Este artigo propõe a releitura de uma figura tributária quase esquecida, com potencial de substituir fontes de arrecadação esgarçadas, por abusivas, pois consumiram 36,42% do PIB em 2013, e obscuras, pois destinadas a orçamentos inacessíveis e de difícil controle difuso pela sociedade — a exemplo daqueles alimentados pela arrecadação de impostos e contribuições de intervenção no domínio econômico: a contribuição de melhoria.
O tema surge da constatação de que nosso sistema tributário demanda propostas voltadas a atenuar o círculo vicioso de pressão arrecadatória e sonegação que hoje caracteriza a relação fisco-contribuinte.
Essa visão conflituosa da relação tributária — em que, de um lado está o Leviatã poderoso, ávido por sorver a última gota de sangue dos contribuintes, e de outro, o contribuinte com um quase-dever de evitar ser tributado — vem sendo superada por uma abordagem mais colaborativa[1], ainda longe do ideal, mas que dá sinais de evolução, a exemplo da criação de súmulas vinculantes no CARF, soluções de consulta vinculadas na Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), maior preocupação com orientações substanciais nas intimações fiscais e proliferação de tribunais administrativos fiscais.
Nessa nova lógica[2], a contribuição de melhoria se destaca por ser capaz de instaurar um diálogo produtivo — e prévio ao lançamento — entre fisco e contribuinte, superando o paradigma do lançamento por homologação (aquele em que se atribui ao contribuinte o esforço hercúleo de interpretar e aplicar milhares de regras esparsas e muitas vezes incompreensíveis), pois a lei manda que o ente tributante submeta previamente, ao contribuinte, o orçamento da obra e os critérios de mensuração do crédito tributário. Esta peculiaridade, antes criticada, gera ainda, de modo oblíquo — mas igualmente desejado — a sujeição da administração pública à luz desinfetante da transparência e do controle do orçamento público.
Vocacionada a viabilizar financeiramente o desenvolvimento da infraestrutura pública e prevista nos artigos 145, III da Constituição Federal e artigos 81 e 82 do Código Tributário Nacional, a contribuição de melhoria pode ser cobrada por qualquer dos entes federativos em decorrência de obras públicas que gerem valorização imobiliária, e deverá observar, em linhas gerais, os seguintes requisitos.
Critério Material
Ao delinear o critério material das contribuições de melhoria no artigo 81 do CTN, o legislador compôs o núcleo do tributo por dois verbos, seguidos de seus respectivos complementos e conectados por uma relação de causalidade: realizar obra pública da qual decorra valorização imobiliária.
O primeiro deles (obra pública), de verificação lógica e cronologicamente anterior, é definido no rol do artigo 2º do Decreto-Lei 195/67, que amplia o conceito administrativista[3] de obra pública para englobar a infraestrutura pública.
Ainda que se reconheça o caráter taxativo do rol de atividades estatais ensejadoras da instituição de uma contribuição de melhoria, entendemos que a conceituação “aberta” empregada pelo legislador (como, por exemplo, “outros melhoramentos de praças e vias públicas” ou “serviços e obras de comunicação em geral”) reclama uma interpretação capaz de adequar a hipótese de incidência da norma, desenhada em 1967, à dinâmica do mundo dos fatos.
Quanto à valorização imobiliária, apesar de a Constituição não haver repetido o texto das Cartas anteriores[4], que faziam expressa menção a essa vantagem percebida pelo proprietário do imóvel em decorrência da obra pública — segundo Paulo Ayres Barreto[5], essa supressão seria um “mero aprimoramento redacional” —, fazemos coro à doutrina que afirma ser a mais-valia imobiliária, ao lado da obra pública que lhe dá causa, (i) pressuposto de instituição do tributo e (ii) limite quantitativo individual de sua base de cálculo.
A questão já foi examinada pelo STJ, que acrescentou — dando mais segurança aos jurisdicionados — a impossibilidade de se cobrar o tributo sobre valorização presumida (AgRg no Ag 1.159.433/RS, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe 05.11.2010; AgRg no Ag 1.190.553/RS, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJe 26.04.2011). Ou seja, além de compor a hipótese de incidência, a valorização deve ser efetiva e provada pelo poder público.
