JOSÉ ALEXANDRE DE LUNA
Já tive a oportunidade de escrever sobre a “A INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA LIMITAÇÃO A PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA” em artigo publicado na Editora Magister (disponível aqui).
Naquele artigo, destaquei o erro do projeto ao permitir a penhora de bem de família com valor superior a 1.000 salários mínimos, sob o argumento de que a nossa CF buscou dar garantia a família brasileira e não fez nenhuma distinção pecuniária entre bem de alto ou baixo valor, para excluir um e incluir outro no rol dos bens passíveis de serem constritados em eventual execução.
Mais uma vez, entendo que os projetos, padecem de inquestionável equívoco ao tratarem sobre a fraude a execução.
Digo isso, porque tanto o novo projeto apresentado pelo Deputado Paulo Teixeira (§ 2º do artigo 808), como o projeto que veio do Senado Federal (parágrafo único do artigo 749), buscam inverter, sem nenhum amparo no entendimento doutrinário e jurisprudencial já firmado sobre o tema, a lógica das relações negociais que versem sobre a alienação de bem imóvel.
Isso porque em ambos os projetos há previsão de que, in verbis:
” Não havendo averbação no registro do bem, o terceiro adquirente tem o ônus da prova de que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem”.
Ora, esse dispositivo inverte a lógica da boa-fé ao impor ao adquirente do bem imóvel, que faça prova de que a aquisição está sendo feita de boa-fé, o que se revela absurdo.
O Superior Tribunal de Justiça, já pacificou o entendimento de que não havendo nenhum registro ou averbação na matrícula do imóvel ou da existência de má-fé do adquirente, a compra é de boa-fé. E nem poderia deixar de ser assim, já que a boa-fé, ao contrário do que entendem os autores desses projetos, é presumida, e não o contrário.
Nesse sentido, cabe aqui destacar o conteúdo da Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça que assim dispõe:
” Súmula 375 – O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirenteSúmula 375 – O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
Ressalta-se que no julgamento dos precedentes que deram suporte a edição da mencionada Súmula 375 do STJ foi muito debatida essa questão (se o registro da penhora é ou não pressuposto indispensável à configuração de fraude na alienação do bem imóvel penhorado) – precedentes: REsp 865974 RS, REsp 810170 RS, AgRg no REsp 1046004 MT, REsp 493914 SP, REsp 921160 RS, REsp 943591 PR, EREsp 509827 SP, REsp 734280 RJ, REsp 739388 MG, EREsp 144190 SP, REsp 66180 PR, REsp 193048 PR, REsp 123616 SP, REsp 186633 MS, REsp 135228 SP, EREsp 114415 MG, REsp 140670 GO, REsp 40854 SP, AgRg no Ag 54829 MG e AgRg no Ag 4602 PR.
Destaco aqui, o voto proferido pelo então Ministro do STJ Teori Albino Zavascki no Recurso Especial nº 865.974-RS, in verbis:
“(…)
2.Toda a controvérsia gira em torno de se saber se o registro da penhora é ou não pressuposto indispensável à configuração de fraude na alienação do bem imóvel penhorado.
Em nossa lei processual, a determinação de registro da penhora de bem imóvel surgiu, formalmente, com a inclusão, pela Lei 8.953/94, do § 4º ao art. 659. Entretanto, mesmo antes disso, a jurisprudência já considerava que o registro constituía prova segura e suficiente para elidir a presunção de boa-fé do adquirente do bem imóvel penhorado. Nesse sentido, aliás, dispunha o art. 245 da Lei 6.015/73 (a inscrição da penhora faz prova quanto à fraude de qualquer transação posterior ).
A esse respeito, a jurisprudência desta Corte consolidou-se no sentido de que, ante a ausência do registro da penhora, para que seja caracterizada fraude à execução, impõe-se ao credor o ônus de provar que o adquirente tinha ciência da constrição que pesava sobre o imóvel. Neste sentido, os seguintes precedentes:
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. PENHORA EM IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE REGISTRO EM CARTÓRIO. INEXISTÊNCIA DE FRAUDE. TRANSAÇÃO VÁLIDA. SÚMULA Nº 84/STJ. PRECEDENTES. 1. Recurso especial interposto contra acórdão que reconheceu não ter ocorrido fraude à execução, já que à época em que celebrada a venda do imóvel, não havia registro da penhora no cartório imobiliário.
