Autor: José Barroso Filho (*)
Tramitam no Judiciário brasileiro cerca de 100 milhões de processos. Essa explosão de demandas judiciais caracterizou-se como afirmação de uma cidadania ativa.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, enquanto o número de processos ajuizados multiplicou-se em mais de 80 vezes, o número de juízes chegou apenas a quadruplicar (4,9 mil Juízes em 1988 e 16,4 mil em 2013).
Sem dúvida que a alta litigiosidade conjugada com a não utilização ou pouca utilização de meios alternativos de solução de litígios (conciliação processual e pré-processual, mediação e arbitragem) o que ocasiona uma demora na prestação jurisdicional o que leva a não solução do caso, em tempo razoável…
Não por falha do Poder Judiciário, que já atua no seu limite; não por que o cidadão não deva buscar os seus direitos mas, porque este modelo de judicialização imediata dos conflitos chegou a sua exaustão.
Acesso à Justiça não é, necessariamente, acesso ao Judiciário.
O que se busca é a solução para os conflitos que pode se construída pelas partes envolvidas ou imposta por uma decisão judicial.
Mesmo o nosso Judiciário sendo um dos mais produtivos do mundo, por ano, são prolatadas cerca de 27 milhões de sentenças conjugadas com outras milhões e milhões de decisões, o cidadão sofre com a demora na solução de seus processos.
Que processos são esses:
- 51% dos processos em andamento são demandas do Poder Público;
- Cerca de 30 milhões de ações são decorrentes de relações de consumo…
Com clara definição de quem são os grandes demandados.
A hiperjudicialização leva ao emperramento do sistema, fazendo com o que o acesso ao Judiciário não seja, necessariamente, acesso à Justiça.
Precisamos de uma mudança cultural, para fugirmos desse caótico costume do litígio, que nos conduza à valorização do diálogo e das soluções autocompositivas, de preferência, sem a necessidade de ações judiciais.
Levando em consideração que a razão da existência e condição de sobrevivência das instituições é a sua contribuição para o desenvolvimento social manifesto na eficiente prestação de serviços e fornecimento de produtos.
Se conflitos existem em face da diversidade de opiniões, opções e percepções próprias da natureza humana, há de se admitir que muitos destes conflitos surgem da relação das instituições públicas ou privadas com os usuários (serviços públicos) e consumidores (serviços e produtos privados).
O cidadão (usuário de serviço público ou consumidor) deseja ver o seu caso resolvido, o Estado precisa que os conflitos sejam pacificados.
O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado: deve ser aceito, até porque é importante para o desenvolvimento e amadurecimento democrático das relações sociais.
Mas, não podemos ficar “presos” ao conflito. A perpetuação da divergência leva a desconfiança, ao descrédito nas relações e no diálogo como meio para construção de alternativas, faz surgir o radicalismo que pode descambar em violências, como o não ouvir, o não respeitar ou o exercício arbitrário das próprias razões.
Há um pesado custo pela não resolução dos conflitos: o emperramento da cidadania.
Se muito das divergências surgem do relacionamento das instituições com os cidadãos, cabe às próprias instituições resgatando a sua própria razão de existir, criar um canal de entendimento e solução, ou seja, promover uma gestão ativa e consequente destes conflitos.
Nesse sentido, surge a ouvidoria como um canal de comunicação direto entre o cidadão e as organizações.
A palavra ouvidor surgiu a partir de ombudsman, expressão de origem nórdica, a qual resulta da junção da palavra ombud, que significa “representante”, “procurador”, com a palavra man “homem”.
A palavra em sua forma original foi adotada em vários países, assumindo denominação própria em outros países de origem Hispânica, Defensor Del Pueblo, França, Médateur e Portugal, Provedor de Justiça.
Ouvidor é a denominação predominante no setor público e Ombudsman, predominante no setor privado.
A ouvidoria no Brasil foi inspirada no modelo de ombudsman da Suécia, criado há mais de 200 anos, e se fortaleceu com a Constituição de 1988, que vivamente incrementou níveis de participação democrática do cidadão/consumidor.
