Autor: Paulo Rosenblatt (*)
Em notícias recentes, tem-se divulgado que o governo federal pretende finalmente instituir o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF)[i], como uma das medidas para reduzir déficit fiscal, e de promover a isonomia fiscal horizontal (igualdade de tratamento entre os contribuintes com capacidade econômica equivalente) e, sobretudo, a isonomia fiscal vertical (tributar mais aqueles com maior capacidade contributiva, especialmente através de tributação progressiva).
Não se trata de uma discussão nova, no Brasil, nem a sua previsão na Constituição é algo inovador, visto que vários países se utilizam ou já se utilizaram desse tributo[ii]. A França foi o primeiro país a adotar essa medida, denominada Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna (Impôt de Solidarité sur la Fortune), em 1982, sob a presidência de François Mitterrand. Na época, foi apelidado jocosamente como Imposto Robin Hood.
No Brasil, uma das primeiras propostas foi do então senador Fernando Henrique Cardoso, que dela se esqueceu quando se tornou presidente da República. Em 2012, houve uma proposta de deputados do PT, mas nas eleições, apenas PSOL e PSTU se lembraram desse imposto em seus programas[iii]. Recentemente, novos projetos de lei foram apresentados[iv].
A crise econômica e também uma das frases do economista Thomas Piketty, no best-seller O Capital no Século XXI[v], fez voltar à tona na pauta do governo federal e do Congresso Nacional o interesse nesse tributo: “não discutir impostos sobre riqueza é loucura”, disse Piketty[vi], e defendeu a tributação progressiva das rendas, heranças e patrimônio como forma de impedir a acumulação crescente de riquezas, em que os 0,1% dos mais ricos detém 20% do patrimônio global. Antes dele, em O mito da propriedade, os autores Liam Murphy e Thomas Nagel[vii] também defenderam a utilização do sistema tributário para ajustar níveis relativos de riqueza.
Em um relatório recente, de 15 de junho de 2015, do Fundo Monetário Internacional (FMI), intitulado Causes and Consequences of Income Inequality: A Global Perspective[viii], concluiu-se, primeiro, que a desigualdade é mais extrema em relação à riqueza do que no que tange à renda. Segundo, que o aumento da desigualdade tem um impacto negativo sobre a economia global. E, terceiro, que as políticas fiscais podem ser um importante instrumento para a redução de desigualdades, sobretudo as redistributivas de renda e os programas assistenciais, e caso reforçadas por tributos sobre riqueza e propriedade, tributação mais progressiva sobre a renda, a remoção de oportunidades para evasão e elisão fiscais, dentre outras medidas listadas no item 47 do relatório em referência, de forma a garantir um crescimento sustentável.
A discussão sobre a instituição de impostos sobre fortunas tem sido travada em vários países, em virtude das dificuldades financeiras da crise financeira mundial atual. O Brasil tem uma resistência histórica a tributar a renda e o patrimônio, e até mesmo de debater seriamente o tema. Também não há aqui transparência sobre os dados relativos à concentração de renda. Pasme, o país não foi estudado na obra de Piketty, diante da impossibilidade de acesso a dados na Receita Federal.
Estima-se que a instituição do IGF, no Brasil, traria uma arrecadação equivalente à da recriação da CPMF, sem a desvantagem de afetar o consumo, punitivo do mais pobres, e com a vantagem de onerar de 2 a 5% da população[ix].
O Brasil tem uma distorção tributária muito grande porque taxa em excesso o consumo e subtributa o capital e a renda[x]. A tributação sobre o consumo representa 44% da arrecadação nacional, mais que o dobro dos países desenvolvidos, tendo efeitos negativos sobre a distribuição de renda. Aqui, a tributação da renda corresponde a aproximadamente 21%, da propriedade a 9%, e as contribuições sociais a 26%.
Toda a discussão no mundo acerca de justiça fiscal passa pela tributação da renda, heranças e patrimônio, e não pelo consumo. Alega-se que nossa carga tributária é excessiva, mas ela é em torno de 36% do PIB, o que é comparável a de países desenvolvidos. Na verdade, é a sua composição que traz o aumento de desigualdades. O argumento de que temos uma “carga tributária asfixiante” serve aos propósitos dos mais ricos. A tributação de fortunas é uma pauta da esquerda obstaculizada por um Congresso Nacional representante das classes mais ricas da população, e tendo os próprios parlamentares como possíveis contribuintes[xi].
Países mais desenvolvidos têm uma distribuição mais equilibrada entre tributação da renda, riquezas e patrimônio, e a tributação do consumo. Nesses países, tributam-se, em níveis distintos, a concentração, acréscimo patrimonial ou a transferência do capital. E esses tributos costumam ser dos seguintes tipos principais: imposto anual sobre o património pessoal; imposto sobre direitos sucessórios (com impostos adicionais sobre as doações), e impostos sobre ganhos de capital impostos[xii].
