LEONARDO MARCONDES MACHADO
INTRODUÇÃO
A discussão sobre a garantia de culpabilidade é, ao mesmo tempo, (sempre) antiga e (constantemente) nova. Trata-se de tema controverso e profundo, debatido pelos clássicos e pelos juristas de vanguarda. Constitui objeto de estudo da dogmática penal e processual penal, da criminologia e da política criminal, isso sem mencionar a abordagem feita pelos doutos da psiquiatria e psicologia forenses.
É evidente que tamanho debate científico se deve à importância da qual se reveste o assunto, sendo considerado por Von Liszt (1999, p. 390), por exemplo, como a medida do progresso do Direito Penal.
Além do sempre atual debate teórico, a temática é fundamental para traçar os limites de atuação do Estado, por meio da intervenção penal, na vida dos cidadãos. Mais do que divagação teórica e científica, apresenta a culpabilidade jurídico-penal função primordial nas ciências penais modernas.
Isso porque, segundo as declarações de Mezger (1935, p. 41), “o problema da culpabilidade é o problema do destino mesmo do direito de castigar”.
O mestre Luigi Ferrajoli (2002, p. 389-390), em sua clássica obra Direito e razão: teoria do garantismo penal, trata da culpabilidade (penal) como “terceira condição material requerida pelo modelo garantista” no que concerne à justificação (ou legitimação) do “quando” e “do que” proibir. Conforme o autor, a culpabilidade material penal “expressa-se no axiomanulla actio sine culpa e nas teses que dele derivam: nulla poena, nullum crimen, nulla lex poenalis, nulla iniuria sine culpa”.
Também no estudo garantista do “quando” e “como” julgar, fala-se em culpabilidade (processual). Dentre as garantias relativas ao processo penal, destaca-se, logo de início, o sétimo axioma garantista, identificado na expressão latina nulla culpa sine iudicio, isto é, não há culpabilidade ou responsabilidade sem o devido processo criminal. Sendo assim, conforme as próprias palavras de Ferrajoli (2002, p. 441), “o princípio de submissão à jurisdição – exigindo, em sentido lato, que não haja culpa sem juízo (axioma A7), e, em sentido estrito, que não haja juízo sem que a acusação se sujeite à prova e à refutação (Teste T63) – postula a presunção de inocência do imputado até prova contrária decretada pela sentença definitiva de condenação”. É justamente nesse contexto de análise da intervenção estatal, sob viés garantista, que se pretende discutir a culpabilidade jurídico-penal, com seus inúmeros significados e múltiplas acepções, no âmbito tanto penal (material) quanto processual penal.
GARANTIA PENAL
Na estrita dogmática (material) penal, a culpabilidade pode designar os seguintes institutos: a) princípio da responsabilidade subjetiva; b) juízo de reprovabilidade ou censura; c) grau de reprovabilidade ou censura.
Culpabilidade como princípio da responsabilidade subjetiva
A culpabilidade já foi (e ainda é, por alguns) muito utilizada no sentido de princípio da responsabilidade subjetiva, o qual se contrapõe diretamente à antiga estrutura de responsabilidade objetiva (também conhecida por responsabilidade sem culpa ou responsabilidade pelo resultado).
Diz-se objetiva a responsabilidade penal quando alguém é considerado responsável (ou impropriamente culpado) por um delito pela simples relação causal com a produção do resultado.
O exemplo clássico (e absurdo) citado pela doutrina como de responsabilidade objetiva (não mais admitida pelo direito penal) seria a responsabilização criminal do proprietário da empresa fabricante de armas de fogo pelo fato de ela ter sido utilizada por terceiro como instrumento para causar a morte de outrem. Perguntava-se, à época, diante da responsabilização objetiva: há, na espécie, relação causal entre a produção da arma e a morte de terceiro? Sim. Portanto, objetivamente, o fabricante da arma de fogo é responsável pela morte.
Hoje não há mais lugar para as regras de imputação objetiva de responsabilidade penal, pautadas no velho primado de direito canônico do versari in re illicita, totalmente inconcebíveis perante a estrutura normativa inaugurada pelo Estado Democrático de Direito.