Atuando como mediador, o ouvidor valoriza as pessoas, facilita a comunicação, possibilitando um diálogo pacífico ensejando que as próprias partes encontrem uma solução satisfatória para o conflito.
Nesse diapasão, a ouvidoria comprometida com a transparência e ética estabelece uma ponte entre as instituições e o cidadão/consumidor visando a eficiência do serviço — situação que agrada ao usuário e só pode ser prestada por uma instituição comprometida e aparelhada para esta destinação.
A ouvidoria assim deve ter um duplo “olhar” visando a garantia dos direitos do usuário e velar pela funcionalidade da instituição de modo a cumprir seus objetivos.
Assim, a ouvidoria tem a finalidade de mediar as relações entre as pessoas e as organizações. Tem por propósito conhecer o grau de satisfação do usuário, buscar soluções para as questões levantadas, oferecer informações gerenciais e sugestões aos dirigentes da empresa ou do órgão, visando o aprimoramento dos seus produtos ou dos serviços prestados, contribuindo para a melhoria dos processos administrativos e das relações interpessoais com seus públicos, interno e externo.
No âmbito interno, o ouvidor é um mediador de conflitos, defensor das relações éticas e transparentes, que busca soluções junto às áreas da organização, sensibilizando os dirigentes e recomendando mudanças em processos de melhorias contínuas, influenciando os gestores para que a organização tome a decisão mais correta e de acordo com os direitos dos cidadãos.
São funções complementares pois, vale ressaltar, instituições aparelhadas e comprometidas prestam serviços adequados e ocasionam a satisfação do usuário, comprovando-se a maturidade e funcionalidade do sistema que, mesmo em controvérsias decorrentes desta relação, estas tenham resolução por meios pacíficos e autocompositivos, reservando-se a discussão judicial como exceção e não, regra.
Com total pertinência, o professor Edson Vismona, presidente da Associação Brasileira de Ouvidores/Ombudsman (ABO), aponta que é importante que o ouvidor detenha alguns atributos básicos, dentre os quais:
a) Ética;
b) Imparcialidade;
c) Confiabilidade;
d) Autonomia e
e) Atitudes propositivas.
Nesse sentido, a ouvidoria é um valioso instrumento na solução dos conflitos vez que esses institutos além de instrumentos voltados para o tratamento consensual dos conflitos, fortalecem a cultura da paz, do diálogo e da busca pela cidadania, já que analisam o problema, possibilitando uma conversa entre as partes e, consequentemente, a administração das controvérsias.
Valendo-se de técnicas de mediação e servindo como poderoso instrumento estratégico, as ouvidorias procuram estabelecer um canal ágil e direto de comunicação entre as pessoas, o cliente e a empresa, o cidadão e o órgão público, o trabalhador e o seu sindicato, o associado e sua entidade, o profissional e o seu conselho, o usuário e o concessionário.
Sumamente importante, o ouvidor deve ter independência e trazer consigo a necessária experiência vivencial e institucional para perceber se a questão posta é pontual, conjuntural ou estrutural, bem como a sensibilidade para encaminhar a melhor solução que pode exigir esforços institucionais ou mesmo interinstitucionais.
Desenvolvendo a cultura do entendimento, as ouvidorias centram esforços na eficiência e qualidade dos serviços prestados reafirmando a missão primeira das instituições.
Desta forma, as ouvidorias objetivam abandonar a cultura do litígio, dando oportunidade à cultura do diálogo, condição fundamental para a solução dos conflitos ocorridos na relação dos cidadãos com as instituições sejam elas públicas ou privadas, de modo a incentivar o entendimento, a construção de soluções por parte dos envolvidos no conflito sedimentando a paz e a cidadania, condições essências para o desenvolvimento de uma sociedade.
Algumas necessárias palavras sobre compliance, auditoria interna e sua necessária complementariedade com a ouvidoria.
Compliance
Vem do verbo em inglês “to comply” que significa “cumprir, executar, satisfazer, realizar o que lhe foi proposto” ou seja, compliance é o dever de cumprir, estar em conformidade e fazer cumprir regulamentos internos e externos impostos às atividades da instituição.