Essa discussão, portanto, vem acoplada com a importância de se tributar mais as heranças, por meio da elevação das alíquotas do imposto estadual de transmissão causa mortis ou doações (ITCMD), e o patrimônio imobiliário. No Brasil, as alíquotas médias do ITCMD são de 4% — sendo a máxima permitida por Resolução do Senado Federal, de 8% —, enquanto no mundo desenvolvido é acima de 30%, ou mesmo 40%, como nos Estados Unidos e Alemanha. Já o Imposto Territorial Rural (ITR), federal sobre a propriedade rural, arrecada menos do que o IPTU do município de São Paulo[xiii].
Alguns alegam que o IGF causaria a fuga de capitais e de grandes patrimônios para outros países ou paraísos fiscais[xiv]. O que se tem observado em outros países que instituíram esse imposto é que não houve essa saída em massa de pessoas do país, até porque há regras em outros países que não são tão vantajosas como no país de origem. O Brasil ainda é um país muito vantajoso ao não tributar lucros e dividendos, por ter alíquotas baixas de imposto de renda da pessoa física, com limite de 27,5%, e tributação baixa ou nenhuma sobre o patrimônio.
Por outro lado, para que alguém retire do país sua fortuna, é necessário que ela possa ser transportada. Se, por um lado, a renda de capital (lucro, juros e dividendos) é móvel e pode ser deslocada para jurisdições de mais baixa tributação, por outro, como se transportará um apartamento de luxo ou uma indústria? – seguindo as ponderações lúcidas de Raul Haidar, neste ConJur[xv].
A Constituição não define o que sejam grandes fortunas. Para alguns, essa seria uma dificuldade para instituir esse imposto, por se tratar de um conceito incerto e subjetivo; mas isso também é bastante questionável, já que patamares de patrimônio podem ser fixados pelo legislador, como é feito no Imposto de Renda. Há o problema da provável litigiosidade envolvendo a instituição desse tributo, com relação ao princípio que veda o efeito confiscatório, ou mesmo a tributação excessiva sobre imóvel que constitua a residência do contribuinte e sua família.
Os maiores problemas de tributar a riqueza em todo o mundo são a identificação dos fatos geradores – que dependem da colaboração do sujeito passivo em declará-los – e a avaliação do patrimônio, com ou sem sua transferência, e de acordo com dados históricos ou de mercado. Isto porque “a característica de impostos de capital ou riqueza é que, em princípio, se relacionam com toda a gama ou gênero de ativos: os saldos de caixa e bancos; bens imóveis, como casas; bens pessoais, como joias, quadros, móveis, carros e barcos; ações e quotas societárias; e ativos de negócios empresariais”[xvi].
Nesse contexto, há uma janela enorme de oportunidades de evasão e elisão fiscais nesses tributos. Segundo Sandford, nos anos 1970, no Reino Unido, um tributo sobre o patrimônio era chamado de “imposto voluntário” (the voluntary tax) e referido como “um tributo pago por aqueles que gostam menos de seus parentes do que desgostam da Secretaria da Receita” (a tax paid by those who disliked their relatives more than they disliked the Inland Revenue)[xvii]! Sendo a base tributável o patrimônio líquido, é necessário selecionar, por ordem prática, quais bens podem ser incluídos e que não serão facilmente omitidos pelo contribuinte[xviii].
Outro argumento desfavorável é a suposta baixa arrecadação que se observou em alguns países, sobretudo porque ele estimula o planejamento patrimonial e sucessório. No entanto, verificou-se que a arrecadação é satisfatória e crescente em países como a França[xix], e que a declaração global de bens proporcionada por esse imposto ameniza a sonegação fiscal de outros tributos.
Alega-se também que o patrimônio nada mais é do que a renda poupada, já tributada, e que esse imposto irá desestimular o esforço e a poupança. No entanto, as alíquotas não são elevadas e, ao contrário, os mais ricos continuarão trabalhando para aumentar ainda mais a sua riqueza, como defende Piketty[xx].
Os argumentos contrários ao imposto não se sustentam, embora uma série de discussões precisam ser travadas quanto à melhor forma de instituir o imposto e de atenuar os seus pontos negativos. Conforme destacou Ricardo Lodi Ribeiro[xxi], no Brasil, programas redistributivos e assistenciais floresceram nos últimos anos e houve um ganho real no salário mínimo, como formas redutoras das desigualdades. É necessário agora enfrentar os pilares da tributação brasileira regressiva e concentrada sobre o consumo.
[i] A Constituição Federal de 1988 prevê 13 impostos de competência ordinária, sendo 7 da União Federal, 3 dos Estados e do DF e 3 dos Municípios. O IGF está previsto no artigo 153, inciso VII do texto constitucional e é o único, passados quase 27 anos da promulgação do texto constitucional, que jamais foi instituído. É também o único imposto de competência ordinária a exigir lei complementar para sua instituição, embora, em duas propostas de 2003 e 2008, buscou-se suprimir a exigência de Lei Complementar para instituir ao imposto, sem sucesso.
