Lei Anticorrupção impõe nova cultura contra “mecanismos” irregulares

Autores: Ivana David e João José da Fonseca (*)

 

Como já abordado em artigo anterior, a Lei 12846/2013, em vigor desde 29 de janeiro de 2014 e denominada Lei Anticorrupção, tem como escopo a responsabilização civil e administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos indicados expressamente na mencionada (artigo 5º da Lei 12846/2013) contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

A lei em questão busca, com a aplicação da responsabilidade objetiva, superar o conceito da culpa então prestigiado por leis anteriores. Como bem mencionado por Eduardo Cambi em seu artigo:

a preocupação se mostra legítima frente a dificuldade da responsabilização das pessoas jurídicas, por atos lesivos contra o erário público. Até o advento da lei 12.846/13, as punições às fraudes as licitações e contratos administrativos, o oferecimento de promessa a agentes públicos, a utilização de interposta pessoa para ocultar ou dissimular a identidade dos beneficiários dos atos praticados, a criação irregular de empresas para participar de licitação ou contratos administrativos, além de outros atos de corrupção, circunscreviam-se à responsabilidade subjetiva do agente. A necessidade de comprovação do dolo ou da culpa dificultava a produção da prova, tornava morosos os processos judiciais e, consequentemente, aumentava a impunidade dos tidos corruptos.[1]

Agora a responsabilização civil e administrativa por atos que prejudiquem a administração pública não ficam na dependência da responsabilidade individual, seja dos administradores, dirigentes ou qualquer pessoa que tenha participado ou até mesmo concorrido para a prática do ato tido como ilícito.

Assinale-se que a responsabilização da pessoa jurídica, inclusive no âmbito penal, já era prevista na Lei de Crimes Ambientais (art. 3º), não havendo nesse passo novidade e muito menos qualquer inconstitucionalidade. Essa é a lição de Edson José da Fonseca, em seu artigo intitulado “A responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica no Direito Constitucional Ambiental Brasileiro”, onde assinala “o fundamento da responsabilidade penal vem da efetiva proteção dos bens indispensáveis a todos os indivíduos e à sociedade, ou seja, a vida, liberdade, a propriedade….”. Ainda encerra, “… portanto, nada mais razoável de ser responsabilizar penalmente seus principais infratores (as pessoas jurídicas), tendo em vista a importância do bem juridicamente tutelado”.

Ao que se depreende, ainda, a indicada lei, também cuida de punir não só o tido como corrupto, como também, o então, corruptor. Com a edição da referida, restou evidenciado que doravante cabe também ser devidamente buscada a responsabilização pelas práticas de corrupção, não somente dentro da administração pública, mas também, com os corruptores que, por sua vez, promovam atos ilícitos contra a administração. É sabido do grande interesse de empresas, que para obter vantagens ilegais de entidades públicas, buscam de forma indiscriminada a aproximação com os entes estatais.

O que mais chama a atenção no novo ordenamento e merece destaque é a pena de multa na esfera administrativa, que pode ser aplicada mediante o devido processo. O valor varia 0,1% até 20% do faturamento bruto do último exercício da empresa, excluídos os tributos. Como se não bastasse, ainda na impossibilidade de se considerar o faturamento bruto da pessoa jurídica, o legislador fixou a possibilidade, considerando critérios outros, de aplicação da pena pecuniária entre R$ 6 mil a R$ 60 mil. Ainda no mesmo âmbito, o artigo 6º da referida lei previu a publicação extraordinária da decisão que reconheceu e aplicou a pena de multa.

Não se olvida que, se tratando de pena multa, só é possível a responsabilização após processo administrativo competente. A sua instauração deve ser determinada pela autoridade máxima de cada órgão ou entidade, observando-se os princípios do Direito Administrativo, bem como as garantias constitucionais.

A nova lei traz à disposição do próprio ente público, então prejudicado, procedimento específico para combater as irregularidades ou ilicitudes então perpetradas. A maior novidade é a responsabilização de empresas no próprio âmbito administrativo sem, no primeiro momento, a necessidade de se recorrer ao sistema judiciário.

O poder punitivo estatal impõe ou permite a aplicação de sanções pela própria administração (sanções administrativas). Para tanto, é impossível se afastar de princípios e garantias expostas não só no Direito Administrativo, como na própria Constituição Federal, até porque no sistema vigente se exige o controle e devida orientação no exercício do ius puniendi estatal.

