (com destaque aos Profs. Fredie Didier Jr, Leonardo Carneiro da Cunha, Alexandre Freitas Câmara e Daniel Mitidiero, entre tantos outros).
Dierle Nunes é advogado, doutor e mestre em Direito Processual, professor adjunto na UF-MG, FDSM, PUCMinas e UNIFEMM, professor permanente do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e sócio do escritório Oliveira, Nunes & Camara Advocacia.
Fernando Gonzaga Jayme é advogado, mestre e doutor em Direito pela UFMG, professor adjunto e vice-diretor da Faculdade de Direito da UFMG e membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos.