Por Ricardo Marques de Almeida
Recentemente, no âmbito da Advocacia-Geral da União, foi pacificado o entendimento segundo o qual a inscrição na OAB e, por conseguinte, o pagamento da respectiva anuidade, tornaram-se obrigatórios para os advogados públicos federais, sob pena de falta funcional, conforme prescreveu a Orientação Normativa 01/2011, de 21 de junho de 2011, da Corregedoria, in verbis:
ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 01/2011: “É OBRIGATÓRIA A INSCRIÇÃO NA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, POR TODOS OS ADVOGADOS DA UNIÃO, PROCURADORES DA FAZENDA NACIONAL, PROCURADORES FEDERAIS E INTEGRANTES DO QUADRO SUPLEMENTAR DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO, DE QUE TRATA O ARTIGO 46 DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.229-43, DE 6 DE SETEMBRO DE 2001, PARA O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA PÚBLICA, NO ÂMBITO DA INSTITUIÇÃO.
OS MEMBROS DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO E DE SEUS ÓRGÃOS VINCULADOS RESPONDEM, NA APURAÇÃO DE FALTA FUNCIONAL PRATICADA NO EXERCÍCIO DE SUAS ATRIBUIÇÕES, OU QUE TENHA RELAÇÃO COM AS ATRIBUIÇÕES DO CARGO EM QUE SE ENCONTREM INVESTIDOS, EXCLUSIVAMENTE PERANTE A ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO, E SOB AS NORMAS, INCLUSIVE DISCIPLINARES, DA LEI ORGÂNCIA DA INSTITUIÇÃO E DOS ATOS LEGISLATIVOS QUE, NO PARTICULAR, A COMPLEMENTEM”
Trata-se da consolidação de entendimento em que flutuou ao longo dos últimos anos dentro da Instituição. Para se ter ideia, nos editais dos concursos para ingresso na carreira de Procurador Federal dos anos de 2001 à 2006, não havia a exigência, para a posse no cargo, da inscrição do candidato na Ordem dos Advogados do Brasil. Em 2009, a Advocacia-Geral da União permitiu aos seus Membros o exercício da advocacia fora das suas atribuições funcionais. Editou a Portaria 758/2009 do Advogado-Geral da União, a Instrução Normativa Conjunta 1/2009 do Corregedor-Geral da União e do Procurador-Geral Federal e a Orientação Normativa 27/2009 do Advogado-Geral da União, que permitiram a advocacia privada em causa própria e pro bono.
Sem perceber, o Poder Executivo negou aplicação, ainda que parcial, à proibição do artigo 28, inciso I, da Lei Complementar 73/93, que impede os advogados públicos federais de exercerem a advocacia fora das atribuições funcionais. Reconheceu-se, timidamente, que o advogado público, apesar do adjetivo, não deixa de ser advogado.
Os Membros da AGU foram reconhecidos como advogados no que diz respeito aos deveres da profissão, mas é preciso avançar mais. Os advogados públicos federais são advogados não apenas em relação às obrigações, mas também a todos os direitos que assistem os advogados brasileiros. Apesar dessa nota de desalento sobre a situação atual dos advogados públicos federais, não se faz necessária nenhuma inovação legislativa para se avançar. Basta que se tenha vontade de cumprir a Constituição.
Efetivamente, a Constituição Federal de 1988 criou a Advocacia-Geral da União como instituição essencial à justiça, no seu artigo 131, parágrafos 1º à 3º, in litteris:
“Art.131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
parágrafo 1º A Advocacia-Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.
parágrafo 2º O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos.
parágrafo3º Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei”.
A Constituição disciplinou que compete à AGU a representação judicial e extrajudicial da União, a consultoria e assessoramento do Poder Executivo, bem como a execução da dívida ativa de natureza tributária. E remeteu à Lei Complementar apenas as questões relativas à organização e ao funcionamento da AGU.
Ao contrário do que fez com os membros do Ministério Público e com os membros da Defensoria Pública, ex vi do artigo 128, inciso II, alínea “b” e do artigo 134, parágrafo 1º da CF/88, a Constituição Federal não vedou, em seu Texto, o exercício da advocacia pelos Membros da AGU. Trata-se de silêncio eloquente[1]. Dessa forma, o regramento constitucional da atividade dos advogados públicos circunscreve-se tão-somente aos limites impostos pelo direito fundamental do artigo 5º, XIII da Constituição, in verbis:
“Artigo 5º (in omissis)
(…)
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;”
De acordo com a regra constitucional, o exercício da advocacia deve ser livre, obedecidas apenas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Trata-se de uma reserva legal qualificada ao direito fundamental, que tolhe do legislador ordinário a discricionariedade para restringir o direito de forma diferente do que dispõe a fórmula “atendida as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Segundo Gilmar Ferreira Mendes[2], “[t]em-se uma reserva legal ou restrição legal qualificada quando a Constituição não se limita a exigir que eventual restrição ao âmbito de proteção de determinado direito seja prevista em lei, estabelecendo também, as condições especiais, os fins a serem perseguidos ou os meios a serem utilizados.”
Portanto, qualquer restrição que destoe das “qualificações que a lei estabelecer” receberá a pecha da inconstitucionalidade.
As qualificações profissionais para exercício da advocacia encontram-se na Lei 8.906/93, que disciplina o Estatuto da OAB. Para ser advogado, o artigo 8º do Estatuto prescreve:
“Artigo 8º Para inscrição como advogado é necessário:
I – capacidade civil;
II – diploma ou certidão de graduação em direito, obtido em instituição de ensino oficialmente autorizada e credenciada;
III – título de eleitor e quitação do serviço militar, se brasileiro;
IV – aprovação em Exame de Ordem;
V – não exercer atividade incompatível com a advocacia;
VI – idoneidade moral;
VII – prestar compromisso perante o conselho”.
O mesmo Estatuto da OAB reza, expressamente, em seu artigo 3º, parágrafo 1º, que os integrantes da Advocacia-Geral da União exercem atividade de advocacia, sem trazer nenhuma proibição ao seu exercício, in verbis:
“parágrafo 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional”.
O Estatuto da Ordem ainda determina que os honorários pertencem ao advogado, conforme prescreve o seu artigo 23, in verbis:
“Artigo 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor”.
A LC 73/93, em nenhum momento, proibiu a percepção de honorários pelos Membros da AGU. Por outro lado, o artigo 23 da Lei 8903/96 os atribuiu, expressamente, aos advogados. Portanto, se os advogados federais não recebem honorários de sucumbência, é mais do que evidente que a União desrespeita a lei, a qual ela deveria estar estritamente vinculada pelo princípio da legalidade.
Sob a ótica do direito financeiro, os honorários de advogado não decorrem da exploração do patrimônio público, nem da tributação da riqueza de particulares. Por isso, não se enquadram nos conceitos orçamentários de receita originária ou derivada. Se não são receitas, os honorários só podem adentrar aos cofres públicos como ingressos, que, segundo Ricardo Lobo Torres[3], correspondem “à entrada de dinheiro que ulteriormente será restituído, como ocorre no empréstimo e nos depósitos”.
Por serem ingressos, o reconhecimento do direito de que os honorários referentes às causas em que a Administração Federal se sagra vitoriosa pertencem aos advogados públicos não implicará aumento de despesa, muito menos renúncia de receita.
Trata-se de um direito subjetivo dos advogados públicos. Diante a literalidade da previsão do artigo 23 da Lei 8.906/93, não se adentra sequer na discussão da exigibilidade de prestações a partir de normas programáticas de eficácia limitada. Há uma regra legal expressa. Já houve a interposição do legislador, que supera inclusive a dificuldade contramajoritária do Judiciário. Os honorários, segundo a lei, são dos advogados. Por que os Membros da AGU não os recebem?
A meu ver, está-se diante de um caso de omissão governamental abusiva (ADPF 45), cuja negativa da União implica a nulificação de um direito previsto em lei. Sob o ponto de vista da organização da Administração Pública, há ainda uma inegável vantagem na atribuição de honorários aos Membros da AGU: o estímulo à meritocracia e à produtividade no serviço público. Quanto mais forem as vitórias do Poder Público em juízo, maiores serão os ganhos do advogado público, que será estimulado mais e mais. É assim que funciona a maioria das Procuradorias dos Estados e dos Municípios. O modelo federal, infelizmente, destoa da Constituição.
Se a atividade do Membro da Advocacia-Geral da União é considerada advocacia (artigo 3º, parágrafo 1º da Lei 8.906/93) e se houve o preenchimento das qualificações profissionais estipuladas em lei (artigo 5º, XIII da CF/88 c/c artigo 8º do Estatuto da OAB), o advogado público não deveria sofrer restrições para exercício de seu direito fundamental de advogar, respeitando-se apenas o impedimento e incompatibilidades de advogar (artigo 28, III e VII, c/c artigo 30, I, do Estatuto da OAB), como já acontece com a maioria das procuradorias de estados, de municípios e do Distrito Federal.
Evidenciando que o tema – a liberdade do exercício da atividade de advogado – não é assunto sob a reserva material da LC apontada pelo artigo 131 da Constituição Federal, a própria AGU passou a flexibilizar a proibição de advogar fora das atribuições institucionais. Atualmente, seus Membros estão autorizados a exercer a advocacia pro bono e também a advocacia em causa própria, conforme (i) Portaria 758/2009 do Advogado-Geral da União, (ii) Instrução Normativa Conjunta 1/2009 do Corregedor-Geral da União e do Procurador-Geral Federal e (iii) Orientação Normativa 27/2009 do Advogado-Geral da União, em anexo.
O próprio STF já delineou, expressamente, que matérias atinentes ao estatuto pessoal do Membro da AGU não estão sob a alçada de Lei Complementar. Foi assim no julgamento do RE 539370/RJ, na qual ficou assentado que temas como férias não estão compreendidos no conceito de organização e funcionamento da Advocacia-Geral da União. Com a mesma razão, a mesma conclusão se aplica à proibição de advocacia: trata-se de matéria que não diz respeito à organização e funcionamento da AGU.
Mesmo não sendo matéria de Lei Complementar, os Regulamentos infralegais acima, que liberaram a advocacia em causa própria e por bono, trouxeram hipóteses de advocacia fora das atribuições funcionais. Ao reduzir o campo de incidência da proibição do artigo 28, I da LC 73/93, a Administração negou aplicação à Lei Complementar naquelas hipóteses específicas, o que equivale, segundo a jurisprudência do Supremo, ao reconhecimento de sua inconstitucionalidade da lei pelo próprio Poder Executivo.
Em caso similar, o ministro Moreira Alves, ao julgar a Representação de Inconstitucionalidade 980, que se referia à constitucionalidade do Decreto 7864/64 do estado de São Paulo, defendeu que o Poder Executivo pode deixar de cumprir leis inconstitucionais, sendo constitucional decreto do chefe do Poder Executivo determinando aos órgãos a ele subordinados que se abstenham de dar execução a dispositivos vetados.
Nos termos dos motivos determinantes daquela decisão:
“(…)
2. Trata-se, como se vê, de decreto que apenas contém normas internas, dirigidas a órgãos da Administração … sobre a conduta a ser tomada frente à promulgação de leis e dispositivos eivados de inconstitucionalidade por vício de iniciativa … e já por isto objeto de veto.
Em sendo simplesmente diretivo, apresenta-se como emanação do princípio hierárquico que é característico do Poder Executivo, e, embora editado em tese, em abstrato, é evidente que a abstenção da prática de atos que importem na execução da lei inconstitucional … só surgirá, hic et nunc, quando se cuidar do cumprimento de uma determinada lei, vale dizer, só poderá ter lugar frente a casos concretos, de sorte que a questão que põe diante do intérprete é uma só e consiste em saber se se reconhece ou não, no Poder Executivo, a faculdade de recusar-se a cumprir leis inconstitucionais.
A só compatibilidade do decreto em questão com tal faculdade afastará, como é curial, qualquer pretensa inconstitucionalidade da ordem que nele se contém, até porque, sendo lícito ao Executivo recusar-se a cumprir leis inconstitucionais, é claro que não importará a forma como isso seja determinado no âmbito da Administração. Se pode o Governador, verbalmente ou mediante simples despacho, ordenar a seus Secretários e demais subordinados que não cumpram determinada lei eivada de vício de inconstitucionalidade, por qual razão não poderia fazê-lo mediante um decreto simplesmente diretivo, como o de que ora se cuida? Só quando se pudesse ter por inexistente uma tal faculdade é que se estaria diante de ato inconstitucional, posto que não haveria para o Executivo outro caminho que não fosse o do cumprimento da lei inconstitucional.
(…)
Assim, em face dos princípios que norteiam a atividade administrativa, que exige plena e total conformidade com a ordem jurídica que assenta, fundamentalmente, nos países de Constituição rígida, como é o nosso, no texto da Constituição – a única conclusão possível é, repetimos, a de que não somente pode o Executivo recusar cumprimento a disposições emanadas do Legislativo, mas evidentemente inconstitucionais, como é de seu dever zelar para que não tenham eficácia na órbita administrativa.”
Não há outra interpretação a fazer sobre os Regulamentos da AGU que autorizaram, em hipóteses específicas, a advocacia privada: negou-se vigência a dispositivo de lei complementar que, por conseguinte, deve ser reputado, naquelas hipóteses, inconstitucional.
De mais a mais, se não há vedação ao exercício da advocacia pelos Membros da AGU no corpo da Constituição e se tal vedação não se insere nas “qualificações profissionais que a lei estabelecer”, não há fundamento constitucional em proibir a advocacia privada e, ao mesmo tempo, exigir a inscrição do advogado público, às suas expensas, na OAB. A propósito do livre exercício profissional, o STF já decidiu, em controle abstrato de constitucionalidade, que, “no tocante a essas condições de capacidade, não as pode estabelecer o legislador ordinário, em seu poder de polícia das profissões, sem atentar ao critério da razoabilidade, cabendo ao Poder Judiciário apreciar se as restrições são adequadas e justificadas pelo interesse público, para julgá-las legítimas ou não” (Representação de Inconstitucionalidade 930, Rel. Min. Rodrigues Alckmin, DJ 02/09/1977, RJT, 110/937).
Seria muita inocência e pecaria por um enorme déficit de fundamentação sustentar que a proibição da advocacia é mais consentânea com o interesse público. Primeiro, porque desrespeitaria a Federação. O interesse perseguido pela União é apenas diferente daquele perseguido pelos Estados e pelos Municípios, quando não comuns ou concorrentes. Essa é o traço distintivo do federalismo cooperativo.
Segundo, pecaria porque o contato do advogado público com o mundo privado é salutar e enriquecedor para a própria defesa da União. As fronteiras do público e do privado não são as mesmas que separam, na bela metáfora de Nelson Saldanha, a praça do jardim[4].
A Administração Pública frequentemente se imiscui em temas privados, como nas parcerias público-privadas, nos contratos de financiamento internacionais, nas concessões de serviços públicos ou mesmo na atuação de empresas estatais. São os instrumentos que o governo se vale para consecução de seus interesses. Privatiza-se o direito público, ao se reconhecer a figura da Administração Pública consensual, da soft law, da fuga para o direito privado ou do Estado Subsidiário, que abre espaço aos atores do terceiro setor[5]. Enquanto muda o Mundo, o advogado público federal está encastelado da burocracia estatal, distante e pouco familiarizado com a sofisticação do direito privado ao seu derredor.
Em terceiro e último lugar, basta citar, como exemplo, que a Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, cujos advogados são livres para exercer suas atividades, reúne nos seus quadros alguns dos maiores juristas do País, o que engrandece, sobretudo em qualidade, a defesa do ente público. Agora, mais de duas décadas após a Constituição, a União tem a chance de perfilhar o mesmo caminho em âmbito federal. Basta ter vontade de Constituição.
A liberação da advocacia fora das atribuições funcionais será um fator de atração de profissionais qualificados para os quadros da AGU, além de permitir o crescimento profissional dos atuais membros, por estreitar seu contato com outras realidades do Direito. Na verdade, no caso em apreço, pode-se até mesmo estar diante de uma discussão inexistente – se viola ou não viola o interesse público – em razão da incorreta identificação do interesse público, como no exemplo de uma passeada e da interrupção do trânsito de uma via pública, em que haveria, na verdade, a convergência entre o interesse público e o privado[6].
Nesta toada, calha destacar que a Constituição Federal erigiu como um dos fundamentos da ordem econômica brasileira a livre iniciativa e assim dispôs:
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(…)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
A advocacia, quando enfocada como atividade econômica (artigo 966, parágrafo único, do Código Civil), é de livre exercício por todos aqueles que forem habilitados pela OAB a exercerem-na, conforme previsões legais.
A Constituição foi clara: foi permitido à lei excepcionar essa liberdade de exercício para tão somente condicionar-lhe a algum ato de autorização dos órgãos públicos, o que, no caso da advocacia, é realizado pela OAB, que é uma entidade sui generis que ocupa papel singular na ordem jurídica brasileira. O parágrafo único do artigo 170 da CF, portanto, não dá uma autorização ao legislador ordinário, em tema de livre iniciativa, para dispor diferentemente do mandamento constitucional.
Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello[7], “se qualquer atividade econômica é exercitável por todos, segue-se, induvidosamente, que o Estado não pode restringir apenas a uns ou alguns (noção antitética a “todos”) o exercício de tal ou qual atividade econômica (noção antitética a “qualquer”), pois, seja qual for a atividade, é insuscetível de ser excluída do âmbito de ação dos particulares”.