Cálculo do tributo
É clássica a noção, cunhada por Alfredo Becker, Rui Nogueira e Geraldo Ataliba, dentre outros, de que a submissão de um tributo ao teste de constitucionalidade começa na constatação da perfeita e absoluta coerência entre a base de cálculo escolhida pelo legislador e o critério material da hipótese de incidência. Em termos práticos, por exemplo, a lei que instituir uma taxa sob o pretexto de fiscalizar atividades minerárias, deverá escolher como base de cálculo o custo dessa atividade de fiscalização, não o valor das operações de venda de recursos minerais, pois esta é base tributável própria dos impostos — o exemplo é verdadeiro e provém da edição das Leis estaduais 19.976/11 e 7.591/11, responsáveis por instituir a Taxa de Fiscalização de Recursos Minerais (TFRM) nos estados de Minas Gerais e do Pará.
Assim, para que a base de cálculo da contribuição de melhoria traduza numericamente seu fato gerador é imprescindível que leve em consideração (i) o valor global da obra, como limite geral à arrecadação, e (ii) a proporção do especial benefício (valorização imobiliária) desencadeado pela obra a cada contribuinte, como limite individual, conclusão harmônica com a previsão dos artigos 81 e 82 do CTN.
i. Valor global da obra como limite geral da base de cálculo
Apesar de posicionamento diverso na doutrina[6], entendemos que os dispositivos mencionados foram recepcionados pela Constituição e estão em pleno vigor, como definido pelo STJ (REsp 671.560/RS).
Dessa forma, o comando do CTN não pode ser ignorado na instituição dessa contribuição, sob pena de desvirtuar a natureza jurídica do tributo. Se a obra pública é o fator provocante do benefício (valorização) percebido pelo proprietário do imóvel, desconsiderá-la para fins de fixação da base de cálculo, por mais nobres que sejam as razões[7], é omitir-se quanto à necessária coerência entre o aspecto material e a base de cálculo do tributo.
ii. Valorização imobiliária como limite individual
A base de cálculo da contribuição de melhoria deverá observar, ainda, a valorização imobiliária individualmente experimentada e que, como já dissemos, deve ser provada pelo poder público (AgRg no AgRg no REsp 1018797/RS e AgRg no REsp 1311249/RS). Ainda que a reunião de todos os contribuintes beneficiados seja insuficiente para cobrir os custos da obra, é defeso ao poder público pretender submeter o proprietário do imóvel a valor que supere a valorização individual, divisando aqui a fronteira insuperável do efeito confiscatório do tributo.
Sob outro ângulo, a obra que provocar desvalorização, não poderá embasar a cobrança de contribuição de melhoria. Se “melhoria” alguma houve, seria absurdo impor ao proprietário de imóvel a obrigação de pagar tributo para custear atuação estatal que a ele não trouxe nenhum benefício especial ou, pior, acarretou prejuízo.
Requisitos mínimos
A realização dos elementos componentes da regra-matriz de incidência tributária das contribuições de melhoria não é suficiente para sua válida instituição.
Em seu caput o artigo 82 do CTN abriga o primeiro pressuposto à cobrança das contribuições de melhoria: a existência de lei prévia e específica. A exigência não guarda novidade em si. A bem da verdade, a legalidade, especificidade e antecipação prescritas no dispositivo nada mais são que repetições dos princípios da legalidade estrita e da anterioridade, estampados nos artigos 150, I e III, “a”, da Constituição e 97 e 105, do CTN.
A nota diferencial do processo de criação das contribuições de melhoria reside nos incisos do artigo 82 do CTN, que impõem ao ente tributante a obrigação de publicar editais com informações sobre a obra e o tributo de cobrança pretendida previamente ao lançamento, permitindo sua impugnação pelo contribuinte.
