O papel do Carf na defesa do princípio da legalidade

Por Roberto Duque Estrada

Entre os dias 30 de setembro e 5 de outubro realizou-se em Dublin, na Irlanda, a Conferência Anual da International Bar Association (IBA), um congresso que reuniu aproximadamente cinco mil advogados de diversos países do mundo. Diversidade é a palavra que melhor define essa profícua semana de eventos jurídicos e sociais, que nos proporcionou o convívio com colegas de profissão dos mais variados países. Um verdadeiro melting pot multicultural, representantes de países de “A a Z”, como delegações olímpicas, transitam pelos corredores, participam dos painéis, interagem nos eventos sociais: Albânia, China, França, Guatemala, Holanda, Israel, Líbano, Portugal, Rússia, Singapura, Uganda… Conhecemos e reencontramos colegas desses países e de muitos outros mais. Um lugar especial reserva-se para os colegas brasileiros, alguns já amigos de anos que a rotina impede de estarmos mais próximos, bons companheiros desses dias dublinenses.

Nesse ano, tivemos novamente a oportunidade de participar de uma das mesas de debates organizada pelo Comitê Tributário. Intitulado The Limits of Tax Planning (“Os limites do planejamento fiscal”), o painel contou com representantes de Alemanha, Brasil, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, Irlanda, Japão e México, e nos permitiu interessantes reflexões a respeito da forma que as administrações fiscais dos países representados vêm lidando com a questão, como os contribuintes se têm defendido das medidas adotadas e como os Tribunais têm julgado causas envolvendo o “planejamento fiscal”.

Não deixa de ser pesaroso, no entanto, reconhecer que impera em todos esses países uma preocupante sensação de insegurança jurídica.

É inegável que há uma diretriz comum, seja nos países de common law, seja nos países de Direito romano-germânico, que os particulares devem ser livres para organizar seus negócios e não estão obrigados a fazê-lo da forma fiscalmente mais onerosa[1]. Igualmente comum a todas as jurisdições é a ideia que o exercício desse direito ou liberdade encontra certos limites. Alguns, com ordenamentos constitucionais mais rígidos, exigem o rompimento das fronteiras da licitude, apenas aceitando a simulação como limite à liberdade fiscal[2]. Outros, sem Constituição escrita ou com constituições menos garantistas em matéria fiscal, aceitam a tributação dos negócios indiretos por analogia, seja pela invocação de uma vaga, imprecisa e, principalmente, mutável, “vontade do legislador”[3], seja pela aplicação de doutrinas do tipo step transaction ou substance over form ou das GAAR (general anti-avoidance rules).

Sucede que, na prática, (e a experiência brasileira é paradigmática nesse sentido) qualquer operação ou negócio que envolva uma economia tributária tem sido objeto de questionamento pelos cada vez mais poderosos aparatos estatais, sedentos por incrementar suas fontes de financiamento.

Os contribuintes estão inseguros, pois não podem mais economizar em impostos sem estarem expostos à tenaz oposição dos Fiscos que — por qualquer argumento ou doutrina (não se preocupe, algum será achado) — irão considerar a operação ou negócio praticado ineficaz, não oponível, irregular, simulado, abusivo, entre outras acusações tendentes a uma única e exclusiva finalidade: tributar aquilo que não está previsto em lei como tributável.

No Brasil, a insegurança é cada dia mais e mais angustiante. Angústia pela nebulosa zona de incerteza que paira sobre o particular quando resolve planejar a realização de um negócio que envolva, de alguma forma, a oportunidade de obter uma economia tributária, isto é, quando resolve optar por um caminho alternativo “mais barato” para realização de seu negócio.

O particular pode planejar suas férias, comprando com antecedência a passagem aérea, reservando o hotel; pode planejar a construção ou reforma da sua casa, acessando linhas de crédito que permitam alongar o pagamento dos materiais e serviços; pode praticar o planejamento familiar, decidindo o número de filhos que deseja ter; enfim, pode (e deve) planejar os eventos da sua vida.

