Por Wellington Souza de Andrade
Muitos esforços têm sido dispendidos para facilitar o acesso à Justiça e diminuir as burocracias cartorárias que atravancam o desenvolvimento do país. A insurgência, porém, ainda é tímida no que tange aos “penduricalhos” que são adicionados às custas judiciais e aos emolumentos extrajudiciais cobrados no estado do Rio de Janeiro.
A Procuradoria Geral da República, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.111[1], ajuizada em janeiro de 2003, acertadamente questiona a validade da norma[2]que permite que a receita proveniente de emolumentos seja destinada para entidades de assistência a autoridades do Judiciário e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, como a Mútua dos Magistrados, a Caixa de Assistência do MP/RJ, além da Associação dos Notários e Registradores do estado (Anoreg/RJ).
Por terem sido criados após a propositura daquela ADI, outros dois “penduricalhos”, de constitucionalidade igualmente duvidosa, não fizeram parte do seu objeto: o Fundperj e o Funperj.
A Lei Estadual 4.664, de 14 de dezembro de 2005, instituiu o Fundo Especial da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro —Fundperj.
Pouco tempo depois, a Lei Complementar Estadual 111, de 13 de março de 2006, instituiu o Fundo Especial da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro — Funperj.
Constituem receitas dos referidos fundos, dentre outras, “5% (cinco por cento) oriundo das receitas incidentes sobre recolhimento de custas e emolumentos extrajudiciais”, conforme previsto no artigo 4º, III da lei 4.664/2005 e artigo 31, III da Lei Complementar 111/06.
Mesmo sem explícita autorização legal, esses custos são expressa e destacadamente repassados aos consumidores, somados aos valores dos emolumentos, sob a rubrica “acréscimos legais”. Neste sentido, basta observar, por exemplo, o recibo de um pedido de certidão de ônus reais ou a guia de recolhimento de custas judiciais.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.643-2, na qual questionava-se a validade dos repasses feitos para o Fundperj, o relator, ministro Carlos Britto, consignou no item 19 do seu voto:
“… É que o dispositivo impugnado nesta ação direta não instituiu uma exação que se amolde à definição de imposto. Criou, isto sim, uma taxa em razão do poder de polícia. Poder que assiste aos estados-membros enquanto delegantes de atividade notarial e de registro e exercitável pelos órgãos de cúpula do Poder Judiciário de cada qual dessas unidades estaduais da nossa Federação. (…)”
Mais adiante, no item 21, complementa o ministro-relator:
“Acresce que, diferentemente dos impostos, o fato gerador da taxa é sempre uma concreta e específica atividade estatal perante o contribuinte. No caso, atividade que o Estado-delegante desempenha frente ao agente-delegatário, em prol da segurança e presteza das relações por este mantidas com os destinatários da serventia (que são, já foi dito, os eventuais tomadores dos serviços registrais e de notas). Restando claro que o fundamento lógico e ético da exação mediante taxa é financiar as despesas estatais com o desempenho de uma necessária atividade de vigilância, orientação e correição sobre o modo pelo qual o agente-delegado operacionaliza a serventia sob os seus imediatos cuidados. (…)”
Tendo em vista que a legislação instituidora do Funperj (Lei Complementar Estadual 111, de 13 de março de 2006) é bastante semelhante à que instituiu o Fundperj (Lei Estadual 4.664, de 14 de dezembro de 2005), pode-se concluir que a receita destinada ao fundo da Procuradoria do Estado também origina-se na cobrança de uma taxa em razão do poder de polícia, conforme assentado pelo STF no julgamento da ADI 3643-2.
Diante desses fatos é que surgem dúvidas quanto à validade da cobrança imposta aos consumidores por parte dos agentes-delegatários, pois:
a) Se as receitas destinadas aos mencionados fundos são oriundas de taxas cobradas em razão de atividade fiscalizatória, essas taxas não deveriam ter sido previamente instituídas por leis específicas, estabelecendo seu fato gerador, base de cálculo, alíquotas, contribuintes, hipóteses de não incidência e destinação de sua arrecadação? Sem essa lei prévia e específica, seria válida a cobrança e o repasse desses valores ao Funperj e ao Fundperj?
