O ponto nodal do tema versa sobre a possibilidade de aplicação das sanções previstas na Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, para a modalidade de licitação pregão, considerando-se a previsão do artigo 7o da Lei 10.520, de 17 e julho de 2002.
Em uma análise perfunctória, o intérprete é levado à adoção de um posicionamento pela não adoção das penalidades previstas na Lei 8.666, de 1993, em sede de pregão, diante da previsão do artigo 7o da Lei10.520, de 2002, haja vista que esta é posterior e especial em relação à Lei 8.666, de 1993, que é a lei geral em matéria de licitação.
Ocorre que o tema merece maior reflexão.
O pregão foi uma importante inovação na administração pública brasileira, tendo sido concebido com o fito de dar efetividade ao princípio constitucional da eficiência. Com a sua implementação, almejou-se uma maior flexibilização e desburocratização do procedimento licitatório convencional. Destarte, o modelo licitatório menos formal e mais dinâmico, com a inversão na ordem das fases de habilitação e de propostas, estreitou a relação de confiança e de boa-fé entre a administração pública e o particular, culminando em uma presunção de que, ao participar do certame, este preenche os requisitos de habilitação previstos na lei ou no instrumento convocatório.
E isso conduziu a uma fragilidade do ente público, na medida em que não há uma etapa prévia para a análise do preenchimento de tais requisitos. A consequência foi uma maior rigidez na punição do particular que não possua condições e, mesmo assim, participa da licitação[1]. Como a relação de confiança e de boa-fé é presumida, o intencional descumprimento das disposições editalícias, a princípio, apenas acarretaria a gravosa sanção de impedimento de licitar e contratar, pelo prazo de até cinco anos.
Com efeito, diferentemente do que se previu na Lei 8.666, de 1993, na qual se percebe a ausência de tipicidade específica, inexistindo descrição legal do fato que ensejará a aplicação de uma das sanções delineada no seu artigo 87 (há apenas a descrição de infrações genéricas: inexecução total ou parcial do contrato), o artigo 7o da Lei 10.520, de 2002 estabeleceu que as condutas ali delineadas podem ensejar a pena de impedimento de licitar e contratar com o respectivo ente federativo. A atecnia legislativa também permaneceu com a legislação instituidora do pregão.
Preliminarmente, deve-se asseverar que não se deve admitir que exista antinomia entre a Lei 8.666, de 1993, e a Lei 10.520, de 2002. As duas normas não são incompatíveis entre si. Elas possuem validade própria e produzem efeitos próprios, devendo haver uma interação entre ambas.
A orientação sufragada pelo eminente jusfilósofo Norberto Bobbio, no sentido de que o ordenamento jurídico é um complexo orgânico de normas, o qual deve ser coerente, rejeitando-se a validade simultânea de normas incompatíveis entre si, já que a compatibilidade de uma norma com o ordenamento é condição necessária para sua validade, é plenamente aceita[2]. Assim, o Direito não tolera antinomias.
O tema merece uma breve digressão. O Supremo Tribunal Federal, já decidiu, na ADI 1.668-5, que é constitucional a criação de procedimentos licitatórios distintos dos previstos na Lei 8.666, de 1993. A questão posta à análise foi a inovação introduzida pelo parágrafo único do artigo 54 da Lei 9.472, de 16 de julho de 1997, a Lei Geral de Telecomunicações, que possibilitou a Anatel de utilizar, para a contratação de obras e serviços, os procedimentos próprios das modalidades ali criadas: a consulta e o pregão.
O voto condutor da decisão emanada pelo STF afirmou que o inciso XXVII do artigo 22 da Constituição Federal não obriga a edição de lei única, pois, uma coisa é poder editar normas gerais sobre todas as modalidades, obrigatórias para todos os entes federativos. Outra coisa seria obrigar existir uma lei geral para todas modalidades. O Pretório Excelso, pois, indeferiu o pedido de medida cautelar, em sede da referida ADI, no tocante ao parágrafo único do artigo 54 da Lei 9.472, de 1997.
Sem emanar qualquer juízo de valor acerca dos argumentos condutores da decisão prolatada, o fato é que não foi afetada a eficácia do parágrafo único do artigo 54 da LGT. Por tal interpretação, o disposto no parágrafo 8o do artigo 22 da Lei 8.666, de 1993, que veda a criação de novas modalidades de licitação, foi efetivamente tornado sem efeito, pois foi definitivamente assentado que o disposto no inciso XXVII do artigo 22 da Carta Magna não exclui a possibilidade de serem criadas em lei específica outras modalidades de licitações.
