Autores: Valter Foleto Santin, Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Rogério Cangussu Dantas Cachichi (*)
Foi noticiado na ConJur e em outros veículos de comunicação a polêmica providência tomada pela Prefeitura de São Paulo. Consistiu em decretar o sigilo das imagens de câmeras de segurança instaladas pelo Poder Público, com base na Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11), por supostamente ferir a “individualidade”[1]. A informação foi classificada como reservada, grau de sigilo cujo prazo máximo atinge cinco anos (artigo 24, parágrafo 1º, inciso III da Lei 12.527/11). Depois da repercussão do caso, o Prefeito voltou atrás em sua decisão. [2]
Uma corrente doutrinária, defendida pelo professor Lenio Streck, sustenta que a transparência deve servir para expor os atos do Estado, e não do cidadão, pois “não podemos criar uma tirania sobre a intimidade do indivíduo. Não podemos, em nome da segurança ou outras razões de estado, fulminar o que nos resta de liberdade individual”. Segundo o jurista, “Eu só posso admitir uma invasão da esfera da privacidade do cidadão a partir de uma violação maior, que é uma questão criminal. Isso não é para qualquer crime. Não pode valer para o furto, por exemplo. Se até nisso nós temos um olhar cuidadoso, não é com esse estado de vigilância que todos os atos do cidadão não podem ser preservados pela autoridade.”
O autor prossegue alertando para risco de criação de um novo panóptico: “Hoje isso é mais perigoso porque tudo é vigiado. Quem é a favor do panóptico é utilitarista; quem é utilitarista é consequencialista. Logo, admite que os fins justificam os meios, algo que não se permite no Estado Democrático de Direito.”
Com a devida vênia, ousamos discordar.
De início, cabe sublinhar que do fato de o panóptico ter sido idealizado pelo pai do utilitarismo clássico não decorre necessariamente o comprometimento dos defensores da vigilância de rua com tal doutrina. À parte, o utilitarismo não ignora o justo, embora priorize o bem; ao passo que teorias morais deontológicas não ignoram as consequências. “Todas as doutrinas éticas dignas de atenção levam em conta as consequências ao julgar o que é certo. Aquela que não o fizesse seria simplesmente irracional, insana”, destaca Rawls[3]. Não se segue, pois, da adoção de uma teoria moral consequencialista, como o utilitarismo, nenhuma violação do Estado Democrático de Direito, tampouco alguma admissão irracional de desconsideração do que é justo do tipo “os fins justificam os meios”.
Ademais, o direito fundamental à informação pública, umbilicalmente ligado ao postulado da publicidade, é garantia do cidadão contra o Leviatã. Qualifica-se como importante direito para a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua vertente de máxima universalidade,[4] com grande envergadura no panorama das liberdades públicas.[5]
Encontra-se estampado em diversos tratados internacionais de direitos humanos, cabendo citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 19) e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (artigos 10 e 13).
O princípio também possui guarida constitucional, garantindo a Lei Fundamental o acesso à informação (artigo 5º, XIV da CF) e o direito de todos a receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo vou geral (artigo 5º, XXXIII da CF). O constituinte inclusive impôs ao legislador ordinário o dever de disciplinar o acesso dos cidadãos às informações sobre os atos de governo (artigo 37, parágrafo 3º, II da CF). Negar ou restringir arbitrariamente informações de interesse público evidencia mecanismo de exceção próprio de Estados autoritários. Por meio do postulado da publicidade, decorrência do ideal republicano, o Poder Público, público que é, deve atuar buscando a maior transparência possível.[6] Trata-se de pressuposto da cidadania, fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, II, da CF).
Nesse cenário surgiu a Lei 12.527/11, com o desiderato de assegurar o direito fundamental de acesso à informação, fomentar o desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública e consolidar a publicidade como preceito geral e o sigilo como exceção (artigo 3º da Lei 12.527/11).
O direito à informação deve ser concretizado sem impedimentos ou discriminações por parte dos poderes públicos,[7] o que obviamente não significa inexistência de limites. O próprio constituinte (artigo 37, parágrafo 3º, II da CF) ressaltou que a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem (artigo 5º, V e X, da CF), bem como a segurança da sociedade e do Estado, são valores que merecem igual tutela do Estado. E por isso mesmo o legislador ordinário elencou alguns interesses cuja proteção justifica a classificação da informação como sigilosa (artigo 23 da Lei 12.527/11), podendo ser citados vida, segurança e saúde da população, segurança de instituições e investigação criminal. Além disso, as informações pessoais receberam especial amparo pelo artigo 31 da referida Lei.
A liberdade de expressão encontrará abuso no exercício “…se, a pretexto de descrever a vida ou a conduta de determinadas pessoas, se atribui a elas prática de atos negativos absolutamente estranhos à sua biografia, sem que se possa afirmar, com segurança, que se cuida, simplesmente, de uma imagem hiperbólica ou satírica.”[8] Não sendo o caso, há de prevalecer o interesse coletivo sobre o individual, o que não apenas teorias consequencialistas defenderiam. A própria ética kantiana é expressão disso.
