Por Fábio Martins de Andrade
O filme Lincoln, atualmente em cartaz, fala sobre a saga que consumiu os últimos dias do Presidente norte-americano Abraham Lincoln, dirigido por Steven Spielberg e estrelado por Daniel Day-Lewis, em busca do apoio político necessário para passar no Congresso a 13ª Emenda à Constituição Federal, que versou sobre a abolição da escravidão no País.
Sua aprovação apertada (pela maioria qualificada necessária para a aprovação de emenda constitucional) ilustra claramente como o tema era polêmico naqueles tempos. Pouco tempo depois ele foi assassinado, reforçando como o assunto era sensível e realmente dividia aquela recém-criada união em dois grupos antagônicos que demoraria a acomodar suas legítimas pretensões econômicas. Foi um período de inegável racha doméstico entre duas correntes que rivalizavam a forma de pensar o desenvolvimento econômico: o norte industrializado (abolicionista) contra o sul agrícola (fundado na escravidão).
O que isso tem a ver conosco? Muita coisa. Sob um ponto de vista histórico, enquanto lá o processo político de abolição da escravidão se consumou legislativamente em 1865, por aqui isso veio a ocorrer em 1888. Em realidade, em 1826 foi assinado um tratado entre a Inglaterra e o Brasil, pelo qual foi declarado ilegal o tráfico de escravos para o Brasil. Em cumprimento ao tratado, uma lei de 7 de novembro de 1831 previu severas penas aos traficantes, bem como declarou livres os cativos que entrassem no Brasil a partir de então (historicamente, tratou-se da primeira “lei para inglês ver”). A Inglaterra reiterou a pressão por medidas mais enérgicas pelo governo brasileiro. Paulatinamente o tráfico de escravos foi rechaçado e o ingresso de novos escravos foi diminuindo, culminando com a abolição da escravatura em 1888. Aqui, o choque era entre a Inglaterra (então potência hegemônica do período) industrializada e o Brasil agrícola.
Além disso, há outro aspecto que podemos identificar mais contemporâneo. É interessante notar como no berço do atual modelo democrático do mundo ocidental houve a negociação de votos parlamentares em troca de favores, de modo mais ou menos expresso, com ou sem conhecimento do Chefe do Poder Executivo.
É precisamente o delicado arranjo político da época que é retratado com maestria no filme e a busca do chefe do Poder Executivo, mediante delegação para o secretário de Estado, para obter a maioria qualificada necessária para aprovar a emenda então proposta, inclusive com as consequências deletérias do uso indevido da máquina pública em prol de seu projeto político. Resta evidenciado no filme que votos foram comprados com troca de favores políticos e dinheiro.
Nesse ponto, particularmente para nós o filme ilustra algumas práticas e experiências que julgávamos inerente apenas e tão somente ao nosso incipiente regime democrático. Não assim! É prática inerente à democracia e ao jogo das cadeiras necessário para a alternância de poder. Com efeito, há corrupção onde há democracia. E isso, ao menos virtualmente, nunca deixará de existir. É que o governo é dos homens (falíveis), e não dos super-homens e alienígenas.
Ademais, pode ser louvável a intenção do governante, como no filme onde a intenção de Lincoln com a aprovação da emenda era colocar fim a uma guerra interna que devastava o país. Contudo, isso não é justificativa suficiente para que todos os meios sejam permitidos para alcançar o fim almejado, por mais nobre e digno que seja.
Como lá, também aqui, é importante notar que a prática da compra de votos de parlamentares para o alcance de eventual maioria transitória necessária para a aprovação de determinada reforma ou programa delineado pelo Poder Executivo como prioritário para o Governo não é tão nova.
De fato, já na transição entre o Império e a República houve fato curioso digno de nota. De fato, o “homem forte” do Imperador D. Pedro II foi também o nosso segundo presidente da República (Marechal Floriano Peixoto).
Aliás, os dois primeiros presidentes foram militares, o que já é curioso por si só, especialmente se levarmos em consideração que não tivemos uma revolução ou guerra interna para proclamar a República, mas apenas um arremedo de golpe, onde — há relatos — poucos que ali estavam sabiam exatamente o que estava ocorrendo. Mas, isso é outra história.