Com isso, a Lei 10.520, de 2002 (oriunda da MP 2.026, de 4 de maio de 2000), diante da decisão do STF, é plenamente constitucional. Assim, a Lei 8.666, de 1993 e a Lei 10.520, de 2002 são normas gerais em matéria de licitação, na medida em que regulamentam o inciso XXI do artigo 37 da Constituição. Com efeito, não merece prosperar o argumento de que a Lei 10.520, de 2002, é especial, além de posterior, afastando a aplicação das penalidades previstas no artigo 87 da Lei 8.666, de 1993.
Apesar de configurar norma geral, sob pena de antinomia, a Lei 10.520, de 2002, é aplicada especificamente à modalidade pregão. A Lei 8.666, de 1993, apenas deverá ser aplicada quando a Lei 10.520, de 2002 for silente, conforme dispõe o seu artigo 9o.
A par dos diversos posicionamentos acerca do tema, vislumbra-se que a Lei 10.520, de 2002, apesar de sua natureza de norma geral, é sim específica no que tange à matéria por ela tratada, tendo em vista sua aplicação restrita ao pregão.
Nesse diapasão, não há possibilidade de aplicação das penalidades insertas nos incisos III e IV do artigo 87 da Lei de Licitações na esfera do pregão. Isso porque, ao se proceder à análise de tais espécies, observa-se que a sanção de que trata o artigo 7o da Lei 10.520, de 2002, acaba por se confundir com as sanções descritas nos incisos III e IV do artigo 87 da Lei 8.666, de 1993. O que sucede é que o campo de incidência de tais normas, ou seja, os fatos aptos a ensejarem a aplicação de tais penalidades, são os mesmos. Isso não quer dizer que sejam as mesmas penalidades. Elas guardam dessemelhança, na medida em as autoridades competentes para a aplicação de tais penas, e as suas esferas de aplicação, são diversas.
Outrossim, a penalidade de “impedimento” prevista na Lei do Pregão tem natureza mais próxima a da penalidade de “suspensão” prevista no artigo 87, III, da Lei 8.666, de 1993, devendo esta última ser utilizada como parâmetro para a interpretação do artigo 7o da Lei 10.520, de 2002. Tal raciocínio propicia que se vede a imposição de diferentes sanções, em razão da mesma conduta, sem o necessário respaldo legal, em clara afronta ao princípio da legalidade[3].
Igualmente, esse raciocínio também veda que haja escolha discricionária, pelo gestor, da legislação a ser aplicada no caso concreto, em ofensa aos princípios da segurança jurídica, na medida em que o autor da infração ficaria sem saber, previamente, em qual lei esta seria enquadrada, e do non bis in idem, o qual proíbe a punição pelo mesmo fato mais de uma vez na mesma esfera de atribuição (penal, civil e administrativa).
Recorde-se que, embora não haja previsão legal expressa, até por que o princípio do non bis in idem nasceu de uma construção doutrinária, este irradia sobre os atos administrativos, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, afigurando-se uma limitação ao poder punitivo do Estado, na medida em que será aplicada a sanção correspondente e suficiente para as suas condutas[4].
A consagração do princípio da proporcionalidade
No exercício do mister sancionatório, o Poder Público deve respeitar os direitos e garantias dos administrados, a fim de que os princípios consagrados no corpo da Constituição Federal sejam devidamente respeitados. Com o êxito do constitucionalismo, e a consequente positivação dos direitos e garantias individuais, a atuação do Estado em face dos indivíduos foi limitada. Assim, para a administração aplicar sanções por infrações administrativas, deve-se respeito à legalidade estrita, à tipicidade, ao devido processo legal e à razoabilidade.
O posicionamento pela aplicação das penalidades descritas em ambas as legislações, em sede de pregão, à exceção daquelas delineadas nos incisos III e IV da Lei 8.666, de 1993, visa à consagração do princípio da proporcionalidade. No sistema pátrio, o princípio da proporcionalidade, embora não de modo expresso, tem fundamento na atual Constituição, especificamente no parágrafo 2o do artigo 5o, que se refere à parte não-escrita dos direitos e garantias constitucionais, assim como na essência do Estado Democrático de Direito (art. 1o da CF), cujo fundamento é a dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1o da CF) e como objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Posto isso, é inegável o status constitucional conferido ao princípio da proporcionalidade, considerando-se a própria essência da Constituição Cidadã, o qual impõe ao legislador e ao administrador o dever de considerar a harmonia entre os meios e os fins colimados na função estatal cujo exercício lhes é imputado. Aliás, tal princípio é vetor do processo administrativo federal, previsto expressamente no artigo 2o, caput, da Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999. O princípio da proporcionalidade é faceta da razoabilidade[5] e permite ao intérprete aferir a compatibilidade entre meios e fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas contra os direitos fundamentais. O Egrégio Supremo Tribunal Federal já assentou que o princípio do devido processo legal possui uma dupla dimensão: procedimental (procedural due process) e substantiva (substantive due process). A razoabilidade é uma dimensão do “substantive due process of law”.
