Por Leandro Gornicki Nunes
O presente texto é uma rendição à provocação jurídica feita pelo eminente professor André Karam Trindade, em coluna publicada pela ConJur, em 5 de janeiro de 2013 (clique aqui para ler), com o objetivo de ressaltar o caráter democrático da concessão de indulto (individual/graça ou coletivo) e comutação de penas pelo presidente da República, cuja previsão está no artigo 84, inciso XII, da Constituição da República.
Em apertada síntese, o texto de André Karam Trindade afirma que o instituto penal do indulto é um “resquício absolutista”, “contrário às noções de devido processo legal e de separação dos Poderes”, além de representar “um arcaísmo jurídico”, que está sustentando um “eficientismo penitenciário”, pois “se transformou num importante mecanismo de uma política penitenciária de viés nitidamente neoliberal, marcada pela lógica da eficiência, voltada à redução de custos”. Além disso, em sua parte final, o texto sugere uma emenda constitucional para “alterar ou até mesmo revogar os dispositivos que tratam do indulto no Brasil” (ipsis literis), uma vez que não se trata de uma cláusula pétrea.
Fundando-me em um método materialista, procurarei analisar a questão preocupando-me, principalmente, com a realidade do Sistema de Justiça Criminal no Brasil (nele inserido as masmorras, digo: os cárceres do nosso sistema prisional), cujas condições estruturais são do conhecimento de qualquer um que tenha acesso aos meios de comunicação ou que atue junto aos aparelhos repressivos de Estado (lugar da fala). Ressalto, desde já, que o propósito do presente texto não é criar celeuma. Apenas quero destacar alguns aspectos práticos importantes da temática proposta pelo ilustre professor, sem olvidar de conceitos como democracia (substancial) e tripartição de poderes.
Indulto e Constituição
No Brasil, o indulto (individual/graça ou coletivo) é uma das formas de extinção da punibilidade (CP, art. 107, II), cuja competência privativa para concessão está constitucionalmente atribuída ao presidente da República (CR, art. 84, XII), observadas certas limitações também de ordem constitucional (CR, art. 5º, XLIII). Portanto, é aparentemente incontroversa a constitucionalidade dessa forma de extinção da punibilidade, cuja competência privativa é do presidente da República. A grande controvérsia está em saber se essa competência, constitucionalmente atribuída ao presidente da República, representa(ria) uma violação à democracia e à tripartição de poderes, representando um “resquício absolutista”.
Pontos de convergência
Dentro de uma concepção formal/procedimental de democracia, seguindo a tradição liberal burguesa incrustada no Estado moderno, é forçoso reconhecer a coerência das ideias defendidas por André Karam Trindade. De fato, o artigo 84, inciso XII, da Constituição da República, permite a tomada de decisões monocraticamente, sem a existência de um controle direto pelos Poderes Legislativo e Judiciário. Destaco, entretanto, que isso não significa que o decreto presidencial que concede o indulto (natalino, por exemplo) seja um ato despótico ou de cunho absolutista, pois não configura uma hipótese de tomada de decisão não sujeita à lei(legibus solutus).
Por outro lado, concordamos que iniciativas como o Decreto 7.873, de 26 de dezembro de 2012, não estão atreladas a sentimentos de piedade humana difundidos na população em geral, mas sim, à necessidade de amenizar o problema de superpopulação carcerária (ver dados do Infopen — Sistema Integrado de Informações Penitenciárias) e a crise fiscal, seguindo a lógica eficientista neoliberal, e, desse modo, perpetuam e revigoram um Sistema de Justiça Criminal desumano, sem a coragem para impulsionar um grandioso projeto de descriminalização no país. A propósito, antes que se levantem as vozes preocupadas com a soltura da “bandidagem”, lembro que a nossa população carcerária cresce diuturnamente, conforme demonstram os dados do InfoPen, não havendo motivo para pânico, já que o “Direito Penal do inimigo” por aqui foi recebido de “braços abertos”. Só que tal constatação é fundamental para concluir que o indulto não traz a almejada redução de custos com a manutenção do sistema prisional.
De qualquer modo, a interrogação consignada no título do texto de André Karam Trindade merece uma resposta mais crítica em relação à concepção de democracia e de absolutismo.
O que é democracia?
