Por Claudio de Oliveira Santos Colnago
Um dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição de 1988 consiste na possibilidade de, independentemente do pagamento de taxas, qualquer pessoa poder direcionar petições “aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”[1].
Se, por um lado, é certo que não há direitos absolutos — o que importa concluir que é juridicamente cabível o estabelecimento de restrições[2] ao direito de petição —, também é correto inferir que as restrições aos direitos fundamentais devem ser razoáveis e proporcionais, cabendo seguir as conhecidas regras do juízo de proporcionalidade: devem a) ser adequadas a atingir uma finalidade proposta, b) representar o meio menos gravosos, entre vários disponíveis, para atingir tal finalidade e c) atingir a proporcionalidade stricto sensu, de forma que a intensidade da restrição seja justificada em razão da relevância da finalidade buscada.
Já há alguns anos, o Poder Judiciário iniciou um processo de transição do suporte físico dos autos processuais. Baseado na Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006, esta primeira fase da transição foi marcada pela total falta de unidade na implantação do processo eletrônico, na medida em que o comando de seu artigo 18 estabelece que “os órgãos do Poder Judiciário regulamentarão esta Lei, no que couber, no âmbito de suas respectivas competências”. O resultado foi a proliferação de vários sistemas processuais com características diferentes e que, pasmem, não são compatíveis entre si.
Nos dias correntes, vivenciamos uma segunda fase do processo eletrônico que está marcada pela tentativa de correção deste equívoco: capitaneado pelo Conselho Nacional de Justiça (que o desenvolveu) a tendência atual é que o Poder Judiciário brasileiro venha a implantar de maneira uniforme o Processo Judicial Eletrônico (PJe).
Conforme se infere da justificativa do próprio CNJ, em seu site, além da uniformização, “o CNJ pretende convergir os esforços dos tribunais brasileiros para a adoção de uma solução única, gratuita para os próprios tribunais e atenta para requisitos importantes de segurança e de interoperabilidade, racionalizando gastos com elaboração e aquisição de softwares e permitindo o emprego desses valores financeiros e de pessoal em atividades mais dirigidas à finalidade do Judiciário: resolver os conflitos”[3].
A justificativa do CNJ é plenamente aceitável, haja vista que quanto mais genérico o discurso, maior será o nível de concordância obtido da plateia. Porém, a implantação do processo judicial eletrônico tem ignorado um aspecto de suma importância para uma transição sem atritos: a manutenção, ainda que temporária, do recebimento de petições e documentos em papel. Anunciado como medida de última modernidade, a recusa de recebimento de petições em papel aparenta afrontar o próprio espírito da lei do processo eletrônico, quando estabeleceu em seu artigo 10, parágrafo 3º, que “os órgãos do Poder Judiciário deverão manter equipamentos de digitalização e de acesso à rede mundial de computadores à disposição dos interessados para distribuição de peças processuais”. Ora, se cabe ao Judiciário manter “equipamentos de digitalização” à disposição dos interessados, resta nítido que o órgão judicial não pode se recusar a receber documentos em papel — já que cabe a ele, em última instância, digitalizá-los.
Poder-se-ia argumentar que o recebimento de petições em papel seria um “atraso”, na medida em que dificultaria a popularização do processo eletrônico e sua total implementação. Tal alegação ignora outros dois importantes aspectos da questão:
a) Infraestrutura: a utilização do processo judicial eletrônico depende de inúmeros fatores externos à atuação do advogado, como a velocidade e estabilidade de sua conexão à Internet, a confiabilidade e segurança do servidor utilizado pelo Judiciário, a versão do navegador de Internet utilizado, a versão do Java (linguagem de programação) compatível com o sistema eletrônico, a interligação com bancos de dados externos (como o da Receita Federal, para consulta de CPF/CNPJ), entre outros;
b) Usabilidade: a adoção em massa de um sistema ou serviço, na era da Internet, é mais facilmente obtida em razão do aprimoramento de sua usabilidade do que pelo estabelecimento de sua obrigatoriedade. Esta tem sido a estratégia de sucesso do crescimento das mídias sociais e dos sistemas móveis: utiliza-se o Facebook e o Twitter ou o iOS em razão da facilidade de interação com o serviço — e não porque eles são a única opção disponível no mercado. Se o sistema for bem arquitetado (com a oitiva dos seus usuários finais e constante aprimoramento), a sua utilização não precisará ser imposta — os próprios usuários serão incentivados a adotá-lo em razão dos inúmeros benefícios por ele trazidos.
Assim, nos parece que além de se tratar de uma grave ilegalidade (em razão da previsão do artigo 10, parágrafo 3º da Lei 11.419/2006), a recusa no recebimento de petições em papel, ao menos por um período de transição alargado, consiste em uma restrição desproporcional do direito fundamental de petição, haja vista atentar contra o postulado da necessidade: há meios menos gravosos para se atingir a finalidade pública (popularização do processo judicial eletrônico) que não a restrição total do recebimento de petições em papel. Tal meio é justamente a coexistência dos sistemas digital (processo eletrônico) e analógico (recebimento de petições em papel), em período de transição que deve respeitar as peculiaridades do Brasil — país continental e que conta com milhares de profissionais que, em sua grande maioria, trabalham sozinhos ou com um outro colega.
[1] Artigo 5º, inciso XXXIV, “a” do texto constitucional: “São a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”.
[2] Assim entende o Supremo Tribunal Federal, como pode se inferir da seguinte ementa: “”O direito de petição, fundado no art. 5º, XXXIV, a, da Constituição, não pode ser invocado, genericamente, para exonerar qualquer dos sujeitos processuais do dever de observar as exigências que condicionam o exercício do direito de ação, pois, tratando-se de controvérsia judicial, cumpre respeitar os pressupostos e os requisitos fixados pela legislação processual comum. A mera invocação do direito de petição, por si só, não basta para assegurar à parte interessada o acolhimento da pretensão que deduziu em sede recursal.” (AI 258.867-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 26-9-2000, Segunda Turma, DJ de 2-2-2001).”