Por Henrique Cavalheiro Ricci
O direito é norma.
Quando digo isso em sala de aula sempre observo olhos arregalados, o que me impõe ir além e fazer a devida explicação. Sintaticamente, o direito é um conjunto de normas, as quais têm por objeto condutas humanas, e estas (as condutas humanas) não são normas, mas sim são acontecimentos que ocorrem diuturnamente em um sistema muito mais complexo, que é o sistema social.
Assim, se o direito se fecha no plano sintático, se abre nos planos semântico (das significações) e pragmático (do uso do direito pelos destinatários). A interpretação do direito não é tarefa nada fácil, portanto. Aliás, muitos dos grandes problemas atuais do direito gravitam justamente em torno da hermenêutica.
A jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região[1] tem acórdãos em que decidiu que o prazo em dobro previsto no artigo 191, do Código de Processo Civil[2], é inaplicável aos processos eletrônicos. Em suma, segundo tal orientação[3] não há que se falar em prazo em dobro na hipótese de haver litisconsortes representados por procuradores distintos em processo eletrônico, já que a finalidade da norma seria garantir acesso aos autos.
Confesso que “pensei duas vezes” antes de escrever esse texto. Lembrei-me de uma brincadeira que um brilhante professor de direito constitucional paranaense fazia ao comentar que, em virtude da simetria entre os entes federados, governadores e prefeitos, desde que autorizados pelas respectivas constituições estaduais e leis orgânicas, poderiam editar medida provisória.
Em plena era da informação é despiciendo querer guardar em segredo uma decisão como essa, é melhor, portanto, comentá-la.
Classicamente aprendemos que os métodos de interpretação, em síntese, são o literal ou gramatical, o histórico ou histórico-evolutivo, o lógico, o teleológico e o sistemático.
Em sala[4] brinco com os alunos. Convoco-os a promover cada um desses métodos por dia da semana. Segunda-feira o histórico, terça o teleológico, quarta o lógico, quinta o sistemático e sexta, para que eles se deem um “relax”, o literal.
Mas, brincadeiras a parte, será que tais “métodos” interpretativos agem de forma estanque? O fenômeno jurídico seria por vezes enfrentado literalmente, ou, em outras oportunidades, sob a perspectiva lógica, em outras, sistemática, e assim por diante?
Não me parece que a resposta seja positiva.
Interpretar é atribuir sentido a coisa interpretada. Trata-se de um processo absolutamente dinâmico, onde o intérprete realiza cada um desses métodos simultaneamente. Se não simultaneamente enquanto procedimento psíquico, simultaneamente enquanto se analisa a interpretação como produto da atividade intelectual humana.
Explico.
Quando nos deparamos, por exemplo, com o que o texto do Código Comercial de 1850 ainda tem em vigor, por óbvio que, do ponto de vista lógico-cronológico, o primeiro enfrentamento é com a literalidade do texto e com as regras gramaticais. Imediatamente nos colocamos a situar tal texto no contexto histórico, tanto de quando ele foi escrito quanto daquele momento em que ele estará a ser aplicado. Além disso, fazemos correlações lógicas e sistemáticas com outras normas do sistema, assim como pensamos em sua finalidade dentro do sistema (e, quando nos voltamos ao sistema jurídico, nos colocamos, novamente, frente a todos os métodos acima referidos).
O intérprete percorre todos esses métodos, são idas e vindas entre eles até que se construa o sentido da norma interpretada. Nesta espiral interpretativa, é claro que por vezes se nota o destaque maior de um determinado critério.
Coloquemos-nos a pensar em nosso cotidiano. Lemos o texto interpretado, em seguida, vamos à Constituição, depois “descemos” às regras infralegais regulamentares e, em seguida, “voltamos” ao texto interpretado, tudo isso sem tirar os olhos do contexto histórico-social e econômico, assim como da finalidade e da função do instituto…
A orientação jurisprudencial noticiada acima, que entendeu que inaplicável a dobra do artigo 191, do CPC, ao processo eletrônico, menospreza tudo o que se disse sobre interpretação. Ela toma o processo interpretativo como algo estanque e passível de eleição de um único método. Talvez nem o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Maximiliano, autor do clássico “Hermenêutica e aplicação do direito”, tenha pensado em um meio tão fechado de interpretação, e olhe que ele escreveu na década de 30!
De plano, esse entendimento viola a própria disposição do artigo 191, do Código de Processo Civil, que dispõe “literalmente” de forma contrária. Além disso, ele olvida-se de princípios constitucionais como o devido processo legal e o acesso à justiça, sem contar um outro princípio importantíssimo, decorrência deste último, que é a instrumentalidade das formas.
Ademais, tais acórdãos não analisam a questão sob a ótica da segurança jurídica e da legítima confiança. O Código de Processo Civil outorga tal direito ao litisconsorte, e não exige nada em troca, a não ser a coexistência de procuradores distintos. A parte confiante no que o direito positivo lhe outorga se vale de tal prerrogativa e o Judiciário, contrariando a expectativa gerada pelo texto normativo, declara intempestivo o ato processual praticado com base no artigo 191, do CPC.
A segurança jurídica deve prevalecer, inclusive, em relação à eventual alegação de ofensa à isonomia. Insisto, advogados, públicos ou privados, ao se depararem com a regra contida no artigo 191, do Código de Processo Civil, se portam, ou podem vir a se portar, da forma em que o indigitado comando lhes asseguram. Decisões nesse sentido rompem com a segurança e com a confiança, que deveriam ser garantidas pelas instituições, na medida em que contrariam frontalmente o comando do indigitado dispositivo. Lembrando que o direito e as instituições também existem para nos dar segurança.
Nem o método teleológico salva o indigitado entendimento, já que se esquece que o acesso à justiça não impõe apenas meios para a parte “acessar” o Judiciário, mas, e principalmente, mecanismos de possibilitar um percurso inteligente e eficiente ao longo do trâmite processual, assim como uma tutela adequada ao caso. Esse raciocínio limita-se a analisar o aspecto teológico de um instituto que está inserido dentro de um todo que é muito maior que ele.
Fora isso, não há na legislação especial do processo eletrônico disposições a respeito do prazo processual para os litisconsortes representados por advogados distintos, razão pela qual, me leva a concluir que, ainda que se trate de processo eletrônico, mantém-se hígida a regra do artigo 191, do Código de Processo Civil.
A alternativa à violação à legítima confiança é o juiz informar, no início do processo, que não aplicará a dobra prevista no artigo 191, do Código de Processo Civil. Mesmo assim, tenho dúvida da legitimidade de isso ser feito amparado no aspecto teleológico, não sei até que ponto o Judiciário poderia, com tal argumento, afastar a aplicação de dispositivo legal tão claro e preciso como o ora discutido. Se um magistrado entende que em sua comarca há número suficiente de procuradores da União, poderia ele deixar de aplicar o prazo em dobro ou em quádruplo apenas com base no aspecto teleológico? Talvez, neste ponto, seria o caso de sustentar a quebra de isonomia entre as partes, já que o polo onde houver litisconsortes com procuradores distintos teria prazo em dobro, diferentemente do outro polo. Se antes o prazo em dobro se justificava pela dificuldade de acesso aos autos físicos, com os autos eletrônicos, tal benesse já não se sustenta mais. Mas frise-se: essa interpretação só seria validamente aplicada se o juiz expressar isso no início do processo, antes da prática do ato processual que foi realizado com base na dobra.
Henrique Cavalheiro Ricci é sócio do escritório Medina & Guimarães Advogados Associados e professor de Direito Falimentar e de Direito Tributário na PUC-PR.