2. O art. 129, § 9º, da Lei nº 6.015/73 dispõe que: ”Estão sujeitos a registro, no Registro de Títulos e Documentos, para surtir efeitos em relação a terceiros: § 9º Os instrumentos de cessão de direitos e de créditos, de sub-rogação e de dação em pagamento”.
3. Todavia, sobrelevando a questão de fundo sobre a questão da forma, a jurisprudência desta Casa Julgadora, como técnica de realização da justiça, tem imprimido interpretação finalística à Lei de Registros Públicos. Tal característica está assente na Súmula nº 84/STJ: “É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro”.
4. “O CTN nem o CPC, em face da execução, não estabelecem a indisponibilidade de bem alforriado de constrição judicial. A pré-existência de dívida inscrita ou de execução, por si, não constitui ônus ‘erga omnes’, efeito decorrente da publicidade do registro público. Para a demonstração do ‘consilium’ ‘fraudis’ não basta o ajuizamento da ação. A demonstração de má-fé, pressupõe ato de efetiva citação ou de constrição judicial ou de atos repersecutórios vinculados a imóvel, para que as modificações na ordem patrimonial configurem a fraude. Validade da alienação a terceiro que adquiriu o bem sem conhecimento de constrição já que nenhum ônus foi dado à publicidade. Os precedentes desta Corte não consideram fraude de execução a alienação ocorrida antes da citação do executado alienante. (EREsp nº 31321/SP, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJ de 16/11/1999).
5. Não há que se falar em fraude contra credores se, quando da alienação do bem, não havia registro de penhora. Para tanto, teria que restar nos autos provado que o terceiro adquirente tinha conhecimento da demanda executória, o que não ocorreu no caso em apreço. Precedentes.
6. Recurso especial não-provido (REsp 791.104/PR, Min. José Delgado, 1ª Turma, DJ 06.02.2006).
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – EMBARGOS DE TERCEIRO – ALIENAÇÃO DE IMÓVEL SEM REGISTRO NO CARTÓRIO – FRAUDE À EXECUÇÃO FISCAL NÃO CARACTERIZADA – PRECEDENTES. 1. Ausente o registro de penhora ou arresto efetuado sobre o imóvel, não se pode supor que as partes contratantes agiram em consilium fraudis. 2. Não-demonstrado que o comprador tinha conhecimento da existência de execução fiscal contra o alienante ou agiu em conluio com o devedor-vendedor, sendo insuficiente o argumento de que a venda foi realizada após a citação do executado. Precedentes. Agravo regimental improvido (AgRg no REsp 1046004/MT, Min. Humberto Martins, 2ª Turma, DJe 23.06.2008).
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. FRAUDE À EXECUÇÃO. REQUISITOS. ACÓRDÃO EMBARGADO EM CONSONÂNCIA COM ENTENDIMENTO DESTA CORTE. SÚMULA 168/STJ. 1 – O acórdão embargado em consonância com o entendimento pacífico desta Corte assevera que ante a ausência do registro da penhora a decretação de fraude à execução depende da prova do conhecimento, por parte do adquirente do imóvel, de ação pendente contra o devedor capaz de reduzi-lo à insolvência. Incidência da súmula 168/STJ. 2 – Agravo regimental desprovido (AgRg no EREsp, Min. Fernando Gonçalves, 2ª Seção, DJ 08.11.2007).
Foi esse o entendimento adotado pelo acórdão recorrido, que deve, portanto, ser mantido.
3. Diante do exposto, nego provimento ao recurso especial. É o voto.
Desse modo, constata-se que os projetos em trâmite na Câmara dos Deputados NÃO respeitam a jurisprudência consolidada do STJ, nem tampouco a lógica, eis que presumem a má-fé ao invés da boa-fé.
Nesse sentido cabe ressaltar a doutrina do professor Rodolfo Kronemberg Hartmann[1] que assim destaca, in verbis:
“(…)
Logo, observa-se que o mencionado dispositivo deixa bem claro que, caso a averbação do termo ou ato de penhora tenha sido realizada pelo exequente, não poderá o eventual comprador do bem alegar que tenha agido com boa-fé na as aquisição.