E todo o planejamento — em um mundo capitalista — envolve, naturalmente, a redução dos custos para a obtenção dos resultados perseguidos, o que permitirá a ampliação do leque de oportunidades.

E por que se tornou um “crime hediondo” falar-se em planejamento tributário no Brasil?

Os “planejamentos”, dito assim, com as sílabas bem marcadas, são vistos como “patologias” que serão “curadas” pelos sábios próceres da capacidade contributiva com a panaceia de doutrinas alienígenas.

Sucede que muitos desses “planejamentos” foram induzidos, estimulados, queridos, pela norma legal. Exemplos frisantes são os mais recentes e emblemáticos casos julgados pelo Carf envolvendo a dedutibilidade da amortização do ágio: Caso Telemar (Acórdão 1301-000.711), Caso Santander (Acórdão 1402-00.802) e Caso Gerdau (Acórdão 1101-00.708).

O artigo 7º da Lei 9.532/97 é categórico em assegurar à pessoa jurídica que absorver patrimônio de outra, em virtude de incorporação, fusão ou cisão, na qual detenha participação societária adquirida com ágio, com fundamento no valor de rentabilidade futura, o direito de deduzir fiscalmente, em cinco anos, a amortização do ágio.

Note-se bem, a lei não fez qualquer restrição a respeito da modalidade de negócio pela qual se deu a aquisição da participação, isto é, seja por compra e venda, permuta ou subscrição de capital, o que importa é a ocorrência de um fenômeno aquisitivo que envolva o registro de “ágio”. Também é absolutamente irrelevante para a lei que a empresa adquirente do investimento com ágio tenha sido criada especialmente para a operação de aquisição, qualificando-se como “empresa veículo” e de existência efêmera.

Independentemente da total e absoluta ausência de restrições legais, pulularam autuações questionando o direito do particular a tal dedução, ora sob a alegação de que a utilização de uma empresa veículo configuraria simulação e/ou abuso de direito, ora sustentando que a lei não acolheria os ágios criados “internamente”, entre empresas do mesmo grupo, apenas autorizando a dedução de ágios decorrentes de aquisições por compra e venda entre empresas não vinculadas.

Nesses três casos a resposta do Carf foi categórica em defesa dos contribuintes.

No que concerne à questão da empresa veículo, concluiu o conselheiro Valmir Sandri, relator do Caso Telemar (Acórdão 1301-000.711):
“(…) entendo, sem sombra de dúvida, não ter ocorrido, quer simulação, quer abuso de direito e/ou planejamento tributário em desacordo com a lei, mas tão somente a prática de conduta abarcada e induzida pelo ordenamento jurídico, por intermédio das regras estipuladas pelos artigos 7º e 8º da Lei n.º 9.532/97, sem qualquer prejuízo para Fazenda Pública que pudesse caracterizar economia ilícita de imposto, pois a escolha de outras soluções legais e direta com a incorporação produziria idêntica consequência tributária com relação à amortização de ágio feita por intermédio da empresa veículo”. (grifos nossos)

No Caso Santander (Acórdão 1402-00.802) a posição adotada foi rigorosamente idêntica.

No Caso Gerdau (Acórdão 1101-00.708), o Carf assim afastou a interpretação restritiva do Fisco quanto ao âmbito de aplicação da lei às operações de compra e venda:
“Tanto faz que a aquisição decorra de uma compra, ou decorra da aceitação que a subscrição seja feita por entrega de quotas/ações, recebidas por valor acima do valor patrimonial. A aquisição é gênero, do qual a compra ou a troca, por exemplo, são espécies. (…)
Pretender dizer que só ocorre aquisição se houver a compra da participação é um grave equívoco, baseado em uma alteração arbitrária e sem fundamento do conceito de aquisição. (…).”

