A abertura de uma investigação envolvendo o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Felix Fischer, pelo Conselho Nacional de Justiça trouxe visibilidade a uma questão que tem incomodado juízes de todas as instâncias: a abertura de processos com base em denúncias anônimas. A representação contra Fischer foi feita “por um cidadão que pediu para ter sua identidade preservada”, segundo o corregedor nacional de Justiça interino Gilberto Valente Martins, que determinou a abertura da investigação. No entanto, fontes dão conta de que tenha sido o próprio corregedor nacional de Justiça, Francisco Falcão, o autor da denúncia.
Com isso, deverá ter início apuração sobre viagens ao exterior feitas por ministros do STJ e do Conselho da Justiça Federal a pedido de Fischer, presidente de ambos os órgãos. O ministro já respondeu, em nota no site do STJ, que desde setembro de 2012 ocorreram 14 missões oficiais no exterior e que nunca houve pagamento de diárias a esposas de ministros. “Todos os afastamentos de ministros do STJ em razão de viagem ao exterior são aprovados pelo Conselho de Administração, composto pelos 11 ministros mais antigos da corte”, afirma Fischer.
A resposta, no entanto, não apaga as manchetes dos jornais que noticiaram as acusações contra o presidente da corte. O presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Nino Toldo, explica que é por isso que a denúncia anônima, por si só, não deveria servir para a abertura de processos administrativos. “Assim, bastaria a quem quer prejudicar a imagem de um magistrado fazer uma denúncia qualquer.”
No caso de Fischer, inclusive, segundo Toldo, não havia nenhuma urgência para que o procedimento fosse aberto, e divulgado, pelo corregedor interino. Uma vez que se tratava do presidente do STJ, Martins poderia aguardar a volta do corregedor titular Francisco Falcão “e tomar cuidado redobrado”, diz o presidente da Ajufe. “O CNJ deveria fazer uma triagem das denúncias e ter discrição em um assunto tão delicado, analisando a consistência da acusação”. Abrir a investigação e noticiá-la no site oficial do CNJ, diz Nino Toldo, é um achincalhamento do Judiciário. “Colocou-se em dúvida a conduta do STJ e do CJF, órgãos fiscalizados pelo Tribunal de Constas da União e pelo próprio CNJ.”
As denúncias anônimas são uma preocupação constante também da Associação dos Magistrados Brasileiros. Segundo o presidente da entidade, João Ricardo Costa, está havendo uma inversão na concepção dos processos em relação ao Poder Judiciário. “A magistratura, em qualquer democracia, deve ter um leque de proteções, as chamadas prerrogativas, para exercer sua função de forma isenta”, afirma. Atualmente, diversos juízes respondem a processos administrativos criados de forma imediata a partir de uma denúncia anônima — e a única condição de trancar esse processo é por Mandado de Segurança, no Supremo Tribunal Federal.
A postura do CNJ é temerária, ao dar valor a esse tipo de procedimento sem seguir, segundo Costa, os procedimentos adotados na Justiça — que exige outros elementos probatórios para dar início a um inquérito. “O cidadão que não se identifica ao fazer uma denúncia pode estar, buscando atender às piores intenções, as mais antirrepublicanas, ao prejudicar um juiz.”
A Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho faz coro às reclamações. “Não se pode admitir que, nas esferas formais de apuração disciplinar, as denúncias anônimas sejam a regra”, diz o presidente da entidade, Paulo Luiz Schmidt. Ele diz que só caberia abrir investigações e processos com base em indícios ou evidências que surjam a partir das denúncias anônimas, “jamais com base nas próprias denúncias”. Questionado sobre se as denúncias anônimas ao CNJ têm atrapalhado a vida dos juízes, Schmidt responde: “de culpados e inocentes”. O que ocorre comumente, diz ele, é que pessoas interessadas em prejudicar desafetos em geral valem-se do anonimato para criar constrangimentos.
No caso do ministro Felix Fischer, o fato de as denúncias serem anônimas aumenta as suspeitas de que elas servem a motivos políticos. A questão das viagens é um dos assuntos preferidos do corregedor nacional de Justiça, Francisco Falcão, com jornalistas. Diversos profissionais da imprensa já foram abordados pelo ministro, que “vendia a pauta”, como se diz no jargão jornalístico. Mas nenhuma linha foi publicada. Curiosamente, as denúncias anônimas no CNJ seguem as mesmas direções que ele apontava aos jornalistas. Falcão é notório desafeto de Fischer e tem buscado evitar que o atual presidente do STJ ocupe o posto de corregedor nacional de Justiça no ano que vem.
À ConJur, Falcão negou que a denúncia tenha partido dele. “Estou viajando e não tenho nada com essa história. Quem está à frente da apuração é o conselheiro Gilberto Valente Martins. Além disso, como eu poderia fazer uma denúncia contra o próprio tribunal onde atuo?”, rebateu Falcão.
