O Projeto de Lei do Código Penal e sua retórica

Por Luís Greco

Nas últimas semanas, testemunhamos um episódio, ao que me parece, inédito na história do direito penal brasileiro. A comunidade jurídica, de início ainda aos sussurros, agora em voz alta e sonora, reage. Em entrevistas[1], artigos científicos[2], congressos[3] e um abaixo-assinado que já conta com mais de mil assinaturas[4], ela manifesta seu decidido repúdio ao vergonhoso Projeto de Código Penal, documento irrefletido e atrapalhado, elaborado apressuradamente e à sua revelia, e que, ainda assim ou justamente por isso, alguns querem transformar em lei o quanto antes. O relator geral da Comissão de Juristas que elaborou o Projeto, Dr. Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, há poucos dias veio a público, com sua resposta.[5] Essa resposta não satisfaz, como tentarei demonstrar na presente réplica.

A resposta sugere humildade. Ela inicia agradecendo pelas críticas e, principalmente, reconhecendo uma série de erros: “Erros foram apontados no anteprojeto. Eles existem. A Comissão de Juristas jamais se imaginou infalível…”. Falsa humildade, entretanto. Porque os erros reconhecidos, que a resposta enumera, são logo qualificados como “erros facilmente corrigíveis pela Comissão de Senadores encarregada de examiná-lo.” O resto, segundo a resposta, não são erros, mas “opções político-criminais firmadas pela Comissão de Juristas, ainda que por maioria de votos e de opinião”, ou questões relativas a “correntes de pensamento, grupos de opinião, escolas, mundividências e pontos de vista os mais diversos”. Ou seja, o Projeto conteria, é verdade, alguns deslizes facilmente corrigíveis; o resto seria ou questão de orientação político-criminal, ou de filiação doutrinária, e aqui não haveria certo ou errado. Orientação político-criminal e filiação doutrinária seriam, tem-se a impressão, como time de futebol: cada qual com o seu.

Com isso, a resposta mostra que, por trás da máscara da humildade, existe apenas desprezo pela crítica. Aparentemente, a resposta a declara bem-vinda; mas a resposta não responde a nenhuma das muitas e cuidadosamente fundadas objeções. O grosso da crítica, que se faz cada vez mais audível na comunidade jurídica, não se limita a dizer “meu time é melhor”, como dá a entender a resposta. A crítica diz: “essa orientação político-criminal subjacente ao Código é errônea, por esta e aquela razão”; “essa tese doutrinária não pode ser inscrita em um Código, por razão disso e daquilo outro”. A crítica se reporta, em boa parte, a considerações de natureza técnica, e o direito, se não é de exatidão matemática, tampouco é mera questão de gosto, como quer fazer crer a resposta.

Não cabe, aqui, repetir as críticas. Elas foram formuladas com o devido cuidado noutra sede, à qual aqui cumpre apenas remeter (cf. as notas 2-5, supra). A resposta prefere, contudo, ignorar soberanamente todo o peso dessas muitas razões. Ela não as menciona, muito menos as refuta. Pelo contrário, ela se socorre de dois artifícios. O primeiro deles é um tanto tosco; já o segundo é quase maquiavélico.

O artifício tosco é algo de que já se valera a Exposição de Motivos, o qual a crítica rapidamente desmascarou. Trata-se da estratégia dos slogans vazios. O Projeto é qualificado de “moderno, descriminalizador e descarceirizador”. Nenhuma palavra é dita a respeito do porquê dessas qualidades. A crítica é tachada de conservadora: ela viria de “setores que dizem querer, mas não querem mudança nenhuma: mudanças são incompatíveis com velhas ideias”. Por que o que o Projeto propõe é novo, e mais, por que o novo é automaticamente melhor, como se um Código penal fosse um iPhone, não é dito. “Nosso país se recobre da vergonha de aceitar tanta violência e desumanidade, seja na desproteção das vítimas e da própria sociedade, seja no tratamento que oferece aos seus presos.” De que maneira o novo Código protegerá melhor as vítimas, a sociedade, e oferecerá um melhor tratamento aos presos, fica por dizer. Aqui, a resposta não é mais do que um insulto à nossa inteligência, como se não soubéssemos diferenciar entre o uso de uma palavra bonita e um argumento.

