Autor: Gerson Amauri Calgaro (*)
A questão do verbete da súmula 381, do STJ, vem sendo enfrentada pela doutrina pátria com críticas à sua elaboração e aplicação nas relações de consumo, como o são as estabelecidas entre as instituições bancárias e seus clientes/consumidores.
A seguir da publicação do verbete sumular, tivemos a oportunidade de elaborar manifestação contrária à sua redação. Na ocasião, demos destaque ao que chamamos de inconstitucionalidade do verbete e de sua ilegalidade.
Isto porque, entendemos à época, “o limite hermenêutico de reconhecimento e declaração da nulidade da abusividade das cláusulas contratuais tem um campo de aplicação muito mais estreito do que faz presumir a redação da súmula 381”[1].
A tese passava basicamente pelos argumentos que podem ser assim sintetizados:
- No âmbito constitucional, os artigos 1º, inciso III, que fixa como valor máximo da ordem jurídica a dignidade da pessoa humana, o artigo 5º, caput e inciso XXXII e artigo 170, V, todos da Constituição Federal, que tornam, inexoravelmente, a proteção e defesa do consumidor matéria de índole constitucional;
- No âmbito infraconstitucional as chamadas nulidades de caráter absoluto que são reconhecidas como questões de ordem púbica e autorizam ao juiz, independente de provocação, e em qualquer tempo, declará-las ex offício.
Com estes fundamentos, e colhendo na jurisprudência do STJ os precedentes que levaram a Corte decidir pela elaboração do texto sumular, identificamos uma deriva da linha argumentativa que surgiu como irresignação pela não demonstração cabal da abusividade da pactuação dos juros remuneratórios, sem a necessária submissão da tese da abusividade ao crivo do contraditório, o que levava, muitas vezes, à decisão surpresa, írrita ao sistema constitucional e legal do pleno exercício do direito de defesa e do contraditório. E evoluiu para uma tese de não aplicação do sistema protetivo ao consumidor, pela incidência das normas constitucionais e legais de tutela à vulnerabilidade, quando os contratos postos sob litígio versassem sobre relação entre instituições bancárias e seus clientes.
Em data mais recente, Nelson Nery Jr., brindou-nos com mais um trabalho doutrinário de fôlego, corroborando tese já defendida em seus escritos anteriores, demonstrando a necessidade de alteração da redação do texto sumular, para adequá-lo ao sistema protetivo constitucional e legal de tutela ao consumidor vulnerável.[2]
O texto do professor Nelson Nery Júnior deixa transparecer com claridade solar as premissas teóricas que autorizam aos juízes e tribunais, de ofício, à reconhecerem da abusividade de cláusulas contratuais em qualquer relação de consumo e extirpá-las do sistema.
A linha argumentativa segue basicamente a seguinte ordem: as cláusulas abusivas nos contratos de consumo são nulas pleno iure; A atuação do efeito translativo dos recursos implica não ofensa aos princípios dispositivo, da congruência e devolutivo; a incidência do comando previsto no § 3º, do artigo 267, e § 4º, do artigo 301, ambos do CPC, nos graus ordinários da jurisdição, impondo ao juiz ou tribunal o poder-dever da declaração da nulidade das cláusulas abusivas; A impossibilidade lógico-sistemática da incidência e aplicação ab ovo da normativa protetiva nas esferas extraordinários, quando do juízo de cassação; A possibilidade sistemática da incidência e aplicação ab ovo nas esferas extraordinários da normativa protetiva, quando do juízo de revisão.
Como fator a problematizar o tema, não se pode deixar de fazer alusão ao novo sistema processual que se avizinha, o qual impõe aos juízes e tribunais a “proibição das decisões surpresas”, na feliz construção de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, ao comentarem o artigo 10, da Lei 13.105/2015.[3]
O tema merece destaque em face da afetação para a 2º Seção do STJ, do REsp 1465832, por decisão monocrática do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, de recurso onde “discute-se a possibilidade de o juiz ou tribunal reconhecer de ofício a abusividade de cláusulas contratuais em negócios jurídicos de consumo (art. 51 do CDC)”, com base na seguinte tese jurídica: “Possibilidade de o juiz ou o Tribunal reconhecer de ofício a abusividade de cláusulas contratuais”. [4]
Por sugestão do relator será submetida a votação a alteração da súmula 381, a qual passaria a adotar a seguinte redação: “Na declaração de nulidade de cláusula abusiva, prevista no art. 51 do CDC, deverão ser respeitados o contraditório e a ampla defesa, não podendo ser reconhecida de ofício em segundo grau de jurisdição”.
A proposta de redação pode cometer o mesmo equívoco da que pretende substituir, ao limitar sua incidência interpretativa aos comandos legais estabelecidos no artigo 51, do CDC.
Explica-se. O Código Civil prevê, em seu artigo 2.035, parágrafo único, maior campo de incidência das normas protetivas aos vulneráveis nas relações contratuais, sejam elas de consumo ou não[5].
Ao se manter a redação como proposta, estar-se-ia impondo dúvida plausível sobre a possibilidade ou não de se reconhecer ex officio de cláusulas contratuais fora da tipologia do citado artigo 51, do CDC.
Para que a súmula substitutiva atinja a sua ratio, de modo a cumprir com o desiderato de tornar a justiça previsível, como defende o projetista do novo Código de Processo Civil, melhor fincar os seus termos de modo a alcançar os preceitos de ordem pública que possam atuar dentro do ordenamento, como um todo, e não somente para a casuística das cláusulas abusivas das relações de consumo.
Esposa-se, assim, sem ressalvas, a proposta de redação sugerida por Nelson Nery Jr. para o verbete da súmula da jurisprudência.
“Somente será válida a decisão que, ex officio, reconhecer a abusividade de cláusula contratual, se tiver sido dada, previamente, oportunidade para as partes se manifestarem a respeito”.
[1] CALGARO, Gerson Amauri . Sobre a sistemática dos princípios e a proteção e defesa do consumidor: a Súmula 381 do Superior Tribunal de Justiça. Revista de Direito Privado (São Paulo), v. 47, p. 477-504, 2011.
[2] NERY JR., Nelson. Considerações sobre o verbete “STJ 381” da Súmula da Jurisprudência predominante no STJ. Revista de Direito Privado (São Paulo), v. 60, p. 237-254, 2014.
[3] Art. 10. em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015.)
[4] Matéria publicada na Revista Consultor Jurídico e também disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201401635625>. Acesos em 23 set 2015.
[5] Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
Autor: Gerson Amauri Calgaro é doutor em Direito pela PUC-SP, advogado e professor.