O exercício pleno da atividade de advogado por quem preenche os requisitos da Lei 8.906/93 está contido no âmbito temático do direito do artigo 5º, XIII e do artigo 170, par. único, da CF, independente da consideração de outras variáveis. A definição é aberta, por se tratar de uma norma-princípio, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Por isso, se diz que a liberdade do exercício profissional é direito prima facie, que se concretiza em graus, sempre na maior medida possível, variando de extensão, conforme se verifiquem, no caso concreto, impedimentos e incompatibilidades. Quando essa extensão é limitada, de forma razoável e devidamente justificada, há uma mera restrição ao direito fundamental. Quando a extensão é limitada, sem qualquer critério de razoabilidade, configura-se uma violação ao direito fundamental, que gera a consequência típica de um direito de liberdade que é a declaração da contrariedade da lei ou ato normativo com o Texto Constitucional.
Quando o Código Penal prescreve, em seu artigo 155, que “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” implica uma pena de “reclusão, de um a quatro anos, e multa” dele se extrai a norma jurídica segundo a qual é proibido furtar coisa alheia móvel, sob pena de reclusão de 1 a 4 anos e multa. No entanto, quando a Constituição diz que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”, o juízo de proibição ou permissão não se formula intuitivamente. O suporte fático ou hipótese de incidência que é o antecedente que, quando preenchido, propicia a realização da consequência jurídica prevista no seu preceito,[8] não está tão claro assim quanto na norma penal.
Então, como saber se o artigo 5º, inciso XIII, da CF, foi violado? Em se tratando de direito fundamental, a investigação a respeito dos elementos que compõem seu suporte fático – conforme as lições de Virgílio Afonso da Silva – verifica-se quando se responde a três das quatro perguntas: “(1) o que é protegido? (2) contra o quê? (3) qual a conseqüência jurídica que poderá ocorrer? (4) o que é necessário ocorrer para que a conseqüência jurídica também possa ocorrer?”[9]
De acordo com o mesmo autor, “[a]o contrário do que se poderia imaginar, a resposta que define o suporte fático não é apenas a resposta à primeira pergunta. Quando se fala, portanto, que ‘todos são iguais perante a lei’, não é a definição do que é protegido – a igualdade – suficiente para se definir o suporte fático. Aquilo que é protegido é apenas uma parte – com certeza a mais importante – do suporte fático. Essa parte costuma ser chamada de âmbito de proteção do direito fundamental. Mas, para a configuração do suporte fático, é necessário um segundo elemento – e aqui entra a parte contra-intuitiva: a intervenção estatal. Tanto aquilo que é protegido (âmbito de proteção), como aquilo contra o qual é protegido (intervenção, em geral estatal).
Fazem parte do suporte fático dos direitos fundamentais. Isso porque a consequência jurídica – em geral, a exigência de cessação de uma intervenção – somente pode ocorrer se houver uma intervenção nesse âmbito”. (…)“[P]arece-me mais correto definir o suporte fático não apenas como a soma do âmbito de proteção e da intervenção estatal, mas incluir nesse conceito a ausência de fundamentação constitucional”[10].
A relação entre o direito em si e sua restrição parte de uma perspectiva externa, que chega ao sopesamento, com o auxílio da regra da proporcionalidade, como fonte de fundamentação da constrição e da determinação do núcleo essencial do direito[11]. É um limite aos limites que os direitos fundamentais representam à atuação do Estado[12].
Não há a menor razoabilidade proibir o advogado público de exercer livremente sua profissão, como lhe permite o artigo 5º, XIII, da CF/88. A proibição não encontra uma justificativa constitucional adequada.
Também fica sem resposta a indagação: por que um médico, um dentista ou um professor, que tem vínculo estatutário com a União, pode exercer livremente sua profissão, fora do horário de trabalho, mas os advogados públicos federais são os únicos que não podem? A proibição do artigo 28, I da LC 73/93 também não sobrevive sob o cotejo do princípio da igualdade.
Apesar da suposta “dedicação exclusiva”, os advogados públicos estão autorizados a exercer outras atividades privadas estranhas a suas atribuições funcionais, como o magistério ou até mesmo participar de conselhos fiscais e de administração de empresas estatais. Então, por que proibi-los do seu direito mais fundamental que é advogar?
Os advogados públicos federais, por enquanto, são advogados para fins de inscrição na Ordem e pagamento da OAB, mas não o são para recebimento de honorários ou livre exercício de suas atividades. Integram uma carreira típica de Estado que exerce uma função essencial à Justiça, mas não lhes assiste nenhuma garantia que se estão presentes no estatuto jurídico dos Membros do Ministério Público e da Magistratura, tão essenciais à Justiça quanto a Advocacia-Geral da União.