Só que, uma interpretação a contrariu sensu desta mesma norma permite concluir que, se esta averbação, que é facultativa, não for realizada, poderá o terceiro alegar boa-fé e ver seu direito prevalecendo sobre aquele alegado pelo credor. Esta conclusão vem sendo adotada em reiterados julgados do STJ, o que motivou a criação do Verbete nº 375 da sua súmula, nos seguintes termos: “o reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
(…)”
Insta ressaltar que após a reforma operada pela Lei 11.382/2006, foi inserido no CPC o art. 615-A que possibilita ao exeqüente obter certidão, no ato de distribuição da execução, comprobatória do ajuizamento da execução, com identificação das partes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto.
Para aquelas hipóteses em que ainda não exista título executivo judicial, o CPC também possibilita, nos artigos 867 a 876, o protesto contra alienação de bens ou a constituição de hipoteca legal, conforme orienta a jurisprudência:
APELAÇÃO. REVOCATÓRIA. ALIENAÇÃO DE BENS QUANDO JÁ PENDIA AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C PERDAS E DANOS CAPAZ DE REDUZIR OS DEVEDORES À CONDIÇÃO DE INSOLVÊNCIA. Inexistência de um crédito anterior a ensejar a anulação do negócio jurídico e a total procedência da ação revocatória, com fundamento na fraude contra credores. Ajuizamento de demanda anterior à alienação que, contudo, permite o reconhecimento da existência de fraude à execução. Aplicação do princípio da mihi factum dabi tibi jus. Credores que tiveram o cuidado de promover cautelar de protesto contra alienação de bens. Editais que desfiguraram eventual alegação de boa fé dos adquirentes. Venda pelos agravados depois de citados na ação de conhecimento e expedidos os editais públicos atinentes ao protesto. Ineficácia das alienações. Decisão Reformada. Recurso Parcialmente Provido. (TJSP; APL 994.02.005709-5; Ac. 4392365; Piracicaba; Terceira Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Egidio Giacóia; Julg. 23/03/2010; DJESP 13/05/2010).
Existe ainda a possibilidade do arresto previsto tanto no artigo 813, combinado com o parágrafo único do artigo 814, que assim dispõe, in verbis:
“(…)
Parágrafo único. Equipara-se à prova literal da dívida líquida e certa, para efeito de concessão de arresto, a sentença, líquida ou ilíquida, pendente de recurso, condenando o devedor ao pagamento de dinheiro ou de prestação que em dinheiro possa converter-se.”
Pelo que se vê, é possível adaptar a vontade do legislador, a jurisprudência e doutrina já consolidadas sobre o tema, sendo desaconselhável a mudança radical no regime da presunção da boa-fé, pelo da má-fé.
Por fim, nem se alegue que os dispositivos inseridos nos projetos por indicarem que as certidões pertinentes, deverão ser obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem, são suficientes para afastar o comando da Súmula nº 375 do STJ, pois conforme aduz o artigo 71 do Código Civil de 2002, a pessoa natural pode ter diversas residências, onde, alternadamente, viva, e qualquer delas pode ser seu domicilio.
Assim, caso o vendedor de má-fé, não revele ao comprador que possui outro domicílio (onde possa haver ações executivas em tramite), o comprador poderá ser surpreendido com a busca pela bem que adquiriu, segundo a redação constante nos projetos, o que certamente ocasionará prejuízos ao setor imobiliário, ante a fragilidade dada pelos projetos ao comprador de boa-fé.
Desse modo, por mais que uma novel legislação não se submeta a jurisprudência já firmada sobre determinado assunto, me parece claro que nesse caso específico, além de violar o entendimento do STJ, há violação a lógica comercial que rege a estrutura desse tipo de negócio. Esse dispositivo, certamente causará um verdadeiro caos no sistema de aquisições imobiliárias no país.
JOSÉ ALEXANDRE DE LUNA
Advogado; Especialista em Direito Tributário pelo IBET/CHIESA – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários; Especialista em Direito Privado e Empreendedorismo pela FGV/SP; Especialista em Direito Civil com ênfase na Lei de Registros Públicos e Código de Defesa do Consumidor; Especialista em Direito Municipal pela LFG; Pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).