Nessa esteira, é o entendimento dos doutos professores Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Flávio Amaral Garcia que:

esses princípios e garantias ganharam tal amplitude ético-jurídica que passaram a reger e a orientar toda e qualquer expressão de poder estatal sancionados, deles derivando-se legítimos mecanismos, à disposição dos indivíduos, para a contenção do exercício indevido do ius puniendi estatal que, sem essas barreiras de proteção, fatalmente retornariam às indesejáveis práticas do arbítrio que antecederam o próprio Estado de Direito. É sob essa ótica e a partir desse núcleo constitucional que o poder punitivo estatal – dotado de inequívoca unicidade – deve ser interpretado, independentemente de se tratar do Estado Administração ou do Estado Juiz.[2]

Cabe deixar consignado que a lei mencionada, de forma expressa em seu artigo 10, impõe a instauração de processo administrativo para a apuração da responsabilidade da pessoa jurídica, indicando inclusive a forma, o procedimento, o prazo, entre outros.

Como é pacífico, o processo administrativo sancionador tem como escopo a apuração de uma infração administrativa e, por conseguinte, a imposição da respectiva sanção legal.

Não é por outro motivo que nos incisos LV e LIV do artigo 5º da Constituição Federal se reconheceu o processo administrativo como garantia fundamental, assegurando aos acusados, em geral, o contraditório, a ampla defesa, bem como recursos então inerentes. É claro que a Carta Magna não esgotou o tratamento do processo administrativo, mas delineou condições mínimas para a garantia da legalidade na averiguação de atos previstos na lei ora discutida.

Outra inovação da lei, que merece nosso aplauso, foi a criação do Cadastro Nacional de Empresas Punidas, que tem por escopo dar publicidade às sanções aplicadas em todas as esferas governamentais.

Como bem elucidado no artigo de Katiane da Silva Oliveira (*), não existe qualquer dúvida no tocante à aplicabilidade da referida lei nos fatos apurados pela conhecida operação “lava jato”, pois o entendimento que indica a necessidade de regulamentação da citada está afastado por texto expresso, que em seu art. 7º impõe a mesma apenas quando se refere aos procedimentos a serem estabelecidos pela Controladoria Geral da União e que poderão ser adotados pelas empresas que eventualmente adotarem o regime de compliance.

Destarte, repita-se, afastada a necessidade de regulamentação da lei, registrando que superada a vacacio legis, entrou em vigor no dia 29 de janeiro de 2014, bem como considerando que a citada operação teve início no mês de março de 2014, trazendo ao conhecimento de todos os contratos fraudulentos lesivos ao patrimônio público, que aliás parte ainda em andamento, insuperável, em nosso sentir, a aplicação da referida Lei Anticorrupção.

Por fim, já se tem conhecimento, quer a lei vem gerando efeitos práticos, instalando-se em alguns setores, como programa de treinamento de funcionários, mudanças de padrões de comportamento corporativo, inserção de Código de Ética de desempenho de funções, entre outros.

A maior importância da lei, sem qualquer dúvida, reside no escopo de impor uma nova cultura no relacionamento com o poder estatal, considerando principalmente os odiosos “mecanismos” que nos vêm sendo hodiernamente noticiados, não só pela imprensa, mas pelas próprias investigações denominadas “lava jato”, nas suas inúmeras fases.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI 241201-AGR-SC. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, Acórdão de 20 set. 2002.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Especial 324.181/RS. Relatora: Min. Eliana Calmon. Brasília, RE julgado em 8 abr. 2003.
CAMBI, EDUARDO. Atuação do Ministério Público no combate à corrupção na Lei 12.846/2013. Revista do CNMP, Brasília, 4. ed., p. 11-43, 2014.
COELHO, EDUARDO DE SOUZA. A Administração Pública e o princípio da segurança jurídica. Artigo publicado em 29 jun. 2005. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2005-mar-29/administracao_publica_principio_seguranca_juridica>. Acesso em: 10 out. 2014.
FONSECA, EDSON JOSÉ DA. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, Revista dos Tribunais, vol. 16, jul/set 1996 – pág. 240
MOREIRA NETO, Diego de Figueiredo; GARCIA, Flávio. A principiologia no Direito Administrativo sancionador. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, n. 28, nov.-dez.-jan. 2012, p. 1-21. ISSN 1981-1861.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo sancionador. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
DA SILVA OLIVEIRA, KATIANE (*). Os Aspectos relevantes da Lei 12.846/2013, a chamada “lei anticorrupção” e a sua imediata aplicação: um instrumento para efetivar a moralidade administrativa . Disponível em: <www.consultasjuriricas>. Acesso em: 2 out. 2015.


[1] CAMBI, 2014, p. 11-43.

[2] MOREIRA NETO; GARCIA, 2012, p. 1-21.

 

 

 

 

Autores: Ivana David é juíza substituta em 2º grau na Seção de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

João José da Fonseca é advogado e membro da Comissão de Discussão do Projeto de Lei das Execuções Penais da OAB-SP.


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