Salvo melhor juízo, a cobrança desses valores está sendo feita diretamente com base nas legislações que criaram aqueles fundos, e não com fundamento em lei específica instituidora de taxa em razão do poder de polícia.
b) Como se tratam de taxas, poderia o Estado cobrar duas vezes (Fundperj e Funperj) pelo exercício de uma mesma atividade fiscalizatória? Uma coisa seria o Estado cobrar 10% a título de taxa, dos quais 5% seriam destinados para o Fundperj e 5% para o Funperj. Outra é a dúplice cobrança de 5% pelo exercício da mesmíssima atividade fiscalizatória;
c) As leis instituidoras daqueles fundos explicitamente não apontaram os consumidores como sendo os contribuintes das referidas taxas;
d) Considerando que se tratam de taxas em razão do poder de polícia, o contribuinte do tributo deveria ser o agente que é fiscalizado, ou seja, o agente-delegatário que desempenha atividade notarial e de registro. O consumidor, por não exercer esta função nem ser fiscalizado, não poderia ser contribuinte de direito dessa taxa;
e) Se o contribuinte das mencionadas taxas são os agentes-delegatários, as mesmas deveriam ser deduzidas dos emolumentos por eles recebidos e repassadas ao Estado, ao invés de serem adicionadas aos preços cobrados dos consumidores. Se o agente delegatário recebe, por exemplo, R$ 100,00, os 5% têm que ser deduzidos deste valor, e não acrescentados;
f) Ambas as leis estabelecem que os 5% (cinco por cento) serão oriundos das receitas incidentes sobre recolhimento de custas e emolumentos extrajudiciais. Ora, se os consumidores não auferem tais receitas, como poderiam ser obrigados a pagar uma taxa sobre algo que não recebem?
Vale lembrar que receita é o produto da venda de bens nas operações de conta própria, o preço dos serviços prestados e o resultado auferido nas operações de conta alheia, excluídas as vendas canceladas, as devoluções de vendas, os descontos incondicionais concedidos e os impostos não cumulativos cobrados, destacadamente do comprador ou contratante, e dos quais o vendedor dos bens ou prestador dos serviços seja mero depositário;
g) Em pesquisa realizada nos sítios da Procuradoria-Geral do Estado e da Defensoria Pública nada foi encontrado sobre os respectivos fundos. Pouco se sabe sobre suas receitas e qual foi a destinação dos recursos. Não se sabe quais projetos já foram ou serão desenvolvidos, tampouco os custos dos mesmos. A transparência é nenhuma. Membros da OAB, do MP e da sociedade civil deveriam fazer parte do Conselho Gestor desses fundos, de modo que fosse possível a manifestação de opinião sobre os projetos, assim como sua fiscalização;
h) Por quanto tempo esses órgãos precisarão desse volume de recursos? A médio ou longo prazo essas necessidades não tenderiam a diminuir?
i) As receitas desses fundos não deveriam estar atreladas a atividades e projetos específicos, com custos previamente conhecidos? Da forma como estão, a discricionariedade é por demais ampla e seu controle é bastante difícil. Com esses recursos é possível pagar reformas prediais, adquirir móveis e veículos, pagar despesas com viagens, telecomunicações, energia elétrica, cafezinho, açúcar e chá. Será que é para isso mesmo que esses fundos foram instituídos?
Essas são apenas algumas de diversas outras dúvidas que devem existir sobre a matéria. As ponderações que fizemos são propositalmente superficiais e inconclusivas, sendo certo que sua finalidade resume-se a estimular o debate.
Não se pretende, aqui, desmerecer o valioso trabalho desenvolvido pela Procuradoria do Estado e, sobretudo, pela Defensoria Pública. Muito pelo contrário. Embora desempenhem importantíssimo papel, é inegável que os recursos orçamentários dessas instituições são inversamente proporcionais às suas necessidades. Esse problema, porém, é de natureza política, pois envolve as prioridades escolhidas por um governo, e jamais será resolvido com a simples e indiscriminada criação de fundos. Neste sentido, merecem destaque as argutas palavras da ministra Cármen Lúcia, proferidas em seu voto na ADI 3.643-2:
“Se se começar a criar fundos — não estou dizendo que este não possa — porque os Poderes pensam que não têm condições de cumprir o que a Constituição estabelece, daqui a pouco teremos de rasgar esta Constituição. Na verdade, não é por falta de dinheiro, porque há dinheiro para publicidade. Para isso, não falta nos governos. Portanto, não é por isso.”
Independentemente, portanto, da tese que venha a prevalecer, é necessário refletirmos sobre essas questões, caso contrário num futuro não muito distante serão criados fundos para manutenção das Polícias Civil e Militar, das escolas públicas, dos hospitais, para preservação das cachoeiras etc. E quem pagará a conta? Pois é…
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[1] O Ministro-relator, Cezar Peluso, monocraticamente indeferiu a petição inicial. Contra esta decisão foi interposto recurso de agravo regimental, que encontra-se pendente de julgamento.
[2] Artigo 1º da Lei 3.761/02 do estado do Rio de Janeiro, na parte em que altera o parágrafo primeiro do artigo 10 do Decreto-Lei 122/69.
Wellington Souza de Andrade é advogado.