O professor Nilo Batista (2004, p. 104) é enfático: “Não cabe, em Direito Penal, uma responsabilidade objetiva, derivada tão-só de uma associação causal entre a conduta e um resultado de lesão ou perigo a um bem jurídico”.
As garantias do Estado de Direito vedam que alguém seja responsabilizado criminalmente pelo simples desvalor do resultado, pela mera objetividade causal do resultado.
Consagrada está a necessidade de responsabilização subjetiva, de maneira que ninguém pode ser punido se a conduta produtora de resultado desvalioso não lhe puder ser imputada a título de dolo ou culpa. Na mesma linha ensina Rogério Greco (2009, p. 121): “Um direito penal moderno, de cunho eminentemente subjetivista, não pode aceitar que a responsabilidade penal por determinado fato seja imputada a alguém que não atuou com dolo ou culpa. A simples produção de um resultado não tem a força de fazer com que o agente responda por ele”.
Por fim, registre-se, nesse particular, apenas uma nota de rigor científico sobre o tema em discussão. Diante das novas concepções sobre a teoria do delito, principalmente com a migração da análise de culpa (em sentido amplo) para a categoria da tipicidade, melhor não confundir “culpabilidade” com “dolo” e “culpa”. A exigência de culpa (em sentido amplo) quanto à conduta delitiva indica a garantia da responsabilidade penal subjetiva, absolutamente indispensável ao Direito Penal Democrático, porém em nada se confunde com a culpabilidade.
Magistral a observação criteriosa de Paulo César Busato e Sandro Montes Huapaya (2003, p. 171) sobre essa questão:”[…] por culpabilidade se pode entender a fixação da necessária comprovação da presença de dolo ou culpa para a admissão da responsabilidade penal, em oposição à responsabilidade objetiva. Tradicionalmente a doutrina identificou este último sentido como princípio da culpabilidade. Trata-se, com efeito, do estabelecimento de uma garantia contra os excessos da responsabilidade objetiva, mas também uma exigência que se soma à relação de causalidade para reconhecer a possibilidade de impor pena. Mas, na medida em que o dolo e a culpa formam parte dos elementos subjetivos do tipo (tipicidade subjetiva), este conceito de culpabilidade só ficou como princípio”.
Enfim, entende-se modernamente que a culpabilidade deve ser utilizada para indicar outra categoria dogmática penal (conforme veremos a seguir), que não o “dolo” e a “culpa”, próprios da tipicidade subjetiva e do chamado princípio da responsabilidade subjetiva (igualmente fundamental ao Direito Penal Democrático).
Culpabilidade como juízo de reprovação ou censura
O termo “culpabilidade”, na linguagem vulgar, significa a qualidade, estado, característica ou predicado daquele que é culpável, isto é, daquele que é culpado. Conforme muito bem observado por Francisco de Assis Toledo (1994, p. 216), “até mesmo as crianças a empregam, em seu vocabulário incipiente, para apontar o responsável por uma falta, por uma travessura. Utilizamo-la a todo instante, na linguagem comum, para imputação a alguém de um fato condenável. […] adquire, pois, na linguagem usual, um sentido de atribuição censurável, a alguém, de um fato ou acontecimento”.
Nessa mesma esteira, salientam os professores Corrêa Júnior e Shecaira (2002, p. 91) que a ideia usual de culpabilidade é a de “atribuição de um fato condenável a terceiro pelo cometimento de um ato reprovável”. Os autores, tal qual afirmado por Toledo, sustentam que “o vocábulo vem sempre dentro de um contexto de imputação a alguém de fato censurável”.
Não é difícil perceber que a palavra culpabilidade, por si, já apresenta uma carga axiológica negativa. Não se diz, v.g., que alguém é o grande culpado pelo sucesso da empresa (a não ser que o interlocutor queira revestir a sua fala de tom irônico). Normalmente, quando se fala que alguém é culpado por algo se quer apresentar uma ideia de censura, de reprovação.