Há até mesmo falhas na estruturação da carreira dos advogados públicos federais. Desde que o Chefe da Instituição, o Advogado-Geral da União, foi alçado ao teto remuneratório do funcionalismo pelo Decreto-legislativo 805/2010, criou-se um fosso entre ele – o último degrau da carreira – e as demais categorias, que não tiveram seu subsídio reajustado para fazer jus ao mandamento constitucional do artigo 39 parágrafo 1º, I da CF.
A organização dos servidores em carreira – que é pressuposto para receber subsídios (ADI 3923 MC / MA, Rel. Min. Eros Grau) – implica o escalonamento dos ocupantes dos cargos em níveis hierárquicos diferentes, com acréscimos remuneratórios a cada degrau, de acordo com a natureza, grau de responsabilidade e complexidade do cargo. O STF, a respeito do tema, já decidiu, no RE 225763/SC, que é “2. Legítima a organização de carreira pública com escalonamento vertical de vencimentos, uma vez que se trata de sistematização da hierarquia salarial entre as classes de mesma carreira e não de vinculação ou equiparação salarial entre diferentes categorias de servidores públicos”.
Em precedente mais recente, o mesmo STF assentou que “a fixação de um limite percentual na diferença entre os valores de remuneração recebidos pelos ocupantes dos quatro níveis que compõem a carreira de Procurador de Estado não afronta a vedação contida no artigo 37, XIII da CF, por se tratar de uma sistematização da hierarquia salarial entre as classes de uma mesma carreira, e não uma vinculação salarial entre diferentes categorias de servidores públicos” (ADI 2840 QO / ES – ESPÍRITO SANTO, Rel. Min Ellen Gracie, 6/11/2003).
Esse vácuo legislativo na necessária reestruturação da AGU a partir de 2011 foi abordado pelo Mandado de Injunção 4312, em tramitação no STF, que definirá o que a Constituição entende como carreira e, certamente, norteará a organização de todas as demais Instituições que são organizadas dessa forma.
Por tudo isso, é preciso redefinir o estatuto jurídico dos advogados públicos federais à luz da Constituição, para enquadrá-los como advogados, que têm direitos e deveres assegurados no Estatuto da OAB, mas que também exercem uma função essencial à Justiça, a exemplo do Ministério Público, de essencial importância para o Estado e para toda a sociedade. A AGU está em busca de uma identidade.
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[1]
[1] O STF assim definiu o silêncio eloquente: “Litígio entre sindicato de empregados e empregadores sobre o recolhimento de contribuição estipulada em convenção ou acordo coletivo de trabalho. Interpretação do artigo 114 da CF. Distinção entre lacuna da lei e ‘silêncio eloquente’ desta. Ao não se referir o artigo 114 da Constituição, em sua parte final, aos litígios que tenham origem em convenções ou acordos coletivos, utilizou-se ele do ‘silêncio eloquente’, pois essa hipótese já estava alcançada pela previsão anterior do mesmo artigo, ao facultar a lei ordinária estender, ou não, a competência da Justiça do Trabalho a outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, ainda que indiretamente. Em consequência, e não havendo lei que atribua competência a Justiça Trabalhista para julgar relações jurídicas como a sob exame, é competente para julgá-la a Justiça comum.” (RE 135.637, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 25-6-1991, Primeira Turma, DJ de 16-8-1991.)
[2]
[2] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 309.
[3]
[3] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 18ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 185
[4] SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1986.
[5] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 48.
[6] SARMENTO, Daniel. “Interesses públicos vs. Interesses privados na perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional”. In: Daniel Sarmento (Org.). Interesses públicos versus interessesprivados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Jures, 2007, p. 82.
[7]
[7] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 21ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 760
[8]
[8] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 70.
[9]
[9] SILVA, Virgílio Afonso da. “O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais”. Revista de Direito do Estado 4 (2006), p. 29.
[10]
[10] SILVA, Virgílio Afonso da. “O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais”. Revista de Direito do Estado 4 (2006), p. 30-32.
[11]
[11] Virgílio Afonso da Silva, Os direitos fundamentais e a lei: a constituição brasileira tem um sistema de reserva legal? In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de / SARMENTO, Daniel / BINENBOJM, Gustavo (orgs.), Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 617
[12]
[12] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 314.
Ricardo Marques de Almeida é procurador federal no Rio de Janeiro