À primeira vista, a leitura que se faz de tais requisitos é de revelarem verdadeiro entrave à cobrança da contribuição de melhoria, em especial no que respeita a impugnação, que poderia representar um obstáculo à sua instituição, caso haja abuso pelos contribuintes do instrumento de contraditório, transfigurando-o em via para retardar o pagamento do tributo.
Como adiantado, não é esse, todavia, o entendimento ao qual nos filiamos. A possibilidade de o contribuinte contraditar o memorial descritivo do projeto, o orçamento do custo da obra, a identificação dos custos que serão financiados pela contribuição, a delimitação da zona beneficiada e a determinação do fator de absorção do benefício, se traduz como medida garantidora não apenas da transparência fiscal, como também da efetiva observância aos limites global e individual da exação cobrada: um efetivo e louvável exercício de controle de constitucionalidade.
Ademais, a transparência fiscal que propõe compele a administração pública a cumprir os princípios inscritos no artigo 37 da Constituição Federal: conferir publicidade à sua atuação e realizar obras públicas de maneira eficiente, impedindo desvios de interesse e finalidade e funcionando como instrumento da relação de cooperação entre Estado e contribuinte.
[1] O Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getúlio Vargas, coordenado pelo Professor Eurico Marcos Diniz de Santi, tem publicado relevantes artigos científicos sobre o assunto, inclusive neste Conjur. Também sobre o assunto, consultar o excelente artigo de Mariana Pimentel Fischer Pacheco, Receita Federal do Brasil: Desafios para a realização de um projeto de cooperação fiscal aprendendo com a experiência nacional e internacional. Fiscosoft, set/2011. Disponível em: http://www.fiscosoft.com.br/. Acesso em 17/01/2014
[2] Esperamos que questões crônicas sejam superadas, dentre as quais, sem exauri-las: redução da complexidade das normas tributárias, racionalização dos deveres instrumentais, equacionamento da chamada guerra fiscal, reinauguração das não-cumulatividades (ICMS, IPI, PIS, Cofins), com vistas a efetivamente impedir a sobreposição de incidências, e substituição das matrizes tributárias que oneram investimentos (energia, bens de capital, emprego), com destaque especial para a iniciativa tímida e setorizada, mas bem-sucedida, da contribuição previdenciária sobre a receita bruta (Lei nº 12.546/11).
[3] “Obra pública é a construção, reparação, edificação ou ampliação de um bem imóvel pertencente ou incorporado ao domínio público. As obras públicas podem ser executadas diretamente pelo Poder Público ou por suas entidades auxiliares […]é o que resulta do art. 6º, I, VII e VIII da Lei 8.666, de 21.6.93.” (MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 28ª Edição, p. 703).
[4] Constituição Federal de 1934: “Art 124. Provada a valorização do imóvel por motivo de obras públicas, a administração, que as tiver efetuado, poderá cobrar dos beneficiados contribuição de melhoria”.
Constituição Federal de 1946: “Art 30. Compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar: I – contribuição de melhoria, quando se verificar valorização do imóvel, em conseqüência de obras públicas”.
Constituição Federal de 1967/1969: “Art. 18. Além dos impostos previstos nesta Constituição, compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir: II – contribuição de melhoria, arrecadada dos proprietários de imóveis beneficiados por obras públicas, que terá como limite total a despesa realizada. (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 23, de 1983).”
[5] Contribuições: regime jurídico, destinação e controle, p. 68.
[6] Sobre o tema, confira-se ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros Editores, 6ª Edição, p. 173
[7] Como aquelas defendidas pelo saudoso Geraldo Ataliba: razões (i) financeiras: necessidade de recurso para enfrentar outras ou a própria obra; (ii) políticas: devolver à coletividade o benefício verificado pelo proprietário; (iii) de equidade: obras de utilidade geral devem ser custeadas por todos, as de utilidade restrita devem ser por aqueles que extraem algum benefício; (iv) de ética: banir o enriquecimento sem causa. Hipótese de incidência tributária, p. 176.
Por Breno Ferreira Martins Vasconcelos