A culpabilidade, portanto, enquanto categoria dogmática pertencente, a depender do posicionamento sistêmico adotado, à “teoria geral do delito” (também conhecida por “teoria do crime” ou “teoria do fato punível”) ou à “teoria das consequências jurídicas do delito” (ou simplesmente “teoria da pena”), deve ser compreendida como o juízo de reprovação ou de reprovabilidade subjetiva diante de conduta típica e antijurídica.
Anote-se que a culpabilidade, como juízo de reprovação incidente sobre o agente criminoso, reveste-se de importância crucial na dogmática penal, pois a ela incumbe a tarefa mediadora entre a tipicidade e a ilicitude (de um lado) e a correspondente sanção penal (do outro). Impossível a imposição de pena criminal ao autor de fato típico e antijurídico (ou ilícito) sem que antes seja feito o juízo de culpabilidade.
Veja sobre essa temática o escólio de Francisco Muñoz Conde e Cezar Roberto Bitencourt (2000, p. 334): “Como se deduce de algunos preceptos del Derecho penal vigente em cualquier país civilizado, la comisión de um hecho delictivo, en el sentido de um hecho típico y antijurídico, no acarrea automáticamente la imposición de uma pena al autor de esse hecho. Existen determinados casos en los que el autor de um hecho típico y antijurídico queda exento de responsabilidad penal. Ello demuestra que, junto a la tipicidad y a la antijuridicidad, debe darse uma tercera categoría en la Teoría General del Delito, cuya presencia es necessaria para imponer una pena. Esta categoría es la culpabilidad […]“.
Consoante o dizer de Zaffaroni e Pierangeli (2002, p. 601), a culpabilidade, nesse sentido, “é a reprovabilidade do injusto ao autor”.
Tem-se, aqui, a culpabilidade enquanto juízo de constatação (ou de aferição) quanto à censura ou à reprovação pessoal. Implica analisar se existe ou não culpabilidade naquele caso concreto, isto é, se o agente deve ou não ser considerado culpável, o que nos remete necessariamente à constatação quanto à presença (ou não) dos elementos da culpabilidade (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa). E, por último, tudo isso tem repercussão na natureza da sentença penal (absolutória própria ou absolutória imprópria ou condenatória) e na respectiva sanção criminal (pena ou medida de segurança).
Culpabilidade como grau de reprovação ou censura
Por fim, é de se destacar a culpabilidade no sentido de grau de reprovação ou censurabilidade da conduta. O Código Penal prevê expressamente, no caput do artigo 59, que a culpabilidade constitui circunstância judicial, a ser aferida pelo magistrado na primeira fase de fixação (e, portanto, de individualização judicial) da pena.
Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível (grifo nosso) (BRASIL, 1940).
Nesse diapasão, deve o juiz, no momento de estabelecer a chamada pena-base, considerar, dentre as várias circunstâncias judiciais, o grau de reprovabilidade da conduta, o que significa dizer: quanto mais reprovável a conduta, maior é a culpabilidade e, portanto, mais gravosa deve ser a pena-base; quanto menor a reprovabilidade, menor é a culpabilidade e, portanto, menos gravosa deve ser a pena-base.
Observe que o sentido atribuído à culpabilidade no artigo 59, caput, do Código Penal não se confunde com aquele atinente ao conceito analítico de crime ou ao pressuposto de imposição da pena (visto anteriormente).
Trata-se aqui de juízo quantitativo (ou qualitativo) de culpabilidade: diz respeito ao grau de reprovabilidade ou censurabilidade – maior ou menor, isto é, mais ou menos culpável, o que, por conseguinte, reflete diretamente na fixação da pena-base.
Registre-se, nesse ponto, didática lição de Paulo Queiroz (2012): “quando mais exigível um comportamento diverso/conforme o direito, mais reprovável será a infração penal; quando menos exigível, menor a censurabilidade e, pois, menor o castigo”. O autor conclui que “a culpabilidade corresponde aqui à idéia mesma de proporcionalidade em sentido estrito, a ser aferida segundo múltiplas circunstâncias”.
A culpabilidade, nesse sentido, indica critério regulador da espécie de pena a ser aplicada, da sua quantidade, do regime inicial de cumprimento (se fechado, semiaberto ou aberto), bem como de eventual substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos e/ou pena de multa. Enfim, é a culpabilidade verdadeira balança (do peso da sanção penal) e medida (da extensão da sanção penal) na teoria das consequências jurídicas do delito, em homenagem aos critérios de proporcionalidade e razoabilidade de um Direito Penal da culpa moderno e humanista.