[ii] Na Europa, atualmente, França, Espanha, Suíça, Liechtenstein e Noruega possuem impostos sobre a fortuna; Itália, Áustria, Irlanda, Dinamarca, Alemanha, Finlândia, Suécia e Grécia já os tiveram, mas os extinguiram. O Japão já teve um imposto sobre grandes fortunas. Na América Latina, a Argentina e o Uruguai possuem impostos dessa natureza. CATARINO, João Ricardo. A tributação dos meios de fortuna: reflexões preliminares, considerandos e desafios. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, ano 10, n. 59, set./out. 2012. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=81898>. Acesso em: 10 out. 2015.
[iii] Sobre o histórico dos projetos de lei complementar para a instituição do imposto sobre grandes fortunas, vide SOUZA, Felipe Broering de Souza. Imposto sobre Grandes Fortunas: Projetos de Lei Apresentados e Casos Internacionais Similares. RFPTD, v. 2, n. 2, 2014.
[iv] PLP 6/2015 do Deputado Hissa Abrahão (PPS/AM); PLP 11/2015 do Deputado Valmir Assunção (PT/BA); e PLS 315/2015 do Senador Paulo Paim (PT/RS).
[v] PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Trad. Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
[vi] Entrevista com Thomas Piketty: “Não discutir impostos sobre riqueza é loucura”, Carta Capital, disponível em: http://www.cartacapital.com.br/economia/thomas-piketty-nao-discutir-impostos-sobre-riqueza-no-brasil-e-loucura-7525.html, acesso em: 02 set. 2015.
[vii] MURPHY, Liam B. e NAGEL, Thomas. The myth of ownership: taxes and justice. Oxford: Oxford University Press, 2002.
[viii] Relatório escrito por cinco economistas do Departamento de Política Estratégica e Revisão do FMI, disponível em: https://www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2015/sdn1513.pdf, acesso em 11 out. 2015.
[ix] Entrevista – Amir Khair, “Imposto sobre grandes fortunas renderia 100 bilhões por ano”, Carta Capital, disponível em: http://www.cartacapital.com.br/economia/imposto-sobre-grandes-fortunas-renderia-100-bilhoes-por-ano-1096.html, acesso em 02 set. 2015.
[x] ROSENBLATT, Paulo. Tributos sobre o consumo e o princípio da transparência fiscal. Estudantes Caderno Acadêmico, v. 1, p. 553-557, 2007.
[xi] “Imposto sobre fortunas pode entrar no debate sobre reforma tributária”, Câmara Notícias, disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ECONOMIA/492945-IMPOSTO-SOBRE-FORTUNAS-PODE-ENTRAR-NO-DEBATE-SOBRE-REFORMA-TRIBUTARIA.html, acesso em: 11 out. 2015.
[xii] SANDFORD, Cedric T. Why tax systems differ: a comparative study of the political economy of taxation. Bath: Fiscal, 2000.
[xiii] “Arrecadação tributária sobre propriedade no Brasil é menor que sobre o consumo”, Câmara Notícias, disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ECONOMIA-PROPRIEDADE-NO-BRASIL-E-MENOR-QUE-SOBRE-O-CONSUMO.html, acesso em: 02 set. 2015.
[xiv] MORENO, César. “Taxar grandes fortunas no país vai afugentar capitais”, CONJUR, disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jul-13/cesar-moreno-taxar-grandes-fortunas-afugentar-capitais?imprimir=1, acesso em: 02 set. 2015.
[xv] “Tributar grandes fortunas ou heranças, eis a questão”, disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-abr-27/justica-tributaria-tributar-grandes-fortunas-ou-herancas-eis-questao?imprimir=1, acesso em: 02 set. 2015.
[xvi] SANDFORD, Cedric T. Op. Cit.
[xvii] SANDFORD, Cedric T. Op. Cit.
[xviii] A França e a Espanha excluíram da incidência do imposto sobre as grandes fortunas: os objetos de arte e a propriedade cultural e literária; as capitalizações em fundos de pensões, para preservar aqueles que pouparam, ao longo da vida, para a aposentadoria, e os seguros de vida; e certos ativos em bancos, para estimular a poupança, ou para evitar a fuga de capitais e o colapso do sistema financeiro; etc. CATARINO, João Ricardo, op. cit.
[xix] Statistiques L’impôt de solidarité sur la fortune (ISF), disponível em: http://www.impots.gouv.fr/portal/dgi/public/statistiques.impot?espId=4&pageId=stat_donnees_detaillees&sfid=4503, acesso em: 11 out. 2015.
[xx] PIKEKETY, Thomas. op. cit.
[xxi] RIBEIRO, Ricardo Lodi. O capital no século XXI e a justiça fiscal: uma contribuição de Thomas Piketty para uma reforma tributária no Brasil. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 13, n. 50, p. 197-228, abr./jun. 2015; RIBEIRO, Ricardo Lodi. Piketty e a Reforma Tributária Igualitária no Brasil, RFPTD, v. 3, n.3, 2015.
Autor: Paulo Rosenblatt é advogado, procurador de Pernambuco, PhD em Tax Law (Institute of Advanced Legal Studies, Universidade de Londres), mestre em Direito (UFPE) e professor de Direito Tributário da Unicap (PE).