Por Eduardo Higashiyama
Como é de sabença geral, a tão falada “Operação Maré Vermelha” teve início em 19 de março do ano corrente, e, conforme informação publicada no sítio eletrônico da Receita Federal, seu objetivo é “aumentar o rigor nas operações de comércio exterior em razão do volume crescente de importações e o consequente aumento do crescimento do comércio desleal, que inclui a prática de fraudes como o subfaturamento, a triangulação e a utilização de falsa classificação fiscal que resultam em situações predatórias ao setor produtivo nacional”[1].
Embora louvável seja o objetivo manifestado, isso nunca passou de mero dever do Estado, pois sempre se pressupôs que estivesse sendo cumprido pelos órgãos de fiscalização.
Ocorre que a festejada operação tem trazido efeitos perversos para diversos importadores, pois vem gerando no imaginário institucional (inclusive em membros do Poder Judiciário e do Ministério Público) uma presunção de que qualquer retenção de mercadorias, ou parametrização em canais vermelho e cinza, representa proteção contra um dano iminente para o mercado interno e aos cofres públicos. Isso mesmo em relação àqueles importadores habituais, que mais de anos realizam e literalmente vivem das importações.
Conforme já colocado por Raul Haidar, em artigo publicado na ConJur[2], a ineficiência da Receita levará empresários à bancarrota, e “já há vários casos de pequenas empresas de importação que estão suspendendo suas atividades ou mesmo encerrando-as definitivamente”[3].
Fato é que a chamada “Operação Maré Vermelha” se trata de uma retaliação política a importadores, sem qualquer fundamento jurídico. É um “nada jurídico”, vez que a restrição de direitos, como sabemos, só é legítima quando única e exclusivamente criada por lei.
Ora, se a Receita não fiscalizou rigorosamente as operações de comércio exterior antes de instaurar a referida operação, o cidadão-contribuinte nada pode fazer, menos ainda arcar com a demora — e consequentemente prejuízos — causada pelas inéditas exigências realizadas nos processos de importação.
Tudo fruto da malfadada operação.
É que no afã de querer encontrar fraudadores —do mesmo modo como as autoridades policiais tentam “encontrar” criminosos —, a Receita Federal tem instaurado procedimentos especiais de fiscalização sem um único indício de materialidade e autoria das suspeitas investigadas. É assim: a fiscalização simplesmente espera meses para avaliar se os documentos de importação estão de acordo com a legislação (checando pagamento de tributos, classificação fiscal etc.) e, depois, instaura de chofre o referido procedimento dizendo qualquer coisa sobre qualquer coisa, acusando o contribuinte.
Com o poder em mãos, e albergada pela (questionável) presunção de legalidade e veracidade dos atos administrativos, a administração pública confortavelmente vem alegando suspeitas de subfaturamento, interposição fraudulenta de terceiros, falsidade material, etc., a qualquer caso de importação. Basta achar que tais hipóteses existem que as autoridades fiscais se autorizam a reter as mercadorias do contribuinte. E o efeito perverso dessa dura realidade é que em ações judiciais do importador, mais especificamente no Mandado de Segurança, a autoridade se vale outra vez da presunção juris tantum de veracidade, sendo vista como se imparcial fosse.
Mas não deve ser assim.
É que, seguindo o alerta de Lenio Luiz Streck, “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa e depois buscar a justificativa”[4]. É isso que a Receita está fazendo.
Nesse cenário, a análise das informações prestadas em Mandado de Segurança, e das acusações feitas em procedimentos de fiscalização, deve ser deveras criteriosa, especialmente porque nessas situações (de importação) a Receita Federal enfatizou claramente seu interesse em obstar/dificultar as operações de comércio exterior, sob o subterfúgio de estar em defesa do mercado doméstico.
Como já consignado na ConJur, pelos advogados Alan Adualdo Peretti de Araujo e Luiz Roberto Peroba Barbosa[5], o juiz “deve sopesar parcialidade da autoridade coatora”, pois não raras vezes ela apresenta informações “defendendo o ato coator como se parte fosse, o que é prática ilegal e que fica ainda mais evidente quando é feita construção jurídica e até mesmo distorção dos fatos, visando validar o ato objeto da impetração”[6].
Assim, embora louvável a tentativa da Receita de punir fraudadores, isso não pode se materializar a qualquer custo, em violação aos direitos fundamentais.
Nesse sentido, a aplicação do princípio da presunção de inocência do Direito Penal é medida que se impõe, o qual, mutatis mutandis, deve preponderar sobre qualquer suspeita, notadamente quando o contribuinte-importador (i) apresenta regularidade em suas importações (histórico de atividade) e (ii) demonstra ter renda disponível para operar (decorrente de empréstimos bancários ou não). Quanto mais se presume a inocência do contribuinte se ele apresenta certidão negativa referente aos tributos federais.
Aqui, na colisão de princípios, onde, de um lado, está o da supremacia do interesse público sobre o particular, e, de outro, o da presunção de inocência, prepondera-se o último, mesmo porque a atividade do importador, ao fim e ao cabo, também é de interesse à coletividade, conquanto gerador de empregos e rendas. Isso fica mais claro ainda quando a presunção de inocência é fomentada por provas de que o contribuinte é importador habitual. Muito embora, vale frisar, o ônus probatório é sempre de quem acusa, e não o inverso.
A solução pela preponderância da presunção de inocência não vem do acaso. É que a Constituição Federal assegura ser a ordem econômica fundada na livre iniciativa, sujeita à observância do princípio da livre concorrência e do direito à propriedade (art. 170, caput, e II e IV, da CF/88).
Em síntese, a punição deve ser para os verdadeiros fraudadores, observado o princípio do devido processo legal, obviamente. Isso é inquestionável. Jamais, entretanto, a retenção de mercadorias deve se apresentar como sanção antecipada de uma suspeita de que aquele contribuinte estaria infringindo a Lei.
Já citado por Raul Haidar, há precedentes famosos aplicáveis à situação em comento, em que se consignou não ser razoável “a aplicação da IN 228/02, haja visa a necessidade da presença de indícios robustos e concretos, não bastando a simples suspeita da autoridade fiscal, para se admitir a restrição da atividade econômica da empresa, pela retenção de mercadoria necessária ao seu funcionamento”[7].
Nunca se precisou tanto de precedentes como esses, em que acertadamente transferem o ônus da prova ao Fisco, e repele acusações sem indícios robustos e concretos da suspeita alegada.
A conclusão que se chega é de uma necessária cautela na análise de todo e qualquer ato de retenção de mercadorias, e de uma releitura dos princípios que dia-a-dia são usados contra nós mesmos, cidadãos-contribuintes.
Eduardo Higashiyama é advogado em Curitiba, autor de Teoria do Direito Sumular.