Juízes de primeira instância devem participar do orçamento

Recebi com grande satisfação a notícia da escolha do magistrado gaúcho João Ricardo dos Santos para a presidência da Associação dos Magistrados Brasileiros, em votação direta de quase dez mil juízes associados, encabeçando a chapa da oposição ao lado de valorosos magistrados da nova geração.

Além da grande festa democrática, sua eleição me fez recobrar a fé na força do movimento associativo, afastando de vez a névoa do imobilismo e corporativismo que rondavam a magistratura.

De fato, porque é vedado aos juízes a criação de sindicatos, as associações de magistrados tem papel relevante. Preocupam-se com o funcionamento do Poder Judiciário e a democratização do acesso à justiça, lutam contra a desigualdade social que atinge o nosso povo, na exata medida em que o processo judicial pode ser utilizado como instrumento para minimizá-la. Ao buscarem melhores condições de trabalho para os juízes, as Associações em verdade reforçam a possibilidade de prestar jurisdição com eficiência. Postulando um Judiciário independente, permitem maior efetividade aos direitos e garantias constitucionais dos cidadãos.

A independência dos juízes, com efeito, é fundamental para o Estado de Direito. É vital para a sociedade brasileira moderna — que reinicia a caminhada democrática, reconstruindo suas instituições dilaceradas pelo arbítrio — poder contar com magistrados altivos e independentes, para arrostar a eventual pressão da máquina estatal ou o poderio dos grupos econômicos.

A questão da independência dos juízes tem íntima ligação com o que se denomina de controle de constitucionalidade das leis.

No caso dos Estados Unidos da América, a partir da Constituição de 1787, surgiu fenômeno denominado supremacia da Constituição (a “lei das leis”). Os americanos, após a luta sangrenta pela independência, compreenderam bem o grande desafio do homem contra o tempo e contra a morte e trataram de inserir na Constituição os valores principais da sociedade que pretendiam ver construída. As leis passam e podem ser revogadas, mas a Constituição fica.

A sociedade americana incumbiu seus juízes de interpretar esses valores da Carta Constitucional, fazendo com que se tornem perenes, mas adaptados à realidade moderna. Na luta contra o tempo, são os magistrados os encarregados de dizer se uma lei fere ou não os princípios constitucionais.

É o movimento descrito na doutrina constitucional como judicial review, pois a sociedade confiou aos juízes, pela força de seus julgamentos, a concretização das normas constitucionais.

Percebe-se claramente a diferença do sistema francês. No berço da revolução que modificou o mundo, os franceses pós-revolucionários passaram a nutrir desconfiança em relação aos juízes, um dos poucos cargos de funcionários públicos que não foram decapitados pelo nouveau regime.

Talvez por isso, também, tomando o paradigma francês, alguns países europeus tenham constituições flexíveis – que podem ser alteradas por legislação menor –, criando o que se denominou chamar de supremacia do parlamento.

Como havia desconfiança na atuação do Judiciário sob o velho regime francês, melhor seria não lhe confiar a guarda absoluta dos valores constitucionais, nem tornar imutáveis as Constituições.

No Brasil, desde a primeira Constituição Republicana de 1891, os juízes gozam das principais garantias, como a vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos, o que coloca o Poder Judiciário brasileiro em um estágio avançado em relação aos vizinhos latino-americanos. Além, evidentemente, de o recrutamento para a carreira ocorrer, em regra, pela via do concurso público, e o nosso modelo de Corte Suprema é o norte-americano.

Contudo, temos muito ainda a caminhar. Uma das questões atuais mais relevantes é que os juízes de primeiro grau, ao lado de outros atores, querem participar da elaboração da proposta orçamentária do Judiciário.

Vale lembrar a sempre atual advertência de Calamandrei: “Não é honesto refugiar-se atrás da cômoda frase feita de quem diz que a magistratura é superior a toda crítica e a toda suspeita: como se os magistrados fossem criaturas sobre-humanas, não tocados pela miséria dessa terra, e por isso intangíveis. Quem se satisfaz com estas vãs adulações ofende a seriedade da magistratura: a qual não se honra adulando-a, mas ajudando-a, sinceramente, a estar à altura de sua missão.”

Na verdade, um dos pontos centrais para melhorar o funcionamento da máquina relacionada ao Poder Judiciário é resgatar a estrutura adequada na primeira instância. É a porta de entrada das mais de 28 milhões de novas ações anuais que entopem a máquina, tomando como base o número de 2012, e justamente são essas as unidades que menos recursos financeiros recebem.

A participação ordenada, transparente e qualificada de todos os magistrados na elaboração da proposta orçamentária por certo lhe conferirá maior teor de aptidão para responder aos reptos do novo século, em matéria de eficiência no desempenho da jurisdição, afastando a concentração de poderes e superando a compartimentação que caracterizam a cultura administrativa da elaboração orçamentária.

Uma vez implantada essa medida salutar — o que poderá ocorrer pela via do Conselho Nacional de Justiça —, será mais um encargo, dentre tantos outros que integram o cotidiano do juiz. Afinal, esta é a responsabilidade do Judiciário, a que decerto corresponderão a vocação e o compromisso a que a toga conclama.

Por Luis Felipe Salomão

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