O conselheiro Gilberto Martins disse não saber de onde veio a denúncia, mas acha difícil que tenha partido do ministro Falcão. “Ele poderia ter iniciado a apuração de ofício. Não era necessária a denúncia porque as informações são públicas”, disse. Ele conta ter recebido o processo da Presidência do CNJ acompanhado de despacho assinado pelo presidente, ministro Joaquim Barbosa. “Não sei de onde veio, nem me interessa saber.”
Segundo ele, o CNJ obedece à legislação ao receber denúncias anônimas. “A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção prevê que os governos instituam meios de proteger a quem relata casos de corrupção. A Controladoria-Geral da União adota o mesmo procedimento”, explica. E garante que toda investigação só começa quando fundamentada com documentos e evidências consistentes. Quanto a um possível prejuízo à imagem do Judiciário no caso, ele afirma ter sido a imprensa quem atribuiu à investigação um tom de “punição disciplinar”. “Não é uma sindicância, é apenas uma apuração administrativa”, diz.
A notícia de que ministros estavam sendo enviados em viagens internacionais já é de conhecimento da Corregedoria Nacional de Justiça desde meados do ano passado. À época, outros ministros da corte também se mostraram desconfiados com o número de viagens. “A gente vê que há certo rodízio entre um grupo de colegas, o que leva ao entendimento de que não é exatamente representação institucional”, disse um deles.
Esse tipo de “divergência interna” costuma acontecer no STJ na época em que são abertas vagas. No caso mais recente, o das viagens, a disputa era pela vaga do agora aposentado ministro Castro Meira, destinada a desembargadores federais. A disputa estava entre Néfi Cordeiro (TRF-4), Luiz Alberto Gurgel de Faria (TRF-5) e Ítalo Fioravante Mendes (TRF-1). Néfi era a indicação do ministro Fischer, e Gurgel de Faria, de Francisco Falcão. Na quinta-feira (3/4), Néfi Cordeiro tomou posse como o mais novo ministro do STJ.
Leia a nota publicada pelo ministro Felix Fischer:
Tendo em vista a divulgação no sítio do Conselho Nacional de Justiça – CNJ de notícia a respeito da abertura de investigação sobre viagens de ministros do Superior Tribunal de Justiça – STJ e esposas ao exterior, cumpre-me, em respeito ao dever de transparência que deve reger as ações dos gestores da administração pública e ao dever de probidade, que implica um compromisso com a verdade, prestar as seguintes informações:
1 – Desde setembro de 2012, ocorreram 14 missões oficiais no exterior (incluída a participação na XVII Cúpula Judicial Ibero-Americana, evento ainda em curso), sendo que, em apenas 3 delas, os ministros foram acompanhados por suas esposas, em razão da existência de eventos cerimoniais cujo protocolo recomendava a participação de cônjuge.
2 – Nunca houve pagamento de diárias a esposas de ministros.
3 – O valor das diárias internacionais pagas aos ministros do STJ segue o disposto na Resolução 73/2009 do CNJ, de valor idêntico ao pago aos conselheiros do CNJ.
4 – Todos os afastamentos de ministros do STJ em razão de viagem ao exterior são aprovados pelo Conselho de Administração, composto pelos 11 ministros mais antigos da Corte.
5 – A classe das passagens internacionais emitidas para os ministros do STJ segue os mesmos parâmetros utilizados pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Poder Executivo (art. 27 do Decreto n. 71.733, com a redação que lhe deu o Decreto n. 3.643/2000).
6 – No âmbito do Conselho da Justiça Federal, não houve nenhuma viagem internacional realizada pelo Presidente ou por outro ministro em seu nome.
7 – Todas as viagens ao exterior feitas por ministros representando o STJ destinam-se a garantir a participação da Corte em eventos revestidos de alta importância institucional para o Judiciário brasileiro, como a Cúpula Judicial da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos e a União Europeia, a Comissão Ibero-Americana de Ética, a reunião de apresentação do tratado de direito judicial e o Congresso Internacional de Altas Jurisdições Administrativas.
8 – O Superior Tribunal de Justiça está sempre aberto a prestar esclarecimentos à sociedade e aos órgãos de controle, valendo ressaltar que todas as viagens são analisadas por seu órgão de controle interno e submetidas à apreciação do Tribunal de Contas da União e que as contas do STJ até 2012 já foram aprovadas por aquela Corte de Contas.
Por fim, destaco que as informações pertinentes serão prestadas com a maior brevidade possível ao CNJ, com a certeza de que serão suficientes para determinar o pronto arquivamento do procedimento, ante a inexistência de qualquer irregularidade.