Garantia processual penal
Na seara processual-penal, tem-se o princípio do estado de inocência ou presunção de inocência, também chamado de “não culpabilidade” ou “não culpa”.
As ideias básicas dessa garantia já constavam (ainda que timidamente) no antigo ordenamento romano, porém foram severamente criticadas e totalmente subvertidas na prática durante o período obscuro e inquisitivo da Idade Média.
Aury Lopes Jr. (2008, p. 177-178), com razão, ensina que durante a Idade Média vigorou, na verdade, “uma presunção de culpabilidade”. Para tanto, “basta recordar que na inquisição a dúvida gerada pela insuficiência de provas equivalia a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e semicondenação a uma pena leve”.
O reconhecimento devido da presunção de inocência, superando toda a arbitrariedade inquisitiva, deu-se por obra da Revolução Iluminista Francesa de 1789, cujo artigo 9.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão expressamente consignou que “todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”.
Paulo Rangel (2010, p. 24-25) explica, com maestria, a origem histórica do instituto: “O princípio da presunção de inocência tem seu marco principal no final do século XVIII, em pleno Iluminismo, quando, na Europa Continental, surgiu a necessidade de se insurgir contra o sistema processual penal inquisitório, de base romano-canônica, que vigia desde o século XII. Nesse período e sistema o acusado era desprovido de toda e qualquer garantia. Surgiu a necessidade de se proteger o cidadão do arbítrio do Estado que, a qualquer preço, queria sua condenação, presumindo-o, como regra, culpado”.
Desde então, em um movimento de consagração (ou, ao menos, tentativa) do sistema processual acusatório, inúmeros diplomas legislativos (inclusive internacionais) incorporaram esse princípio, de maneira expressa, em seus ordenamentos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948[2], o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966[3] e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969[4].
Registre-se, contudo, que em pleno século XX, durante períodos militares de exceção, alguns tentaram relativizar ou minimizar o âmbito de aplicação dessa conquista histórica da humanidade, considerada como princípio cardeal no processo penal em um Estado Democrático de Direito.
Findo o período militar, já na era da redemocratização brasileira, a Constituição Federal de 1988, inspirada pela doutrina humanista (e democrática) internacional, cuidou de assegurar, em seu artigo 5.º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
O processo penal moderno, de cunho liberal e acusatório, é necessariamente pautado pela garantia da presunção de inocência ou de não culpabilidade, tida por muitos como princípio fundamental e verdadeiro reitor do direito processual penal, e por outros, como mecanismo de aferição prática do grau de evolução do sistema processual e da própria sociedade. Alguns, ainda, sustentam que o estado de inocência é mais do que um princípio; tratar-se-ia, em verdade, de pressuposto de convivência social independente de qualquer codificação legal (por ser da essência da própria sociedade e do ser humano).
Cesare Bonesana (2010, p. 35), o famoso marquês de Beccaria, já no século XVIII, em clássica obra iluminista, ensinava sobre o conceito fundamental da presunção de inocência, segundo o qual “um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que seja decidido ter ele violado as condições com as quais tal proteção lhe foi concedida”.
A garantia do estado de não culpabilidade assegura, a todo e qualquer cidadão, que seja considerado e tratado como inocente (ou não culpado) até mandamento judicial definitivo em sentido contrário.
Observe, portanto, que representa certa forma de tratamento pessoal. Apenas depois de condenação criminal definitiva se descaracteriza a “presunção ‘juris tantum’ de inocência do réu, que passa, então, a ostentar o ‘status’ jurídico-penal de condenado, com todas as conseqüências legais daí decorrentes”[5].
Vale ressaltar que esse dever de tratamento aplica-se em todas as fases da persecutio criminis, ou seja, tanto no processo penal quanto na etapa investigatória preliminar. E, mais, deve ser observado por todos os sujeitos processuais (principalmente o juiz), bem como pelo órgão presidente da fase prévia de investigação (delegado de polícia). Também os terceiros desinteressados no processo (ex.: imprensa) devem respeito à garantia constitucional do estado de não culpabilidade.