Nessa esteira, tal princípio deve ser encarado como inibidor do abuso do Poder Público no exercício das funções que lhes são inerentes, notadamente a legislativa e a regulamentar, e, não poderia ser diferente, a sancionatória. Dentro dessa perspectiva, o postulado em tela atua como verdadeiro parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.
Dessa forma, vislumbra-se, claramente, a relevância que o princípio da proporcionalidade assumiu, e vem assumindo, na seara do Direito Administrativo Punitivo, norteando as definições das sanções administrativas cabíveis e nas suas gradações, considerando-se a gravidade das infrações cometidas em cada caso. Fica claro, pois, que o jus puniendi do Estado está obrigado a observar esse relevante princípio.
Destarte, é salutar que, no âmbito do pregão, possa ser aplicada a sanção de menor gravidade — advertência —, prevista no inciso I do artigo 87 da Lei 8.666, de 1993. Não raras vezes, a situação fática posta poderá configurar a aplicação dessa penalidade mais branda. A Lei 8.666, de 1993, merece aplausos ao estabelecer uma escala gradativa de gravidade das penalidades. Isso permite ao administrador a possibilidade de o fato punível ser apenado adequadamente: para uma infração branda, uma penalidade branda; para uma infração grave, uma penalidade grave.
Deve-se destacar que a penalidade a ser aplicada deve ser adequada a infração cometida. Portanto, seria uma afronta à proporcionalidade defender que, no âmbito do pregão, infrações menos graves seriam apenadas com a sanção do artigo 7o da Lei 10.520, de 2002. Ao comentar o já referido artigo 7o da Lei 10.520, de 2002, o eminente Joel de Menezes Niebuhr[6], aduz que “os agentes administrativos, conquanto devem obediência ao prescrito no art. 7o da Lei 10.520/02, devem também interpretá-lo de modo consoante aos demais princípios jurídicos informadores da matéria, entre os quais merece destaque o da proporcionalidade”.
O egrégio TCU parece considerar como correta a aplicação cumulativa das penalidades previstas nos dois diplomas, ao asseverar que “essas penalidades não excluem as multas previstas no edital e no contrato e demais cominações legais, em especial as estabelecidas na Lei 8.666, de 1993”[7]. Ademais, a Corte de Contas já assentou, com fulcro na mencionada doutrina, que, para a correta aplicação da exegese do artigo 7o da Lei 10.520, de 2002, “deve a administração avaliar a reprovabilidade da conduta impugnada e aplicar a sanção de acordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade”[8].
Por derradeiro, as punições aplicadas devem ser proporcionais à infração cometida, sob pena de se incorrer no vício de legalidade, na medida em que uma providência desarrazoada não pode ser havida como comportada pela lei. E os órgãos encarregados da aplicação do Direito devem observar a necessidade de as penas serem individualizadas, haja vista que a norma prevista no inciso XLVI do artigo 5o da Constituição Federal também é aplicável ao Direito Administrativo punitivo. Nessa tarefa, deve ficar claro que “a individualização da pena significa adaptá-la ao condenado, consideradas as características do agente e do delito”[9].
De tudo o que aqui exposto, infere-se que o princípio da proporcionalidade deve servir de parâmetro limitador da discricionariedade administrativa. E nessa mesma linha de pensamento, o STJ se manifestou no sentido de que no campo sancionatório, é imprescindível o respeito ao princípio da proporcionalidade (Resp. 505068/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, Primeira Turma, Data do julgamento: 09/09/2003, DJ 29/09/2003 p. 164).
Conclusão
Por todas as considerações ora tecidas, conclui-se no sentido de que a Lei 8.666, de 1993 e a Lei 10.520, de 2002 são normas gerais em matéria de licitação, na medida em que regulamentam o inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, não merecendo prosperar o argumento de que a Lei 10.520, de 2002, é especial, além de posterior, o que afastaria a aplicação das penalidades previstas no artigo 87 da Lei 8.666, de 1993. Ambas as leis são compatíveis entre si, possuindo validade própria e produzindo efeitos próprios, porém não devem ser aplicadas simultaneamente.
A amplitude das condutas descritas no artigo 7o da Lei do Pregão apresenta campo de incidência semelhante àquelas condutas ensejadoras da aplicação das penas previstas nos incisos III e IV da Lei de Licitações, motivo pelo qual, diante da ocorrência de um fato descrito pelo aludido artigo 7o, deve ser aplicada a sanção prevista em seu bojo, diante dos princípios da legalidade, da segurança jurídica e do non bis in idem. Finalmente, deve-se proceder à aplicação da penalidade prevista no inciso I do artigo 87 da Lei 8.666, de 1993 no âmbito do pregão, em respeito à proporcionalidade