Eutanásia e ortotanásia no projeto do Código Penal

Por Ronaldo Lastres Silva

Durante muito tempo, os mais diversos tipos de comportamentos, comissivos ou omissivos, ligados à morte com intervenção, nem sempre dirigidos ao enfermo terminal, eram denominados “eutanásia”. Com a pretensão de se pôr um basta a essa polissemia, bioéticos passaram a conceituar e dar nomes a essas diversas condutas. Assim, surgiram termos como eutanásia, distanásia, ortotanásia, suicídio assistido, recusa de tratamento médico e limitação consentida de tratamento, compreendendo esta, entre outras medidas, a retirada de suporte vital, a não oferta de suporte vital e a ordem de não ressuscitação ou de não reanimação — não necessariamente nesta ordem — entre outros. Ocupar-nos-emos aqui apenas dos três primeiros procedimentos: eutanásia, distanásia e ortotanásia.

Eutanásia, do grego “eu” (bem; de boa constituição) e “thanasia” (morte), significa boa morte ou morte sem dor, tranquila, sem sofrimento. Podemos conceituá-la, hoje, como sendo a prática, por motivo piedoso, mas sem amparo legal, pela qual se busca abreviar, sem dor ou sofrimento, a vida de um doente reconhecidamente incurável.

Distanásia (de dys, ato defeituoso, + thanasia, morte) significa morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento. É o contrário da eutanásia. É o prolongamento exagerado da agonia e do sofrimento, ou, em outras palavras, o tratamento inútil, cuja consequência é uma morte medicamente lenta e prolongada acompanhada, quase sempre, de sofrimento. Nesta conduta, não se prolonga a vida, mas sim o processo de morrer. É a obstinação terapêutica — l’acharnement thérapeutique — como chamam os franceses, ou medical futility (futilidade médica), como denominam os ingleses e estadunidenses.

Temos, assim, de um lado a eutanásia, como abreviação da vida, e de outro a distanásia, como prolongamento da agonia, do sofrimento da morte e a postergação de sua chegada. Entre os dois extremos se encontra a ortotanásia (do grego orthó, é, ón – El. Comp. = direito, reto, normal, em linha reta ou direita + thanasia) para se falar da morte digna, sem abreviações desnecessárias e sem sofrimentos adicionais, isto é, a morte em seu tempo certo. Na ortotanásia não se quer a morte do paciente terminal, mas sim, uma vez constatada que a morte é iminente e inevitável, abandonar os meios extraordinários — que, por serem facultativos e altamente custosos, fogem aos meios terapêuticos comuns, produzindo vida artificial — e desproporcionais, que só produzem sofrimentos adicionais, dando àquele enfermo terminal, em contrapartida, o maior conforto material e espiritual até que a morte surja de forma natural.

O Projeto do Novo Código Penal, com uma visão bastante liberal e humana, em bom momento, resolveu criar a figura típica de eutanásia (artigo 122), com pena de dois a quatro anos de prisão, encontrando-se referida conduta assim descrita:
“Artigo 122 – Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave.”

Hoje, a eutanásia é tida pela doutrina e pela jurisprudência como homicídio privilegiado, por motivo de relevante valor moral, que permite ao juiz diminuir a pena do homicídio simples (seis a vinte anos) de um sexto a um terço, com o que se verifica que, embora ainda criminalizada, a eutanásia, à luz do projeto, é tratada de forma menos gravosa do que atualmente, razão pela qual, nesse ponto, a proposta da Comissão de Juristas encarregada de elaborar um novo Código Penal, que atenda aos atuais reclamos da sociedade, merece nossos aplausos.

Havemos também de concordar com a hipótese de perdão judicial prevista no parágrafo 1º, do aludido artigo 122, do projeto, da seguinte forma elaborada:
“Parágrafo único – O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.”

Todavia não concordamos com a figura sem identificação, descrita pelo parágrafo 2º, do citado dispositivo, sob a rubrica de exclusão de ilicitude, que vem a ser, na verdade, espécie de eutanásia passiva, a qual não possui aceitação entre os bioéticos, médicos e religiosos, por isso esse parágrafo, da forma como foi concebido, deve ser rejeitado. Com efeito, eis a descrição da conduta que se pretende descriminalizar:
“Parágrafo 2º – Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.”

Se a Comissão pretendia descriminalizar a ortotanásia, não foi feliz, data venia, em seu intento, eis que, ante a ausência dos principais requisitos de tal procedimento, quais sejam os cuidados paliativos, com controle do sofrimento e da dor, a descrição caracteriza eutanásia passiva, que não pode ser aceita como descriminante. Ademais, é necessário que se entenda que na ortotanásia não se quer a morte do enfermo para acabar com o seu sofrimento, mas sim dar a ele o maior conforto material e espiritual possível até que a morte surja de forma natural, por isso sua descriminalização, a nosso ver, deve figurar no capítulo que trata dos crimes de periclitação da vida, da integridade física e da saúde com a descrição correta e sob a rubrica de ortotanásia.

Por tais motivos, sugerimos que seja acrescentado um parágrafo (o parágrafo 2º) ao artigo 132 (omissão de socorro), do projeto, com a seguinte redação:
“Ortotanásia
§ 2º Não constitui crime, no âmbito dos cuidados paliativos, aplicados a paciente terminal, deixar, o médico, de fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários, em situação de morte iminente e inevitável, previamente atestada por dois médicos, desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.
§ 3º A excludente prevista no parágrafo acima não se aplica em caso de omissão de uso de meios terapêuticos ordinários e proporcionais devidos a paciente terminal.
Cuidados paliativos
§ 4º Ao doente terminal será garantida a continuação de todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento e, bem assim, a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social, espiritual, e, inclusive, o direito da alta hospitalar.”

Temos a plena convicção de que, concebida desta forma, a descriminante que se pretende incluir no novo Código Penal encontrará o necessário apoio dos bioéticos, médicos e grupos de religiosos, mesmo porque estará de acordo com a Resolução 1.805/2006, do Conselho Federal de Medicina que, assim, estabelece: “Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.”

Ronaldo Lastres Silva é advogado, juiz aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Foi defensor público e promotor de Justiça.

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