Cortes ainda divergem sobre inelegibilidade na Ficha Limpa

Autores: Ana Paula Fuliaro e Marco Antonio Martin Vargas (*)

 

A edição da Lei Complementar 135/2010, alcunhada de Lei Ficha Limpa, adveio, apoiada por diversos setores da sociedade, com vistas a promover maior moralidade e probidade na condução dos negócios públicos pela via do impedimento de determinadas candidaturas.

Muitas são as análises decorrentes dessa lei e dessa expectativa. No campo jurídico, avaliação a que nos propusemos foi a verificação do comportamento dos tribunais em sua aplicação aos casos concretos, mais notadamente a posição do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP).

Os resultados da sua primeira aplicação, para as eleições municipais 2012, estão detalhados na obra Ficha Limpa: impactos nos tribunais: tensões e confrontos[1], fruto do trabalho de um grupo de pesquisadores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a liderança da professora doutora Monica Herman Caggiano, em conjunto com o TRE-SP.

Na mesa linha proposta, a análise para o cenário de 2014 pode ser encontrada integralmente no artigo A Lei da Ficha Limpa e as Eleições 2014 – Um Estudo do Cenário Paulista, publicado no Cadernos de Pós-Graduação em Direito da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 34, 2015 e sobre o qual resumiremos os principais pontos a seguir.

De início, o mais relevante a se destacar é a proporção de candidaturas que não tiveram seguimento em razão da aplicação da Lei Ficha Limpa.

Quando da realização das Eleições 2012, foi possível notar que, do universo de casos tramitando perante o TRE-SP em que se discutia a matéria da Lei Complementar 135/2010, 43% tiveram como resultado o reconhecimento da inelegibilidade do candidato. Vale dizer, em números nominais, que, para 421 candidatos que tiveram contra si arguida a incursão em alguma hipótese de inelegibilidade de referido diploma legal, a resposta da Justiça Eleitoral Paulista foi sua exclusão da competição eleitoral[2].

Pois bem, guardadas as devidas proporções entre as Eleições Municipais e as Eleições Gerais, quer no número de candidaturas ofertadas, quer na forma de atuação do TRE-SP como tribunal revisor ou de competência originária, o que se percebe é certa similitude na linha de aplicação do diploma legal, valendo conferir, ainda, a relação entre decisões proferidas pela corte eleitoral paulista e as reformadas pelo Tribunal Superior Eleitoral.

O TRE-SP, uma vez mais, tornou disponível para a pesquisa acadêmica material referente aos registros de candidatura formulados perante si para se concorrer às Eleições Gerais 2014. Ele corresponde a um universo de 86 casos em que o objeto da discussão para o deferimento do pedido de registro de candidatura foi a incidência da Lei Ficha Limpa [3].

O primeiro dado relevante a se destacar é a proporção de candidaturas que seriam obstadas a partir da análise exclusiva dos julgados da corte paulista: 76% (65 casos) das decisões analisadas indicaram o reconhecimento da inelegibilidade com fundamento da Lei Complementar 135/2010, ao passo que apenas 24% (21 casos) do total do material de pesquisa levaram ao afastamento da inelegibilidade arguida.

Em comparação com as Eleições 2012, é possível afirmar, então, que o comportamento do TRE-SP, isoladamente, tornou-se mais restritivo à oferta de candidaturas em razão da Lei Ficha Limpa no que tange às Eleições 2014.

Contudo, deve-se ressaltar que, pelo fato de a competência originária ser do TRE-SP para análise dos pedidos de registros de candidaturas em Eleições Gerais, enquanto o TSE atua com poderes de reforma plena em razão da devolutividade dos recursos ordinários, torna-se relevante analisar, também, a proporção entre as decisões do TRE-SP que foram mantidas ou reformadas pelo TSE em sede recursal.

Nesse sentido, a diferença é bastante grande. O resultado final da análise das mesmas decisões objeto desse estudo, depois do julgamento dos recursos apreciados pelo TSE, denota que apenas 44% (38 casos) dos pedidos de registros de candidaturas foram indeferidos com fundamento da Lei Complementar 135/2010[4].

A comparação entre o resultado do reconhecimento da inelegibilidade pelo Tribunal Regional e o Tribunal Superior quantos aos mesmos processos pode ser representada pelos dois gráficos que seguem:

Proporção entre casos de inelegibilidade reconhecida e não reconhecida pelo TRE-SP em toda a base da pesquisa

Proporção entre casos de inelegibilidade reconhecida e não reconhecida pelo TSE em toda a base da pesquisa

Quanto à análise geral dos números, ainda é oportuno destacar que nem todos os acórdãos do TRE-SP foram objeto de recurso, o que indica uma proporção ainda maior de reforma das decisões pelo TSE. Dos 86 casos que perfazem o total do material analisado, nota-se a interposição de recurso em 78% das situações (67 casos), levando à conclusão de que houve reforma pelo TSE em 43% das situações (29 casos), prevalecendo, então, a posição do TRE-SP em 57% das situações (38 casos).

