Nenhum sistema tributário pode gerar privilégios

Por Raul Haidar

Se todos queremos justiça tributária, somos obrigados a alterar as regras constitucionais que ainda asseguram privilégios às entidades religiosas, que há muito tempo estão separadas do Estado. Estado é Estado, religião é religião. Como cantava Riachão: cada macaco no seu galho.

Ora, no preâmbulo de nossa Constituição afirma-se que, para instituir um Estado Democrático, deve-se assegurar o exercício de direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos, etc.

Todavia, o artigo 150 da mesma Carta proíbe cobrança de impostos sobre templos de qualquer culto ou natureza.

Tal norma já figurou nas constituições anteriores, mas nem por isso deve ser mantida. Muitas situações e regras perduraram por mais tempo (a escravidão, por exemplo) e foram extintas com a evolução e as necessidades do contexto social.

Uma explicação ou justificativa para a imunidade seria a possibilidade de que, admitidos os impostos, os governos poderiam prejudicar as igrejas, impondo-lhes uma tributação insuportável. Por outro lado, tal benefício seria uma compensação pela atuação das igrejas nos serviços sociais de responsabilidade do Estado, como as chamadas santas casas, as escolas gratuitas, serviços sociais, etc.

Ambos os argumentos não resistem ao menor exame, se colocados diante da atual realidade do nosso país. Exigir impostos sobre as rendas não é complicado. Limites razoáveis impedem o efeito confiscatório, evitando que a atividade religiosa seja extinta.

Ainda que igrejas mantenham hospitais, seus serviços são remunerados pelo Estado, seja através do SUS, seja pelos convênios ou pelos usuários. As chamadas santas casas há muitos anos são estabelecimentos hospitalares ligados direta ou indiretamente a outros do mesmo ramo ou mesmo a escolas de enfermagem ou medicina, funcionando como qualquer empresa de prestação de serviços médicos. Aliás, já surgiram notícias pelo país todo de atos ilícitos praticados nessas empresas, nem sempre administradas de forma criteriosa.

O ensino ministrado em escolas de orientação religiosa como regra é custeado pelos alunos, sem necessidade de imunidade tributária. E mantendo o Estado escolas públicas, não há nenhuma razão para subsidiar o custo daquelas onde estudem filhos de pessoas que querem dar determinada formação a sua prole.

Quando uma instituição religiosa resolve manter escola para formação de seus futuros servidores (padres, pastores, ministros, rabinos, etc.) , deve arcar com sua manutenção, pois está a investir na formação de sua mão de obra, que no futuro manterá o seu funcionamento.

Afinal, deve-se observar o princípio da isonomia, pois se todos são iguais, não há razão para que algumas pessoas, em razão da religião que seguem, suportem uma carga tributária menor do que os que não tenham qualquer crença.

Por outro lado, já ocorrem enormes desvios do esforço nacional em favor de entidades privadas que não prestam contas a ninguém e até mesmo se comportam como multinacionais que, crescendo sem qualquer controle, tornam-se aos poucos um estado dentro do Estado.

Várias entidades que se intitulam igrejas já se transformaram em impérios econômicos, cujo poder ninguém sabe até onde vai e cujos lideres exercem esse poder de forma totalmente obscura ou mesmo através de ordem hereditária. Sabe-se que há, neste imenso país, igrejas que são objeto de concessão ou “franquia”, mediante pagamento em dinheiro e contrato de participação no faturamento.

Não há exagero em vermos tal situação como estado dentro do Estado. Afinal, há redes de comunicação (TV, Rádio, jornal) e até partidos políticos agindo abertamente como órgãos subordinados a instituições religiosas, onde é quase certa a subordinação dos eleitos não aos seus eleitores, nem mesmo ao Estado, mas à hierarquia da seita.

Também não se exagera quando atribui-se a tais organizações uso indevido ou pelo menos discutível dos recursos que arrecadam.

Ainda recentemente anunciou-se a inauguração de pelo menos 3 templos gigantescos em São Paulo, um deles, ao que parece o mais simples, orçado me cerca de R$ 400 milhões.

Há uma óbvia incoerência entre o que os líderes dessas religiões ou seitas pregam e o que praticam. Não importa qual o livro sagrado que supostamente estudam ou divulgam, mas o discurso é sempre o mesmo: fazer o bem, praticar a humildade, ajudar o próximo, etc.

Lamentavelmente, a pregação de humildade não é necessária , pois a grande maioria dos crentes é de despossuídos, de pobres, de gente que entrega parte de seu esforço, de seu trabalho, para a “obra”, seja lá o que for que isso signifique.

Ao lado dessa lição de humildade, comportam-se os pregadores com um exibicionismo e uma soberba capazes de humilhar até o sultão das mil e uma noites. Um não esconde de ninguém que acaba de comprar mais um avião, outro passando férias em luxuosa mansão no exterior, outro, em meio a uma turba de desesperados querendo espantar o demônio, diverte-se balançando seu braço de um lado para o outro, a exibir vistoso relógio de ouro!

Ora, se essas igrejas todas faturam tanto a ponto de investir milhões em prédios suntuosos, onde apenas vão rezar, orar, pregar etc., não há razão para benefícios fiscais. Talvez houvesse explicação se esses investimentos resultassem em hospitais ou escolas públicas.

Sendo inegável o poder dos veículos de comunicação sobre o povo, é imprescindível que as instituições (MP, OAB, etc.) exijam o cumprimento dos artigos 220 a 224 da CF, impedindo que instituições religiosas possam ser direta ou indiretamente permissionárias desses veículos. Note-se que os canais de TV e as frequências de rádio são limitados e como tal devem ser fiscalizados e regulados pelo Poder Público.

Aceitar que religiosos interfiram nos destinos do país e se transformem numa espécie de poder paralelo, permitindo que se sintam superiores às outras categorias de brasileiros, é caminhar em direção ao buraco da anarquia social. Outros países viveram e ainda vivem essa tragédia. Não são necessárias muitas pesquisas para saber quais são. Podem começar pela letra L, de Líbano.

Ainda dá tempo de fazer alguma coisa para mudar esse quadro, desde que o Congresso não atrapalhe muito. Não podemos nos esquecer que os deputados e senadores não são ETs, pois nós é que votamos neles.

Imunidade é exceção que não deve se aplicar a entidades que faturam milhões sem prestar contas a ninguém.

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