Autor: Pedro Paulo Medeiros (*)
Em artigo publicado recentemente pela imprensa, o eminente ministro Edson Fachin, sugere aprovação do projeto de lei do Senado 658, no qual se modifica a legislação brasileira para criarem-se novos marcos interruptivos e suspensivos do fluxo do prazo prescricional.
O tema não é novo, desde a década de 70, enquanto ainda vivíamos o Regime Militar, com todas a suas limitações ao exercício de direitos fundamentais, já se buscava aniquilar ou reduzir a extensão do instituto da prescrição a pretexto de combater a criminalidade e a impunidade — àquele tempo, o crime eleito como o da moda era “ser contra o governo militar”.
Em 1977, a lei 6.416, sancionada pelo general Ernesto Geisel, excluiu o tempo decorrido entre o fato e a denúncia — ou queixa — para o reconhecimento da prescrição pela pena concretizada. Aquela ideia tinha inspiração mais antiga; o artigo 65 do Código Criminal do Império (1830) declarava: “As penas impostas aos réus não prescreverão em tempo algum”.
Em tempos mais recentes, precisamente 2007 (Lei 11.596) e 2010 (Lei 12.234), criaram-se novos marcos interruptivos, igualmente com o intuito de reduzir a criminalidade e a impunidade. Desde essa novel legislação, todas as vezes em que um recurso interposto pela defesa de algum acusado criminal fosse improvido (sem sucesso), mantendo-se a condenação, haveria interrupção na contagem da prescrição. Com isso, se conciliava o direito a não se exigir o cumprimento de qualquer pena imposta, enquanto não ocorresse seu trânsito em julgado (ressalvado o cabimento das prisões cautelares, sempre possível desde que demonstrada a necessidade), o que o Supremo Tribunal Federal acabara de reconhecer no emblemático HC 84.078, e o direito de o Estado perseguir e punir algum indivíduo que supostamente violara a lei penal.
Essas leis 11.596 e 12.234, contudo, extrapolaram os limites do que se pretendia obter com suas edições quando reeditaram o que afirmava a lei de 1977, impedindo que se computasse na prescrição retroativa o tempo decorrido entre o fato e o recebimento da denúncia ou queixa. Em português claro: estava sendo emitida uma carta branca para que o Estado não desse concretude à razoável duração do processo, pois não haveria mais qualquer pressa na conclusão das investigações, já que o prazo prescricional não fluiria. Se queríamos um processo rápido, visando impor o efeito preventivo geral do direito penal, prescrevemos o remédio errado.
Convém lembrar que a Lei 12.234 foi declarada constitucional pelo STF ao final de 2014 (HC 122.694), a despeito da opinião de vários acadêmicos e da própria OAB em sentido contrário.
Dessa forma, desde as leis 11.596 e 12.234, já existe no ordenamento o reconhecimento de que todas as vezes em que um acórdão mantiver a condenação criminal, haverá nova interrupção do prazo prescricional, e que a prescrição retroativa pela pena em concreto não poderá valer-se do prazo anterior ao recebimento da peça acusatória. Desnecessária a modificação pretendida pelo PLS 658/2015, portanto.
Em lugar de tentar agilizar a atuação da emperrada máquina do Estado, preferiu-se, em certa medida, compactuar com sua morosidade; ao invés de tratar as causas da impunidade (falta de investimento em educação, saúde, trabalho, na combalida estrutura policial que demanda melhores estruturas físicas, salariais e elevação na quantidade de policiais, em mais Juízes e Promotores etc.).
Ainda sobre o PLS 658/2015, quanto a se modificar o ato de interromper o fluxo de prescricional pelo oferecimento, ou invés de recebimento da peça acusatória, esse momento processual já foi objeto de longa discussão pelo Grupo de Trabalho Anticorrupção do Ministério da Justiça, que apresentou proposta no sentido de se manter como marco interruptivo o recebimento, e não o oferecimento, da Denúncia ou Queixa, pois não poderia ser o Ministério Público ou querelante o titular único da interrupção da prescrição, mas sim o Judiciário — cujos atos são sindicáveis e conhecidos por via de recursos previstos em lei — evitando-se interrupções baseadas em denúncias ou queixas abusivas, vazias, vindicativas ou ineptas. O Estado é um só (Polícia, MP e Judiciário); se há ineficiência ou inoperância, que se trate o Estado de forma uniforme, não tentando impor a um só ente a demora pela finalização dos processos.