O ponto mais importante do Caso Gerdau foi a (re)afirmação do princípio da legalidade como garantia individual e limite da atuação do Fisco, com total repúdio à doutrina do abuso de direito em matéria tributária, conforme se lê abaixo nas passagens transcritas do voto do conselheiro Carlos Eduardo de Almeida Guerreiro:
“Ora, não existe na legislação tributária nacional a previsão de lançamento de ofício com base no afastamento de lei por entender que houve abuso de direito. Ao contrário, o lançamento se rege pelo princípio da estrita legalidade e é atividade vinculada à lei. Ademais, não tem o Executivo o poder de afastar a lei, mas sim de executá-la. Portanto, não há base no sistema jurídico brasileiro para o Fisco afastar a incidência legal, sob alegação de entender estar havendo abuso de direito. (….)
Em direito tributário não existe o menor problema em a pessoa agir para reduzir sua carga tributária, desde que atue por meios lícitos. Inclusive, é de se esperar que as pessoas façam isso, sendo recriminável exatamente a conduta oposta. (…)
Enfim desde que o contribuinte atue conforme a lei, ele pode fazer seu planejamento tributário para reduzir sua carga tributária. O fato de sua conduta ser intencional (artificial), não traz qualquer vício. Estranho seria supor que as pessoas só pudessem buscar economia tributária lícita se agissem de modo casual, ou que o efeito tributário fosse acidental. (….)” (grifos nossos)

Ao assim decidir o Carf reitera e confirma que no Brasil o princípio da legalidade da tributação, constante do artigo 150, I da CF/88, segundo o qual é vedado “(…) exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”, consagra uma garantia individual do cidadão, como, aliás, resulta da própria formulação expressa do caput do mesmo art. 150: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte (….)”.

Trata-se de uma verdadeira “garantia” na acepção estrita deste conceito, que é a de um direito subjetivo de caráter instrumental em relação a outro ou outros direitos subjetivos que se destina a proteger.[4]

O princípio da legalidade garante o direito de propriedade e o direito de liberdade econômica, direitos essenciais preexistentes em relação ao Estado de Direito e à Constituição, garante-nos a liberdade de planejamento, de escolha, de opção pelo caminho a trilhar.

***
Pena que às vezes nem todos nossos planos se concretizem.

Homenagem à memória de Felipe Bordovsky, 11 anos, que, sábado passado, tão cedo nos deixou. Colega de escola de meu filho desde muito pequeno, um menino “espoleta”, surfista nato, alegre, “moleque”, cheio de vida e, de repente, do nada, foi contaminado por uma bactéria e partiu.

A lembrança de Felipe-menino-livre inspira a luta pela liberdade do particular diante do Estado.

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[1] Veja-se, por exemplo, no Reino Unido, onde há tempos é assente que “taxpayers are free to arrange their affairs as they choose and are not obliged to pay the greatest possible amount of tax” (Inland Revenue Commissioners v. Duke of Westminster (1935) 19 TC 490).

[2] Como, em nossa opinião, é o caso do Brasil. Na Alemanha – talvez dos países o mais rigoroso no respeito às garantias individuais – os “planejamentos” adotados são reconhecidos como válidos e não há margem para acusações levianas de simulação e fraude. Mas, após se tornarem conhecidos, os atos ou negócios jurídicos utilizados para obter efeitos equivalentes aos dos atos ou negócios tributados, são a posteriori tipificados através das chamadas cláusulas especiais antielisivas (special anti-avoidance rules), o que nos parece uma prática mais consentânea com o primado da segurança jurídica.

[3] No Reino Unido já se sustentou que saber se a vontade do Parlamento foi ou não respeitada perquire-se pelo teste do “too good to be true”: “In arriving at a view as to whether the transaction is contrary to the intentions of Parliament, the bank should not only consider a purposive construction of the legislation but should also consider whether Parliament can realistically have intended to give the proposed result…. The question of whether the tax results are contrary to the intentions of Parliament can be answered in practice by asking whether the tax consequences of a proposed transaction are too good to be true”. (HMRC Guidance notes on the voluntary Code of Practice on Taxation for Banks).

[4] Cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição (3ª ed.), Coimbra, 1999, 372.

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