Tribunal Eleitoral não deve julgar contas de candidato

Por Zulmar Duarte de Oliveira Junior

Uma questão interessante tem surgido na aplicação da alínea g do inciso I do artigo 1o da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, quiçá pela nova redação atribuída pela dita Lei da Ficha Limpa — Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010.

O tema está ligado à necessidade dos Tribunais de Contas reverem os critérios para formação das listas de que trata o artigo 11, parágrafo 5o, da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997.

“Parágrafo 5º Até a data a que se refere este artigo, os Tribunais e Conselhos de Contas deverão tornar disponíveis à Justiça Eleitoral relação dos que tiveram suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, ressalvados os casos em que a questão estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, ou que haja sentença judicial favorável ao interessado”.

No passado recente, até mesmo pela eficácia prospectiva dada à Lei da Ficha Limpa pelo Supremo Tribunal Federal (RE 633703, relator ministro Gilmar Mendes), os Tribunais de Contas formavam sua lista prescindindo de qualquer análise subjetiva das condutas administrativas retratadas nas contas.

Agora, independentemente disso, essa nova visão (revisão) sobre as listas também tem implicado numa discussão marginal, notadamente sobre o papel do Tribunal de Contas na formação das listas, na conformação da (in)elegibilidade do candidato.

É que alguns juízes eleitorais têm considerado irrelevante a ausência do candidato na lista do Tribunal de Contas, de que trata o referido artigo 11, parágrafo 5o, a Lei 9.504/97, para fins da inelegibilidade estatuída na citada alínea g.

A nosso ver, tal interpretação está ancorada numa percepção que olvida o sentido e alcance[1] do enunciado normativo listado no artigo 1o, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64/90.

Com a devida licença, porque necessário ao desenvolvimento do raciocínio, colaciona-se o texto:

“Artigo 1º São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:

(…).

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;

(…).” (sublinhamos).

Pois bem, da leitura da regra jurídica se debuxa seu suporte fático (tatbestand), aqueles elementos factuais necessários e suficientes a sua incidência, a sua eficácia jurídica.

Como é intuitivo a regra jurídica discrimina o que tem por importante e imprescindível para a atribuição de consequências na ordem jurídica, adjudicando ao fático o adjetivo de jurídico. É como um carimbo que colore o fato para, a partir daí, ser fato jurídico (Pontes de Miranda).

Nessa linha, a citada lei complementar, em idêntica metodologia, distingue o conjunto de fatos que, presentes, são considerados para a inelegibilidade de determinado candidato.

Portanto, necessária a presença de todos os fatos exigidos pela norma (suporte fático complexo), uma vez que o déficit no preenchimento do suporte fático implica na desconsideração dos demais elementos fáticos, por si só insuficientes. Como bem demonstrado pela teoria geral do direito, a incidência da norma jurídica é uma questão de tudo ou nada, incidência ou não incidência.

Assim, debulhando a hipótese legal em consideração, verifica-se que é condição imprescindível, sine qua non, para sua operação, a circunstância d as contas do administrador terem sido rejeitadas por irregularidade insanável.

A distinção não é casual

O Tribunal de Contas deve-pode[2] rejeitar as contas dos administradores por um sem número de motivos — predispostos cada qual nas respectivas leis orgânicas —, mas nem todas estas rejeições são consideradas insanáveis, isto é, não passíveis de serem salvas.

O adjetivo insanável somente poderá ser atribuído àquelas contas que, além dos descompassos administrativos, não puderem ser corrigidas por atos supervenientes do gestor. Onde o mal feito é irremediável.

Por conseguinte, os Tribunais de Contas, na formação da lista a ser enviada ao Tribunal Regional Eleitoral, somente incluirá as contas que possam ser qualificadas como insanáveis, como fica claro da leitura do artigo 11, parágrafo 5o, da Lei 9.504.

Reforce-se, lista cuja elaboração compete ao Tribunal de Contas e que, necessariamente, deve observar a “irregularidade insanável” da Conta a ser relacionada, visando posterior remessa à consideração do Tribunal Regional Eleitoral.

E aí, embora seja possível aos magistrados desconsiderar, no procedimento eleitoral, a insanabilidade atestada pelo Tribunal de Contas, o inverso não é verdadeiro.

Justamente, o suporte fático do artigo 1o, inciso I, alínea g, da LC 64/90 exige que as contas tenham sido “rejeitadas por irregularidade insanável” pelo “órgão competente” para seu julgamento.

Nada menos

Enfrentando diretamente o tema, o Tribunal Superior Eleitoral exarou:

“RECURSO ESPECIAL. REGISTRO DE CANDIDATO. REJEICAO DE CONTAS PELO TCU. ART. 71, INCISO VI, DA CONSTITUICAO.