As consequências ou implicações decorrentes desse princípio basilar e garantista no processo penal são de extrema importância, conforme segue:
a) Regra de Ônus da Prova: a tarefa de comprovação dos fatos criminosos (isto é: materialidade e autoria delitivas), em sede de processo penal, incumbe exclusivamente à acusação.
Repita-se: o ônus probatório é inteiro da acusação, a quem compete provar todos os elementos necessários ao acolhimento da pretensão punitiva estatal in concreto. O réu não precisa comprovar a sua inocência, já que esta é presumida até decisão judicial definitiva em contrário.
O próprio Código de Processo Penal (BRASIL, 1941) determina que o juiz absolva o réu quando reconheça “não haver prova da existência do fato” (art. 386, inc. II), “não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal” (art. 386, inc. V) e, por fim, “não existir prova suficiente para a condenação” (art. 386, VII).
Alguns doutrinadores chegam a sustentar, mediante interpretação absolutamente elástica e ampliativa dessa garantia, que ao réu não caberia nenhum ônus probatório. Nessa linha é o escólio do mestre português Jorge de Figueiredo Dias (2004, p. 215), o qual defende ser incumbência da parte acusatória não apenas os “elementos fundamentadores e agravantes da incriminação”, mas também as “causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa e de exclusão da pena, bem como as circunstâncias atenuantes, sejam elas modificativas ou simplesmente gerais”.
b) Regra de Julgamento: a presunção relativa (juris tantum) de inocência apenas será afastada (ou derrubada) mediante conjunto probatório firme e válido capaz de comprovar a autoria e materialidade delitivas.
Exige-se grau de certeza para a condenação criminal, uma vez que a dúvida relevante sobre fato não suficientemente dirimido e esclarecido ao longo do processo deve ser interpretada em favor do réu quando da decisão penal. Trata-se do conhecido brocardo latino in dubio pro reo.
c) Regra de Restrição da Liberdade: toda e qualquer restrição da liberdade do investigado ou acusado, antes de condenação penal definitiva, apenas se justifica se fundamentada no caráter excepcional e cautelar (instrumental) da medida.
A regra geral é a liberdade do investigado ou acusado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A privação da liberdade, antes desse marco processual, constitui medida de exceção necessariamente embasada nos primados cautelares do fumus comissi delicti (fumaça da ocorrência do delito) e do periculum libertatis (perigo na liberdade do agente).
Sublinhe-se, portanto, que a presunção de inocência não impede, em absoluto, “a imposição de restrições ao direito do acusado antes do final processo, exigindo apenas que essas sejam necessárias e que não sejam prodigalizadas”, conforme entendimento pacífico do Egrégio Supremo Tribunal Federal[6].
d) Cláusula de Vedação à Exploração Midiática Abusiva: também os órgãos de imprensa, enquanto terceiros desinteressados (em tese) no processo penal, devem respeito à presunção de não culpabilidade – garantia que deveria balizar a divulgação das notícias sobre investigações preliminares e processos penais em curso.
Nesse particular, o magistério crítico de Aury Lopes Júnior (2008, p. 182) é igualmente enfático e esclarecedor: “Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu […]. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência”.
Isso não significa, por óbvio, vedação absoluta à publicidade de informações jornalísticas sobre os intitulados “casos criminais”, mesmo porque a própria Constituição Federal assegura (e com razão) os direitos à liberdade de expressão, pensamento e informação (artigos 5.º, incisos IV e IX, e 220).
O que se combate (frise-se!) é a exploração abusiva da “informação” (por vezes sigilosa) travestida de liberdade de imprensa, antecipando juízos definitivos de condenação com base em simples indícios ou presunções, o que configura, sim, violação à garantia de presunção de não culpabilidade.
CONCLUSÃO
A culpabilidade apresenta-se como princípio (inclusive político-criminal) de fundamental importância na atividade reguladora e limitativa do poder punitivo estatal. Trata-se de verdadeiro limite formal e material ao ius puniendi do Estado, enquanto instrumento impeditivo das práticas abusivas (em nome da intervenção penal).