Talvez essa seja a maior dificuldade do presente texto: definir o conceito de democracia. Ardilosamente desviarei dessa complicada questão, limitando-me, com apoio em Arnaldo Miglino, a afirmar que, atualmente, democracia não é apenas procedimento, muito embora a garantia de um mundo mais igual dependa desse pressuposto: o procedimento para a tomada de decisões políticas (Ver MIGLINO, Arnaldo. Democracia não é apenas procedimento. Trad. Érica Hartmann. Curitiba: Jurua, 2006). Além disso, Norberto Bobbio lembra, a respeito do conceito de democracia, que, desde a tradição aristotélica das três formas de governo, passando pela tradição romano-medieval da soberania popular, pelo liberalismo e pelo socialismo, até agora não foi realizada, em nenhuma parte do mundo, a “democracia perfeita”, devendo ela ser, simultaneamente, formal/procedimental, constituindo um método para garantir a prevalência da vontade geral, e, substancial, constituindo um valor para garantia da igualdade jurídica, social e econômica (BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 13. ed. Brasília: UnB, 2007. p. 319-329).
Indulto não é “resquício absolutista”!
No caso brasileiro, a concessão de indulto (individual ou coletivo) pelo presidente da República não caracteriza um ato absolutista, muito menos uma violação da democracia (procedimental ou substancial).
Sob o enfoque procedimental, em nosso país, a democracia permanece incólume, independentemente da concepção histórica adotada, porque: a) é mantida a soberania popular (CR, art. 1º, parágrafo único) e a igualdade de todos perante a lei, com a manutenção da liberdade de pensamento, consciência, crença, expressão intelectual, artística, científica, comunicação, e convicção filosófica ou política (CR, art. 5º); b) há limites constitucionais para a concessão de indulto (CR, art. 5º, XLIII); c) o presidente da República é escolhido em sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (CR, art. 14); d) a competência do presidente da República para concessão do indulto e comutação de penas foi definida pelo poder constituinte originário (CR, art. 84, XII), ficando preservado o checks and balance; e) há previsão de responsabilidade criminal do presidente da República, seja em razão de crimes de responsabilidade (Lei 1.079/50, arts. ) ou de crimes comuns (CR, art. 85 e 86); f) o Ministério da Justiça, por intermédio do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária), permite a participação popular na elaboração do decreto de indulto natalino, por meio do envio de sugestões, como ocorreu em 2012; e, finalmente, g) não há qualquer registro histórico comprovado a respeito do uso dessa competência constitucional para atender interesse pessoal do presidente da República.
Sob o enfoque substancialista, a democracia brasileira é um engodo e está totalmente distante da “virtude” (Montesquieu). Afinal: a) temos uma das piores distribuições de renda do planeta (apesar da sensível melhora dos últimos anos), conforme demonstram as informações do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), de 2010; b) nossos magistrados não são escolhidos pelo povo (CR, art. 93, I), e, em regra (!!!), por razões óbvias, são selecionados em concursos públicos dentre burgueses de matriz conservadora; c) há grande injustiça social e pouca solidariedade; d) não se consegue erradicar a pobreza e a marginalização; e) promove-se o bem do “Capital”, ao invés do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor ou idade; f) violam-se, explicitamente, os Direitos Humanos (CR, 1º, III) e a Lei de Execução Penal, notadamente, na parte que trata dos direitos do preso (LEP, arts. 40-43).
Especialmente sobre a violação dos Direitos Humanos, dentre eles os direitos básicos de todo preso, permito-me a seguinte provocação: o leitor já imaginou o quão agradável é permanecer em uma cela de 6m² (seis metros quadrados) — que era para ser individual (LEP, art. 88), só que está superlotada —, nesses dias de verão em que as temperaturas batem recordes de calor em todo o país? Tudo bem, eu sei que — teoricamente — se não tivesse cometido algum crime não estaria preso. Como diz uma certa viúva: “Pra tá lá, boa coisa não fez”!… Ocorre que, se estamos falando em democracia e governo das leis, do povo e pelo povo, não é possível manter seres humanos nas condições do nosso sistema prisional, cujas características físicas violam a Constituição da República e a Lei de Execução Penal.
Esse lamentável panorama não irá melhorar tão cedo e, às vezes, tenho vontade de “jogar a tolha”… O Poder Legislativo desenvolve um gigantesco processo de criminalização primária, trazendo para o Direito Penal condutas de perigo abstrato e de lesividade duvidosa, servindo como ilustração dessa afirmação o PLS 236/2012 (projeto de lei do novo Código Penal) e as emendas a ele propostas pelos Srs. Senadores. O Poder Judiciário ainda segue uma linha de aplicação da lei penal desvinculada dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (CR, art. 3º), resistindo como pode para manter uma grande massa de descamisados presa preventivamente, deixando de aplicar as disposições da Lei 12.403, de 4 de maio de 2011, que alterou o Código de Processo Penal, tornando pior as condições de sobrevivência no cárcere e incrementando o déficit de vagas no sistema. E, o Poder Executivo afunda na burocracia — para dizer o mínimo — tornando morosa e duvidosa qualquer mudança nas condições estruturais do sistema prisional.