Quanto à proposta de que a prescrição pela pena em concreto somente poderá ser aplicada após o trânsito em julgado para as duas partes, defesa e acusação, se mostra debalde a discussão exatamente em razão do que já reconhecido pelo STF no HC 84.078 e pelas leis 11.596 e 12.234: somente após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória é que se poderá executar a pena. E a prescrição não fluirá ininterruptamente, pois os acórdãos confirmatórios da condenação a interromperão.
Se a acusação não concordou com a pena aplicada, basta recorrer. Se não recorreu, nada há a questionar, sequer exigir o cumprimento de pena enquanto não há o trânsito em julgado. Assim, a justificativa para aprovação do PLS 658/2015 se mostra inaplicável ao cenário atual.
E finalmente, quanto à hipótese criada de não se poder computar a prescrição, caso tenha sido reconhecida uma nulidade, tal se mostra ainda mais absurda: como já dito alhures, o Estado é um só. Se o Estado age de forma ilegal, desrespeitando o devido processo legal, portanto criando nulidades, o ônus é seu, e não de quem é processado.
A nulidade nunca deveria ter ocorrido, pois é obrigação do Estado respeitar o Estado Democrático de Direito. E se ela ocorreu, deveria de ofício (espontaneamente) o Estado reconhece-la e anular o ato, renovando-o, desde que ainda haja interesse em fazê-lo (se ainda não ocorreu, por exemplo, alguma causa extintiva da punibilidade, ou se a sociedade sequer se lembra mais do ocorrido).
Mas, se não o faz de ofício, poderá ser provocado a fazê-lo. Nem todos têm conhecimento técnico para reconhecer a nulidade, portanto em algumas situações somente já em momento processual avançado é que se percebe a nulidade ocorrida, quando então é compreendida e arguida.
Se nem o Estado — que tem a obrigação de fazê-lo — percebeu seu próprio erro, como se pode exigir do acusado ou seu advogado que perceba tal nulidade logo no primeiro ato, sob pena de não poder arguir isso no futuro? Mais uma vez se quer terceirizar o risco do exercício do Poder Estatal.
As nulidades são a concretização do erro estatal. E como tal, devem e podem ser corrigidas a qualquer tempo. E quando reconhecidas, não podem impor ao acusado que simplesmente tenha como ignorado o período transcorrido enquanto vigia a nulidade posteriormente reconhecida. É como dizer: “— Acusado, o Estado errou, e você vai ter que reviver todos esses anos de martírio que é um processo penal, mesmo que a sociedade sequer se lembre do que ocorreu (portanto nem exige mais a punição) e mesmo que você já seja uma outra pessoa, já restabelecida e ressocializada (portanto, não há mais a necessidade de você se ressocializar com uma eventual pena a ser imposta).”
Aprovar-se o PLS 658/2015 é a inversão de tudo o que nos traz o estudo de política criminal e de direitos humanos, e com ofensa ao direito dos cidadãos presumidos inocentes, de serem julgados com prazo razoável como manda a Constituição e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos de que o Brasil é signatário.
O Poder Judiciário terá a oportunidade — seja em manifestações acadêmicas por seus integrantes, orientadoras do Poder Legislativo, seja se e quando provocado em sede de controle concentrado de constitucionalidade da remota lei que advier do PLS 658/2015 — de afastar esse exemplo acabado de injustiça, evitando aplaudir o discurso sensacionalista de que a lei penal é feita somente para punir o acusado de delinquir e não para proteger o cidadão contra os abusos do Estado.
Os direitos humanos existem exatamente para limitar a atuação do Estado. E é disso que tratam o processo e o direito penal, em especial a quadra da prescrição.
A irracional demora da investigação, denúncia, processo e sentenciamento não afeta apenas a sociedade, que se sente insegura, mas afeta todos seus integrantes, em sua dignidade humana.
Para condenar apenas, não precisaríamos de processo. Processo é garantia de liberdade.
Autor: Pedro Paulo Medeiros é advogado criminalista, presidente da Comissão de Direito Penal do Conselho Federal da OAB