Os números até aqui referidos podem ser verificados na proporção gráfica adiante exposta:

Sob outra perspectiva — a da análise das principais hipóteses de inelegibilidade arguidas — o que se nota, em grande medida, é que as aquelas mais arguidas perante Tribunal Regional foram as mesmas das Eleições 2012: (i) a rejeição de contas pelo Tribunal de Contas[5]; (ii) a condenação criminal[6]; (iii) a condenação por ato de improbidade administrativa[7].

Com relação à reforma das referidas decisões do TRE-SP pelo TSE, é de se destacar, quanto às três principais hipóteses arguidas e reconhecidas, que as situações apresentam-se de modos diferentes entre si.

No que tange à alínea ‘e’ do artigo 1º, I, da LCP 64/90 com a redação dada pela LCP 135/2010, dos 25 casos em que essa hipótese de inelegibilidade foi arguida (e reconhecida em 17 deles), 15 deles foram objeto de recurso, havendo a reforma de um caso em que o registro de candidatura havia sido denegado e, por decisão do TSE, acabou deferido.

No que se refere à alínea ‘g’ do artigo 1º, I, da LCP 64/90 com a redação dada pela LCP 135/2010, dos 40 casos em que essa hipótese de inelegibilidade foi arguida (e reconhecida em 29 deles), 33 deles foram objeto de recurso, havendo a reforma de 12 casos em que o registro de candidatura havia sido denegado e, por decisão do TSE, acabou deferido.

No que toca à alínea ‘l’ do artigo 1º, I, da LCP 64/90 com a redação dada pela LCP 135/2010, dos 24 casos em que essa hipótese de inelegibilidade foi arguida (e reconhecida em 19 deles), 22 deles foram objeto de recurso, havendo a reforma de 15 casos em que o registro de candidatura havia sido denegado e, por decisão do TSE, acabou deferido.

Diante do grande número de casos e de uma ainda expressiva reforma do TSE das decisões do TRE-SP, as hipóteses das alíneas ‘g’ e ‘l’ do artigo 1º, I, da LCP 64/90 com a redação dada pela LCP 135/2010 mereceram uma análise mais detalhada no trabalho, o que foi feito a partir da avaliação de casos concretos considerados paradigmas: os pedidos de registro de candidatura do então candidato Paulo Salim Maluf (RCAND 2373-84.2014.6.26.0000) e da então candidata Sonia Francine Gaspar Marmo (RCAND 1676-63.2014.6.26.0000).

O primeiro caso tratou da hipótese da alínea ‘l’ (a condenação por improbidade administrativa) e revelou a divergência de interpretação entre a corte paulista e o TSE no sentido da possibilidade ou não de a Justiça Eleitoral adentrar todos os aspectos do acórdão condenatório da improbidade para aferir a existência dos requisitos da inelegibilidade, podendo concluir de modo diverso do que o constante do dispositivo da decisão que dá ensejo ao afastamento da candidatura, postura essa que foi rechaçada pelo TSE.

O segundo caso, por sua vez, referente à rejeição das contas públicas (a alínea ‘g’) demonstrou a dificuldade da Justiça Eleitoral de extrair da decisão da corte de contas a ocorrência ou não dos elementos necessários para o reconhecimento da inelegibilidade, já que não estavam expressos naquela decisão, o que também evidenciou postura divergente entre o tribunal paulista e o Tribunal Superior na forma de interpretação das condutas narradas pela decisão que rejeitou as contas da então candidata.

Analisados os dados gerais da segunda aplicação da Lei Ficha Limpa pelos tribunais — a primeira no âmbito de Eleições Gerais — algumas observações podem ser feitas.

A primeira delas é que já se apresenta como uma tendência haver três hipóteses de inelegibilidade mais recorrentes no cenário eleitoral: a condenação criminal, a condenação por improbidade administrativa e a rejeição de contas pelo Tribunal de Contas.

Essas foram as hipóteses discutidas nas Eleições 2012 e nas Eleições 2014, o que pode levar à conclusão de que referidos dispositivos efetivamente encontram eco no tecido político-social.

De outro lado — e como segunda observação — é de se dizer que a interpretação da LCP 135/2010 traz um ponto de tensão no que tange à tradicional doutrina das inelegibilidades.

Considerada, a elegibilidade, o aspecto passivo do direito de sufrágio, que consiste na liberdade de votar e de ser votado[8], qualquer restrição a esse viés do status civitatis deve ser tratado de maneira restrita sob pena de se comprometer um direito político absolutamente imprescindível para a organização democrática[9].