CABE AO TCU O JULGAMENTO DAS CONTAS DO PREFEITO RELATIVAS A RECURSOS REPASSADOS PELA UNIAO.

CASO EM QUE A CORTE DE CONTAS TEVE POR DESCABIDA A INCLUSAO DO NOME DO RESPONSAVEL NA LISTA DE INELEGIVEIS.

HIPOTESE EM QUE NAO SE PODE TER POR INCIDENTE A NORMA DO ART. 1, I, “G”, DA LC N. 64/90.

RECURSO NAO CONHECIDO.” (RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 13209, Acórdão nº 13209 de 22/10/1996, Relator(a) Min. ILMAR NASCIMENTO GALVÃO, Publicação: RJTSE – Revista de Jurisprudência do TSE, Volume 8, Tomo 3, Página 99 PSESS – Publicado em Sessão, Data 22/10/1996).

Noutro precedente, de lavra eminente ministro Luiz Carlos Madeira, consignou-se: “A não-inclusão do nome permite a conclusão de que a rejeição se fez por irregularidades sanáveis” (RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 23565, Acórdão nº 23565 de 21/10/2004, Relator(a) Min. LUIZ CARLOS LOPES MADEIRA, Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 21/10/2004 RJTSE – Revista de Jurisprudência do TSE, Volume 15, Tomo 4, Página 245).

Mesmo porque, em tal hipótese, o Tribunal de Contas deixa de ser mero órgão ancilar, para ser arvorar como órgão competente na fixação da responsabilidade do gestor, sendo dotada suas decisões de eficácia executiva (CRFB/88, artigo 71, parágrafo 3o).

Demais disso, não deve estranhar a possibilidade de revisão pela Justiça Eleitoral da inclusão na lista, mas ser lhe interdita a análise da não inclusão. Isso é próprio da organicidade do direito, da costura do mesmo fato ou complexo de fatos por diferentes regras jurídicas.

É a diversidade nos suportes fáticos: “No mundo jurídico, ele é múltiplo; entrou, ou reentrou por várias aberturas, levado por diferentes regras jurídicas, sem deixar de ser, fora desse mundo, ou nele mesmo, inicialmente, um só”[3].

Ora bem, para ficarmos apenas num exemplo dessa confluência para frente entre atividade administrativa e a jurisdicional, podemos lembrar da hipótese estatuída no enunciado de Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1o, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.

Nessa hipótese, o tipo de sonegação somente se realiza com o lançamento administrativo definitivo, ainda que isto não seja suficiente a condenação criminal.

No ponto, o vício insanável só existe se constatado pelo Tribunal de Contas, com a respectiva inclusão na lista, conquanto não seja suficiente para o decreto de inelegibilidade.

Colhe-se a advertência ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Marcelo Ribeiro, em artigo recentemente veiculado neste espaço digital: “Não poderá, evidentemente, como já não podia e não fazia, imiscuir-se no julgamento das contas, que não é da sua competência” [4].

Dito às claras e às secas, vedado ao Judiciário Eleitoral adentrar no exame do julgamento do Tribunal de Contas, para diversamente do que concluído pelo último assentar a insanabilidade dos vícios expungidos, incluindo virtualmente o que excluído propositadamente da relação enviada pelo último ao primeiro.

Ao Judiciário compete, exclusivamente, analisando o julgamento objeto da lista, aferir se a conduta indigitada se amolda a tipologia do ato de improbidade, bem como a existência de vontade consciente em realizá-lo (dolo).

Tão só

Destarte, acaso o nome do candidato não conste da lista encaminhada pelo Tribunal de Contas à Corte Eleitoral, inviável considerar descompassos em suas contas para fins de inelegibilidade, posto que, a não inclusão pelo Tribunal de Contas, significa o carimbo de sanabilidade das irregularidades.

Pensamento diverso, com todas as vênias, é relegar a inocuidade (para dizer pouco) a relação de que trata o artigo 11, parágrafo 5o, da lei no 9.504/97.

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[1]MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

[2] “Tendo em vista este cárater de assujeitamento do poder a uma finalidade instituída no interesse de todos – e não da pessoa exercente do poder –, as prerrogativas da Administração não devem ser vistas ou denominadas como ‘poderes’ ou como ‘poderes-deveres’. Assim se qualificam e melhor se designam como ‘deveres-poderes’, pois nisto se ressalta sua índole própria e se atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então, o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas inerentes limitações.” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 236).

[3] MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado: parte geral; introdução; pessoas físicas e jurídicas. 2. ed. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2000. Tomo I, p. 74.

[4] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-ago-06/marcelo-ribeiro-reprovacao-contas-administradores-inelegibilidade Acesso em: 7-ago-12.

Zulmar Duarte de Oliveira Junior é advogado. Foi procurador do município de Imbituba (SC).

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