Por tudo isso, mesmo representando uma atitude reformista (Róza Luksemburg), a concessão de indulto pelo presidente da República, principalmente o natalino, não pode ser considerada uma forma de violação da democracia (procedimental ou substancial). Assumo certo grau de ingenuidade (ou sentimento de esperança) e afirmo que, antes disso, o indulto pode ser uma ferramenta de correção de erros históricos em termos de política criminal, merecendo destaque nesse sentido o Decreto 7.873/2012, cuja extensão é a maior que já vi na história deste país.
No contexto prisional brasileiro, “absolutista” parece ser um poder punitivo que quer mais cárceres e a exclusão de um mecanismo de extinção da punibilidade (indulto), ou seja, de um mecanismo que amplia a liberdade dos “súditos” e não conta, paradoxalmente, com a simpatia desses mesmos “súditos”, de modo que não pode ser tachado como ação populista ou eleitoreira.
Considerações finais
Para concluir, indulto é garantia democrática!
Por existirem inúmeras arbitrariedades nos processos de criminalização primária e secundária, a manutenção dessa forma de extinção de punibilidade constitui importante ferramenta para a contenção e redução do poder punitivo quando ele se torna despótico, a exemplo do que ocorreu a partir dos efeitos deletérios da onda neoliberal, conforme denúncia feita por vários criminólogos críticos (Alessandro Baratta, David Garlard, Eugênio Raúl Zaffaroni, Lola Aniyar de Castro, Vincenzo Ruggiero, Juarez Cirino dos Santos, Katie Silene Cáceres Argüello, Nilo Batista, Vera Malaguti Batista, Vera Regina Pereira de Andrade, etc.) e pelo sociólogo Loïc Wacquant.
No caso brasileiro, apesar de o decreto de indulto carecer de uma justificativa expressa (de direito), a justificativa (de fato) para a sua concessão está vinculada ao panorama escatológico dos nossos cárceres. Insistimos que houve erros históricos na política criminal brasileira e o indulto pode vir a ser uma das formas de correção desses erros, pois não temos esperança que o Poder Legislativo e o Poder Judiciário possam mudar o paradigma vigente em um curto espaço de tempo, mormente quando os meios de comunicação (especialmente a TV) influenciam, sobejamente, a tomada de decisões políticas e até judiciais ao perverter a noção de democracia da população, pressionando, assim, os nossos agentes políticos na direção do recrudescimento penal em prol do capital. Assim, o indulto representa uma forma de ampliação da liberdade das pessoas, não havendo como confundi-lo com uma manifestação absolutista ou forma de dominação do povo.
Construir mais estabelecimentos prisionais é um desserviço ao país, cujos recursos devem ser investidos em áreas sociais (ênfase na educação), devendo ocorrer o paulatino esvaziamento dos cárceres, malgrado opiniões — ao que tudo indica, majoritárias — em sentido contrário.
Se na Espanha José Luis Rodríguez Zapatero concedeu indulto a um banqueiro e o Tribunal Supremo daquele país foi obrigado a arquivar o processo movido contra ele e seu Ministro da Justiça, afirmando se tratar o instituo do indulto de uma “herança do absolutismo”, o povo espanhol — democraticamente — não votou, nas eleições gerais de 20 de novembro de 2011, em sua maioria, no candidato por ele apoiado (Alfredo Pérez Rubalcaba), preferindo votar no candidato do Partido Popular (Mariano Rajoy).
Portanto, com todo o respeito devido ao pensamento liberal clássico, acreditamos que Beccaria não seria tão crítico da concessão de “clemência” (ou indulto) pelo presidente da República, caso tivesse ficado preso em nossos cárceres por um dia sequer. Em terrae brasilis, estamos longe de “uma legislação perfeita”, muito menos de “penas brandas”, havendo sérios problemas em relação ao “método de julgamento”, onde regularidade e rapidez são duvidosas ou perniciosas. E, finalmente, vivemos na “desordem do sistema penal”, de modo que “o perdão e a graça são necessários, na proporção do absurdo das leis e da crueldade das condenações”.
Leandro Gornicki Nunes é mestre em Direito do Estado (UFPR), especialista em Direito Penal (Universidade de Salamanca) e professor universitário.