O que significa “Ser Compliance” e “Estar em Compliance”
“Ser Compliance” é conhecer as normas da organização, seguir os procedimentos recomendados, agir em conformidade e sentir quanto é fundamental a ética e a idoneidade em todas as nossas atitudes.
“Estar em Compliance” é, acima de tudo, uma obrigação individual de cada colaborador dentro da instituição.
Na visão de um órgão regulador, o propósito da área de compliance é assistir os gestores no gerenciamento do risco de compliance, que pode ser definido como o risco de sanções legais ou regulamentares, perdas financeiras ou mesmo perdas reputacionais decorrentes da falta de cumprimento de disposições legais, regulamentares, códigos de conduta etc.
No entanto, compliance vai além das barreiras legais e regulamentares, incorporando princípios de integridade e conduta ética.
Deve-se ter em mente que, mesmo que nenhuma lei ou regulamento seja descumprido, ações que tragam impactos negativos para os cidadãos, acionistas, clientes, empregados etc podem gerar risco reputacional e publicidade adversa, colocando em risco a continuidade de qualquer atividade.
O compliance deve começar pelo “topo” da organização. A sua efetividade está diretamente relacionada à importância que é conferida aos padrões de honestidade e integridade e às atitudes dos executivos que devem “liderar pelo exemplo”.
Para qualquer instituição, confiança é um diferencial de mercado.
Em geral, as leis tentam estabelecer controles e maior transparência, mas estar em conformidade apenas com as leis não garante um ambiente totalmente em compliance.
É preciso que todos os colaboradores trabalhem com ética e idoneidade em todas as suas atividades e que a alta administração apoie a disseminação da cultura de compliance…
Neste processo de sustentabilidade institucional, vale trazer à baila a função da auditoria interna, vital no processo de governança corporativa, vez que é uma atividade independente, de avaliação objetiva e de consultoria, destinada a acrescentar valor e melhorar as operações de uma organização.
A Auditoria Interna assiste à Organização na consecução de seus objetivos, por intermédio de abordagem sistemática e disciplinada, na avaliação da eficácia da gestão de risco, do controle e dos processos de governança.
Assim enquanto a auditoria Interna efetua seus trabalhos de forma aleatória e temporal, por meio de amostragens para certificar-se do cumprimento das normas e processos instituídos pela alta administração.
Compliance executa tais atividades de forma rotineira e permanente, monitorando-as para assegurar, de maneira sistêmica e tempestiva, que as diversas unidades da instituição estejam respeitando as regras aplicáveis a cada negócio, ou seja, cumprindo as normas e os processos internos para prevenção e controle dos riscos envolvidos em cada atividade.
Compliance deve ser tão independente quanto a auditoria interna, reportando-se à alta administração para informa-la de eventos que representam risco de compliance que possa afetar a Instituição.
Compliance engloba o acompanhamento dos pontos falhos identificados pela auditoria interna até que sejam regularizados, configurando intersecção das duas áreas.
Apesar da proximidade de funções, compliance faz parte da estrutura de controles, enquanto a auditoria interna avalia esta estrutura.
Assim, como as demais, a área de compliance, deve ser objeto de avaliação da auditoria interna.
Retornando ao conceito de Sustentabilidade Institucional: Ouvidoria, compliance e auditoria interna são órgãos complementares e de fundamental importância estratégica.
Integrados impulsionam uma poderosa transformação institucional permanente, favorecendo mudanças e ajustes em suas atividades e processos, em sintonia com as demandas da sociedade, ou seja, um caminho efetivo na busca da qualidade, da transparência e da efetividade da cidadania.
Nas palavras de Betinho: “O Brasil tem fome de Ética”… e exige resultados.
Não temos tempo nem direito de sermos ineficientes.
Autor: José Barroso Filho é ministro-ouvidor do Superior Tribunal Militar, associado da Associação Brasileira de Ouvidores/Ombudsman (ABO)