Nesse diapasão, o fornecimento de imagens captadas por equipamentos públicos em locais públicos, atendendo a solicitação motivada, não tem o condão de “criar uma tirania sobre a intimidade do indivíduo”. Tampouco acreditamos ser apropriada a comparação de imagens de câmeras públicas de segurança às comunicações telefônicas, estas protegidas pela cláusula de reserva de jurisdição (artigo 5º, XII da Constituição Federal).
Se as imagens de câmeras públicas de monitoramento solicitadas pelo cidadão não colocarem em risco os valores albergados no artigo 23 da Lei 12.527/11 (vida, segurança e saúde da população, segurança de instituições, investigação criminal, entre outros), é perfeitamente possível sua cessão pelo Estado, limitadas no tempo e espaço, especialmente se o pedido for reforçado por motivação idônea (ex: localizar uma pessoa desaparecida, provar um álibi, noticiar uma informação de interesse público etc). Importante grifar ainda que a regra é da dispensabilidade da fundamentação do requerimento de acesso às informações de interesse público (artigo 10, parágrafo 3º da Lei).
Lembre-se que o acesso a imagens captadas por equipamentos públicos em espaço público é de interesse social, inegavelmente de interesse difuso, sendo de importância para toda a sociedade o conhecimento das atividades desenvolvidas pelas autoridades públicas no combate a irregularidades e ilicitudes praticadas em local público ou acessível ao público. Dentro do direito de participação do povo na prestação dos serviços públicos, o acesso à informação constitui um instrumento excepcional de controle, enfatizando-se que a captação de imagens é um serviço público, que pode ser inserido no contexto de serviço de segurança pública.
Conforme anota Valter Santin, sobre a participação popular na segurança pública, a própria política de segurança pública pode ser “viciada pela inconstitucionalidade da norma legal ou administrativa” em caso de falta de audiência popular, “sem ouvir o povo e os representantes da sociedade civil, por ferimento aos artigos 37, parágrafo 3º, e 144, caput e parágrafo 7º, da Carta Magna”, tendo em vista “o direito de participação popular e a responsabilidade de todos para o cumprimento do serviço de segurança pública fornecido pelos entes públicos”.[9]
O acesso à informação possibilita ao cidadão exercer o seu papel de participação na segurança pública e pleitear medidas para a sua melhoria, inclusive representação por omissão administrativa. É também um mecanismo de publicidade e transparência. Pode ainda constituir uma exigência de boa governança do administrador público no desempenho e implementação de políticas públicas.
Aliás, se as imagens captadas por dispositivos de segurança do Estado forem de interesse público (ex: evidenciar um estado de coisas inconstitucional[10] quanto à população de rua de um determinado município), essa informação deveria ser divulgada independentemente de solicitação (artigo 3º, II da Lei 12.527/11). A via pública constitui espaço público por excelência e, nessa ordem de ideias, a todos interessa. É nela que os homens se mostram uns aos outros; é nela que Estados autoritários abusam do poder acobertados por sigilo e restrição de informações.
Com efeito, a gestão transparente da informação, propiciando seu amplo acesso, é uma tarefa primordial dos órgãos e entidades do poder público. A informação mantida pelo Estado traduz um bem público, e o acesso a estes dados constitui-se em um dos fundamentos para a consolidação da democracia.
Conclui-se que a universalização do sistema de acesso à informação, em que o gestor não sonegue informações, tem como desafio vencer a cultura de segredo que historicamente tem prevalecido na gestão pública. Deve ser incentivada a cultura de acesso, na qual o fluxo de informações favorece a boa gestão de políticas públicas e a inclusão do cidadão, aproximando o indivíduo da coisa pública.
1 Haddad decreta sigilo de imagens de câmeras das ruas de São Paulo. Folha de S. Paulo, 16/10/2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1694646-haddad-decreta-sigilo-de-imagens-de-cameras-da-guarda-civil.shtml>
2 Haddad diz que irá rever sigilo de imagens de câmeras de rua de SP. Folha de S. Paulo, 16/10/2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1694708-haddad-diz-que-ira-rever-sigilo-de-imagens-de-cameras-de-rua-de-sp.shtml>
3 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 3ªed. Tradução Jussara Simões. Revisão técnica da tradução Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.36.
4 BONAVIDES, Mauro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 571.
5 BULOS, Uadi Lâmmego. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 531.
6 SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 669.
7 CANOTILHO, José Joaquim. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 541.
8 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 2ªed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 92.
9 SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública: eficiência do serviço na prevenção e repressão ao crime. 2. ed., São Paulo: Verbatim, 2013, p. 68-69.
10 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo . O Estado de Coisas Inconstitucional e o litígio estrutural. Consultor Jurídico, 01/09/2015. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural>
Autores: Valter Foleto Santin é promotor de Justiça do MP-SP, mestre e doutor em Direito pela USP, professor do programa de Mestrado em Direito da UENP e professor convidado da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisas (GT) Políticas públicas e efetivação dos direitos sociais (UENP).
Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná, e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.
Rogério Cangussu Dantas Cachichi é juiz federal da Seção Judiciária do Paraná, especialista em Direito Tributário pela PUC/SP , Membro honorário de E-Justicia Latinoamérica e Membro do Grupo de Pesquisas (GT) Políticas públicas e efetivação dos direitos sociais (UENP).