Segundo as palavras do eminente lusitano Jorge de Figueiredo Dias (1999, p. 275), a culpabilidade desempenha, no sistema jurídico-penal, “função de limitação absoluta do intervencionismo estatal na vida do agente e de veto a uma sua eventual arbitrariedade”.
Não se pode olvidar que “a culpabilidade deve ter por compromisso a defesa da vida dos sujeitos humanos”, apresentando-se “como um lugar (seguro) de limitação do poder de punir soberano”, conforme a rica linguagem da professora Luana de Carvalho Silva (2008, p. 184, 188).
Nesse mesmo sentido, destaque-se a lição de Fábio Guedes de Paula Machado (2002, p. 302), em brilhante tese de doutorado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, intitulada A função da culpabilidade no Direito Penal contemporâneo: “O surgimento da culpabilidade é um marco fundamental no desenvolvimento histórico do Direito Penal, vista como autêntico instrumento de resistência ao poder ditatorial. Noutras palavras, a evolução da culpabilidade significou um freio complementar à coação penal e à realização de tutela mais efetiva da liberdade humana”.
Em síntese, a conclusão é uma só: não existe sistema criminal democrático e humanista sem respeito efetivo à garantia fundamental da culpabilidade (penal e processual penal).
LEONARDO MARCONDES MACHADO
Delegado de Polícia Civil em Santa Catarina. Pós-Graduado em Ciências Criminais pela UNISUL/IPAN/LFG. Professor de Legislação Penal Especial na Academia de Polícia Civil de Santa Catarina. Professor de Direito Processual Penal na Faculdade Cenecista de Joinville. Colaborador-articulista em diversas revistas jurídicas eletrônicas.
[2] Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Artigo XI: “1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. [3] Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966. Artigo 14.2: “Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada a sua culpa”. [4] Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969. Artigo 8º.2: “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. [5] STF – Decisão Monocrática – HC n.º 94.194 MC/CE – Rel. Min. Celso de Mello – j. em 28.08.2008 – Dje 165 de 02.09.2008. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2012. [6] STF – Primeira Turma – RHC n.º 108.440/DF – Rel. Min. Rosa Weber – j. em 03.04.2012 – Dje 074 de 16.04.2012. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2012. REFERÊNCIAS BATISTA, N. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004. BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. 18. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. BRASIL. Código de Processo Penal (Decreto-Lei n.º 3.689). Rio de Janeiro, 3 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. ______. Código Penal (Decreto-Lei n.º 2.848). Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. ______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. Disponível em: . BUSATO, P. C.; HUAPAYA, S. M. Introdução ao Direito Penal – fundamentos para um sistema penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. CONDE, F. M.; BITENCOURT, C. R. Teoria geral do delito. São Paulo: Saraiva, 2000. CONVENÇÃO Americana sobre Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em 08 jun. 2012. CORRÊA JÚNIOR, A.; SHECAIRA, S. S. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em 08 jun. 2012. DIAS, J. F. Direito Processual Penal. v. I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. ______. Questões fundamentais de Direito Penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. FERRAJOLI, L. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. GRECO, R. Direito Penal do equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. LOPES JÚNIOR, A. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. v. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. MACHADO, F. G. P. A função da culpabilidade no Direito Penal contemporâneo. Tese (Doutorado em Direito)–Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. MEZGER, E. Derecho Penal. t. 2. Tradução de Ricardo C. Núñez. Madri: Revista Derecho Privado, 1935. PACTO Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Disponível em: . Acesso em 08 jun. 2012. QUEIROZ, P. Co-culpabilidade? Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2012. RANGEL, P. Direito Processual Penal. 18. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. SILVA, L. C. O princípio da culpabilidade e a produção de sujeitos. 197 p. Dissertação (Mestrado em Direito)–Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008. TOLEDO, F. A. Princípios básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. VON LISZT, F. Tratado de Derecho Penal. t. 2. 4. ed. Tradução de Luis Jimenez de Asúa. Madri: Reus, 1999. ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. O texto também pode ser encontrado no site: www.atualidadesdodireito.com.br.