Na última semana foi aprovado, em Vitória, projeto de lei municipal que obriga hotéis, motéis, pousadas e similares a cadastrar todos os hóspedes e, em seguida, pesquisar no Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), do Conselho Nacional de Justiça, se há algum mandado contra eles. Em caso positivo, o estabelecimento deve hospedar a pessoa e informar a Polícia. Como pena em caso de descumprimento, o projeto prevê primeiro uma multa e, em caso de reincidência, a cassação do alvará de funcionamento do estabelecimento.
Na opinião de especialistas ouvidos pela ConJur, o projeto esbarra no direito à livre iniciativa dos prestadores de serviço. Segundo eles, o fato de o banco de dados ser de livre acesso (clique aqui para ver) poderia ensejar, no máximo, uma recomendação ou um esclarecimento ao setor privado para que, querendo e achando necessário, faça a consulta. E não uma obrigação.
A consulta facultativa era exatamente a ideia do juiz Marcelo Menezes Loureiro, coordenador da Coordenadoria das Varas Criminais e de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, autor da proposta que foi utilizada na fundamentação do vereador.
Loureiro explica que, em março, recomendou à Secretaria de Segurança Pública municipal que fizesse uma campanha, incentivando os proprietários desses estabelecimentos a fazer a consulta. “Em minha recomendação, não existia a obrigação, somente uma sugestão para que fosse criada uma campanha pela Secretaria de Segurança Pública incentivando a consulta”, conta. Porém, pelo fato de a proposta do juiz não ter poder coercitivo, o vereador, por iniciativa própria, apresentou o projeto de lei que agora aguarda a sanção do prefeito Luciano Rezende (PPS).
De acordo com a justificativa do vereador Rogerinho Pinheiro (PHS), a lei proposta por ele é uma ferramenta para combater a criminalidade, “de maneira inteligente”, para que as decisões judiciais sejam cupridas. Entretanto, apesar de aprovada por seus colegas da Câmara de Vereadores e pelas comissões — inclusive a de Constituição e Justiça —, advogados alertam que a medida é iconstitucional, pois transfere à inciativa privada uma obrigação de segurança pública, que é dever do Estado.
Especialista em Direito do Turismo, o advogado Vinicius Francisco de Carvalho Porto, sócio do Marcelo Tostes Advogados, afirma que além da transferência de obrigação, o projeto traz risco aos estabelecimentos. “Se mostra inadmissível repassar à iniciativa privada uma obrigação de segurança pública, gerando mais uma obrigação para o empresário do turismo e risco para funcionários e proprietários dos meios de hospedagem, que ficarão, em última instância, responsáveis pela localização do foragido, não por gosto, mas por obrigação legal”, diz.
Ele explica que, atualmente, o registro de hóspedes é obrigatório por lei e está regulamentado pela Lei Geral do Turismo (Lei 11.771/2008), assim como pelo Decreto 7.381/2010, regulamentado pela Portaria 177/2011, com alterações da Portaria 216/2012, ambas do Ministério do Turismo. Porém, aponta que a finalidade do registro é gerar estatísticas do setor de turismo. De acordo com Porto, o que o projeto poderia ter obrigado é que os registros de hóspedes fossem enviados não só para os órgãos nacionais do turismo, mas também aos órgãos de segurança do estado do Espírito Santo. Porém, sem transferir a responsabilidade do Estado para o setor privado.
Para o criminalista Daniel Gerber, do escritório Eduardo Antônio Lucho Ferrão Advogados Associados, o projeto é inconstitucional e imoral. “Inconstitucional porque fere uma legítima expectativa de privacidade que todos nós temos ao preencher cadastros de hotéis, sendo violada, portanto, a garantia de intimidade que nossa Constituição fornece a todo cidadão. Imoral porque cria um panóptico social, onde todos passam a olhar o próximo com desconfiança, e sempre como um inimigo em potencial. Isso acaba por esgarçar as relações sociais a ponto de fazer com que cada um se isole ainda mais em suas individualidades”, diz. Além da questão constitucional, Gerber afirma que beira a ingenuidade achar que um foragido vai dar nome verdadeiro em um hotel. Ele aponta ainda que a proposta acabaria por criar uma nova fonte de corrupção moral, onde o atendente do hotel poderá cobrar valores para deixar de fazer o que lhe foi imposto por lei.