Assim, nota-se, de um lado, uma posição do TRE-SP que revela uma maior autorização para as interpretações que excluam do cenário político aqueles agentes públicos que tenham determinados tipos de mácula em sua história no trato da coisa pública ou de outros valores relevantes para a sociedade.

De outro lado, o TSE revelou uma postura mais associada à teoria tradicional das inelegibilidades, de interpretação restritiva, deixando de reconhecer a inelegibilidade quando não se vislumbrava de modo categórico a ocorrência de todos os requisitos previstos em lei.

Dessa maneira, notou-se, também, nas Eleições 2014, uma dissonância hermenêutica — o que parece natural, dada a novidade, a complexidade e a drasticidade do diploma normativo aqui tratado — entre a proteção dos direitos políticos na condição de direitos fundamentais e a teleologia moralizadora da coisa pública revelada com o advento da LCP 135/2010[10].

Parece importante, então, que surja um assentamento da jurisprudência eleitoral a partir dessa segunda oportunidade de aplicação de seus dispositivos, de modo a evitar o elevado número de reversões de julgados que indeferiam registros de candidatura, o que causa um cenário de incerteza em ambiente eleitoral.

Por fim, a título de terceira e última observação, também é de se notar que as dificuldades na aplicação da LCP 135/2010 pela Justiça Eleitoral decorrem, em alguma medida, da inexistência de informação expressa, nas decisões de outros órgãos julgadores, acerca dos elementos caracterizadores das hipóteses de inelegibilidade.

Essa dificuldade foi notada em ambos os casos concretos analisados no estudo, o que gerou as aprofundadas discussão nos tribunais, haja vista a impossibilidade de redefinição de fatos pelas cortes eleitorais.

Uma forma de solução desse conflito, que auxiliaria na criação de um ambiente menos incerto para a competição eleitoral e proporcionaria uma melhor aplicação da Lei Ficha Limpa, atingindo seu objetivo moralizador dos negócios públicos, seria estender a conscientização da importância de sua observância pelos demais órgãos prolatores de decisões que podem ensejar a inelegibilidade.

Assim, muito embora não se pense em violar a independência das diferentes esferas de jurisdição, seria importante que o Tribunal de Justiça prolator da condenação por improbidade administrativa, por exemplo, levasse em conta a necessidade de fazer constar de seu dispositivo, de modo inequívoco, seu entendimento sobre o caráter doloso ou culposo do ato, sobre a ocorrência de enriquecimento ilícito e dano ao erário, além da pena da suspensão dos direitos políticos.

De modo a contemporizar essa necessidade com a independência dos diferentes órgãos prolatores das decisões que envolvem a LCP 135/2010, poderia incumbir ao Ministério Público, que se envolve na grande maioria desses casos, uma postura de utilizar todos os mecanismos processuais à sua disposição para conseguir que referidos julgados venham a refletir de modo mais claro o juízo ali firmado sobre os elementos caracterizadores da inelegibilidade em cenário eleitoral.

Clique aqui para ler o estudo A Lei da Ficha Limpa e as Eleições 2014 – Um Estudo do Cenário Paulista


1CAGGIANO, Monica Herman (Coord.). Ficha limpa: impactos nos tribunais: tensões e confrontos. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014.

2Id. Ibid., p. 25.

3Registramos, aqui, nosso agradecimento a Jéssica Helena Gazzaneo, estudante de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que analisou e sistematizou o material fornecido pelo TRE-SP, possibilitando a verificação desses números e as análises daí decorrentes.

4Proporcionalmente, a posição do TSE para as Eleições 2014 aproxima-se mais daquela adotada pelo TRE-SP nas Eleições 2012 (43% dos casos analisados referentes às Eleições 2012 resultaram no reconhecimento da inelegibilidade pelo TRE-SP) do que a postura diante do pleito 2014 (76% dos casos analisados referentes às Eleições 2014 resultaram no reconhecimento da inelegibilidade pelo TRE-SP).

5Nos termos do art. 1º, I, g, da LCP 64/90 com a redação dada pela LCP 135/2010.

6Nos termos do art. 1º, I, e, da LCP 64/90 com a redação dada pela LCP 135/2010.

7Nos termos do art. 1º, I, l, da LCP 64/90 com a redação dada pela LCP 135/2010.

8CAGGIANO, Monica Herman. Sistemas eleitorais x representação política. São Paulo, 1987. p. 59.

9Id. Ibid., p. 72.

10CAGGIANO, Monica Herman (Coord.). Ficha limpa: impactos nos tribunais: tensões e confrontos, cit., p. 21-24.

 

 

 

 

Autores:  é advogada, doutoranda em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo.

Marco Antonio Martin Vargas é juiz assessor da Corregedoria do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Conselheiro e Professor da Escola Judiciária Eleitoral Paulista (TRE-SP).


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