Mas a resposta também apresenta um segundo artifício, e este é de uma sofisticação maquiavélica. As críticas “são bem-vindas, necessárias até. Além de representarem o exercício do direito fundamental de opinião, contribuem para legitimar o procedimento de reforma legislativa.” Observe-se: a crítica, que se ignorou soberanamente, que foi degradada a uma questão de gosto pessoal, é, contudo, declarada bem-vinda, porque ela contribui para legitimar o futuro Código. O futuro Código quer, depois de aprovado, fazer referência a nossa reação, e gabar-se, com um cinismo arrepiante, de ter sobrevivido ao escrutínio da comunidade jurídica.

Tosca ou sofisticada, a resposta, de um lado, nos subestima. A comunidade jurídica não abaixará a sua voz e não deixará que o fato de a ter um dia elevado sirva de pena no cocar do Código. Ela continuará demandando uma ampla, detida e pormenorizada discussão sobre o que temos de reformar no direito penal, discussão essa não fundada em slogans toscos ou em agradecimentos cínicos, e sim em argumentos e em conhecimento técnico. Enfim: ela continuará exigindo tudo aquilo que o Projeto que ameaça virar lei não representa, e que a resposta do senhor. Relator insiste em considerar irrelevante.

De outro lado, contudo, a resposta é de inegável lucidez. Pois a resposta, bem como o Projeto que ela defende, vivem da certeza de que atos de Poder podem prescindir de razões. O Poder, cônscio de sua autossuficiência, pode ignorar a crítica, reportando-se a ela só para auto-legitimar-se, porque ele, enquanto Poder, sabe que quem tem a força sobrevive sem o argumento. Não ignoro que a muitos interessa transformar o Projeto em lei. Uns querem passar para a história como legisladores, outros devem favores políticos, outros almejam ao prestígio de ter participado de uma reforma de tamanhas dimensões. Há mesmo quem acredite nos méritos do Projeto, que, apesar de poucos, seguramente existem. Está claro que o Projeto só poderá ser aprovado com pressa, porque o passar do tempo só aumentará a notoriedade de seus defeitos.

A comunidade jurídica, que repudia o Projeto e quer impedir que ele se transforme em lei, depara-se, assim, com um formidável adversário, que ela dificilmente conseguirá vencer. Ainda assim, não desanimemos. E quem sabe não presenciaremos o episódio histórico acima descrito culminar em algo ainda mais inédito, a saber: no dia em que a força cedeu ao argumento, em que os interesses do Poder se dobraram diante das exigências da Razão.

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[1] Cirino dos Santos, “Somos o país que mais pune no mundo”, entrevista concedida a V. Ogawa, publicada no jornal Folha de Londrina, de 15.7.2012, p. 3; Reale Jr., “Novo Código Penal é obscenidade, não tem conserto”, entrevista concedida a Canário/Vasconcellos, em: http://www.conjur.com.br/2012-set-02/entrevista-miguel-reale-junior-decano-faculdade-direito-usp; Miranda Coutinho/Rocha de Carvalho, ”Há vícios de origem”, entrevista publicada em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/512777-reforma-do-codigo-penal-ha-vicios-de-origem-entrevista-especial-com-jacinto-coutinho-e-edward-rocha-de-carvalho;

[2] Reunidos na Revista Liberdades – Edição Especial – Reforma do Código Penal, http://www.ibccrim.org.br/upload/noticias/pdf/revista_especial.pdf: Orsini Martinelli, Editorial, p. 4 e ss.; Oliveira Quandt, A aplicação da Lei Penal no projeto de Código Penal, p. 8 e ss.; L. Greco, Princípios fundamentais e tipo no novo Projeto de Código Penal, p. 35 e ss.; A. Leite, Erro, causas de justificação e causas de exculpação no novo projeto de Código Penal, p. 59 e ss.; Busato, Responsabilidade penal de pessoas jurídicas no Projeto do novo Código Penal brasileiro, p. 98 e ss.

[3] Especial destaque merece o Seminário Crítico sobre a Reforma Penal, promovido pela Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ) nos dias 11-13 de setembro de 2012.

[4] Manifesto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Instituto Manoel Pedro Pimentel (USP) e do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC) sobre a Reforma do Código Penal, em: http://www.ibccrim.org.br/site/manifesto/manifesto2012.php?acao&manForm.

[5] Luiz Carlos dos Santos Gonçalves. Pela reforma penal: Anteprojeto do Código Penal não é o Código Penal. Conjur, 3 de setembro de 2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-set-03/luiz-goncalves-anteprojeto-codigo-penal-moderno-descriminalizador. Todos os links citados foram acessados no dia 5 de setembro de 2012.

Luís Greco é professor de Direito Penal.

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