Mais recentemente, no governo Fernando Henrique Cardoso, notícias preocupantes foram reveladas pelos órgãos da mídia sobre a escancarada troca de favores políticos (com o fatiamento dos Ministérios para os aliados, dentre outros) em prol da aprovação da emenda que permitiu uma reeleição para o cargo de Chefe do Executivo (Emenda Constitucional 16/97) no que ficou conhecido como “escândalo da reeleição”.
Verifica-se, portanto, que a corrupção vive à espreita do poder e recrudesce onde há fraqueza na prestação do serviço público. E isso não é novo e tampouco invenção tupiniquim. Por aqui, sintomático é o resultado do julgamento do Caso Mensalão, concluído no final do ano passado e cujo acórdão deve ser publicado em breve.
Certamente foi o caso mais complexo e demorado da história da Suprema Corte, tendo ocupado a sua pauta de agosto até dezembro. Diversas conclusões, dúvidas, questionamentos, críticas e comentários podem — e certamente serão — tecidos ao Tribunal em relação a esse julgamento. Entendemos, porém, que aqui não é o espaço adequado para aprofundar nessa linha.
Aqui, o que julgamos importante é apenas registrar um aspecto (que pode ser) positivo do referido julgamento. Sabemos que o fato de ser a compra de votos parlamentares uma prática disseminada há décadas (e séculos) no Brasil não seria razão suficiente para livrar a culpa dos réus que foram condenados, sob pena de transformar a lei em mera letra morta (que não é desejável em um Estado que se pretende Democrático de Direito).
O aspecto positivo que pode surgir do julgamento do Mensalão consiste na mensagem claramente dada pela sociedade, encabeçada nesse episódio pelo STF, no sentido de que: não serão mais toleradas tais práticas pelos eleitores, estamos todos cansados de tantos escândalos (concluídos sempre em “pizza”), enfim, será necessário corrigir essa deformidade cultural de nosso jeitinho de fazer “política” para alcançarmos as metas e os objetivos que têm sido traçados para o Brasil (hoje vocacionado a se desenvolver).
Para que isso ocorra, será necessário observar atentamente os próximos anos e as eleições que ocorrerão. Estranhamente, em movimento claramente antagônico e chocante, assistimos outro dia o senador Renan Calheiros assumir a Presidência do Senado Federal, em claro ajuste político que achou por bem desconsiderar todo esse momento atualmente vivido e se limitando a considerar as necessidades fisiológicas internas daquela Casa. Isso tem dado o que falar nas redes sociais, com a circulação de inúmeras mensagens de indignação e revolta dos eleitores.
Se esse tipo de prática continuar — e aqui colocamos no mesmo saco todos os diferentes tipos de corrupção e até desvios de caráter de homens públicos — então o julgamento do Mensalão terá sido apenas e tão somente um espasmo da sociedade, mediante a sua última trincheira de proteção (STF), sem qualquer reflexo para o futuro do país, a despeito das penas exemplares que foram cobradas pelos órgãos da mídia e aplicadas pela Suprema Corte.
Ao contrário, se o julgamento do Mensalão representar um divisor de águas no modo de fazer política no Brasil, com o efetivo debate em torno da tão esperada Reforma Política, de modo que envolva a sociedade civil organizada, e levar a um jeito diferente de implementar programas e projetos pelo governo, distanciado do nosso conhecido jeitinho brasileiro, então a sua importância histórica será ainda muito maior, na medida em que servirá como cristalizador de enorme anseio de toda a sociedade.
Nesse caso, da mesma forma que o Lincoln ficou conhecido pela sua saga para conseguir, custasse o que fosse, a aprovação da Emenda 13 (para abolir a escravidão), o STF pode ter dado o pontapé inicial para que no futuro possamos lembrar do julgamento do Mensalão como um marco que foi necessário rumo a um novo jeito de fazer Política no Brasil.
Se isso não acontecer, mudarão as formas de sua prática, mas a corrupção continuará a ser o tom maior do jeitinho tupiniquim de fazer “política”, com evidente impacto no rumo que o Brasil deve seguir em direção ao pleno desenvolvimento. Vale a pena assistir o filme, muito rico no seu aspecto histórico (e atual para nós), e acompanhar os próximos capítulos que serão escritos nas nossas próximas eleições.