Autores: Clayton de Albuquerque Maranhão e Fernando Andreoni Vasconcellos (*)
Fomos honrados com a resposta de Lenio Streck[i], na sua coluna semanal, a respeito de nosso artigo acerca da criação de enunciados interpretativos sobre o novo CPC.[ii]
Contudo, a mensagem de nosso artigo não foi bem compreendida e a discussão acabou girando em torno, essencialmente, da interpretação de textos de Friedrich Müller.
Lenio Streck não trouxe o teor integral de seu e-mail trocado com Friedrich Müller, de maneira que é difícil comentá-lo: não se sabe se o professor de Heidelberg se referia a enunciados vinculantes ou a enunciados meramente doutrinários. Todavia, essa pretensão de invocar um argumento de autoridade, uma espécie de “vontade do autor”, além de não desdizer o que foi escrito e é inferido a partir da obra analisada, vai na contramão do que o próprio professor gaúcho escreve, quando critica a interpretação do direito buscando-se a “vontade do legislador”, algo que ele chama “solipsista”:“Mais ainda, e na medida em que o direito trata de relações de poder, tem-se, na verdade, em muitos casos, uma mixagem entre posturas “formalistas” e “realistas”, isto é, por vezes, a “vontade da lei” e a “essência da lei” devem ser buscadas com todo vigor; em outras, há uma ferrenha procura pela solipsista “vontade do legislador”.[iii] (sic)
Mesmo sem saber como foi a pergunta de Lenio a Müller, o que interessa para a discussão acadêmica é o que está posto e não o que foi pensado — de fato, causa estranheza que Lenio, um adepto da hermenêutica filosófica, recorra à “vontade do autor” para fundamentar seu ponto de vista.
Importante mencionar que o nosso argumento — quando bem compreendido— não depende da teoria de Friedrich Müller, todavia, com ela não colide, como se infere do seguinte trecho: “Além disso, mesmo no âmbito do direito vigente a normatividade que se manifesta em decisões práticas não está orientada linguisticamente apenas pelo texto da norma jurídica concretizanda. A decisão é elaborada com ajuda de materiais legais, de manuais didáticos, de comentários e estudos monográficos, de precedentes e de material do Direito Comparado, com ajuda de numerosos textos que não são idênticos ao e transcendem o teor literal da norma.”[iv]
Com efeito, os enunciados interpretativos auxiliam o ato de decisão e funcionam como elementos doutrinários. A respeito dos elementos da concretização da norma jurídica, Müller destaca o papel da doutrina/dogmática em sua metódica estruturante:
“Enunciados dogmáticos da práxis e da ciência expressam quase sempre a opinião dos seus autores acerca de determinadas normas. Enunciados teóricos, referentes à técnica da solução e à política do direito, orientam-se menos pronunciadamente segundo a concretização do direito vigente. Depois dos elementos metodológicosstrictiore sensu e dos elementos do âmbito da norma, os elementos dogmáticos estão “mais próximos” dos teores normativos. A dogmática jurídica é um subsistema de técnicas de comunicação no universo jurídico. Tradição, comunicação, formação de escolas, crítica e controle, tentativas de “construção” que interliga diferentes tendências, tentativas de “sistematização” expansiva, além disso também a conversão em técnicas de solução, a reflexão teórica e o aperfeiçoamento [Fortentwicklung] em termos de política jurídica são espécies de discussão “dogmática” de problemas jurídicos. Para que se possa falar de “dogma” no sentido próprio da palavra, falta o caráter de obrigatoriedade. Como modos técnicos de trabalho, os conteúdos dogmáticos, teóricos e de política jurídica influem assim considerável e muitas vezes decisivamente na solução de casos jurídicos. Mas isso ainda não gera o caráter vinculante no sentido desenvolvido da normatividade de normas jurídicas [Rechtsätze] “vigentes”. (…)”[v]
Como nunca sustentamos a obrigatoriedade/ imperatividade/ prescritividadedos enunciados interpretativos, como nunca afirmamos que enunciados interpretativos são normas prontas e acabadas, a ressalva de Müller em seu e-mail passa longe de nossa argumentação.
Com efeito, basta ler a nossa opinião, para que se verifique, sem rodeios, que nossa intenção foi defender a possibilidade de profissionais do direito (no caso, os magistrados) reunirem-se em seminário para discutir dispositivos do novo Código de Processo Civil, entendendo que essa é a razão pela qual referido diploma legal se encontra em período de vacatio legis. Procuramos demonstrar que os enunciados interpretativos não têm natureza normativa (prescritiva), como transpareceu da retórica utilizada no texto de Lenio Streck, em sua resposta. Muito pelo contrário, defendemos abertamente que tais enunciados interpretativos têm caráter meramente doutrinário.
Jamais defendemos que o enunciado seria uma norma definitiva, ou que deveria ser aplicada automaticamente, como se pode verificar dos seguintes trechos[vi]:
“Em verdade, os enunciados interpretativos facilitam o ato de interpretação/aplicação do direito, mas não eliminam a necessidade de reflexão crítica em torno do dispositivo que será interpretado/aplicado e do caso a ser solucionado.”
“(…) a elaboração de um enunciado interpretativo não o converte em uma norma individual e concreta, capaz de estar automaticamente – e definitivamente — pronta para tutelar o caso concreto, principalmente diante das novas exigências previstas no artigo 489 do novo CPC.”
Note-se que destacamos o caso a ser solucionado, uma referência ao caso concreto, pois entendemos, seguindo a nossa citação de Canotilho, que a norma só adquire verdadeira/definitiva normatividade, quando decide um caso jurídico, e exaltamos, neste tópico, a importância do novo artigo 489 do novo CPC, que trata exatamente da fundamentação das decisões. Ora, se o novel artigo 489 do novo CPC considera não fundamentada a decisão que somente se limitar à indicação de ato normativo, seria fundamentada a decisão que somente mencionasse um enunciado interpretativo-doutrinário? Por óbvio que não!
Segundo Lenio Streck, “… os casos imaginários estão reservados para a sala de aula. Lá professores e alunos têm que resolver os casos fictícios e, com isso, se pode estudar os elementos metodológicos”.[vii] Qual seria o motivo para que tais problematizações/reflexões não pudessem ocorrer em um ambiente acadêmico, formado em um seminário de juízes?
Frise-se que não concordamos com o teor de alguns enunciados. A doutrina, nesse momento, deveria se concentrar em discutir as conclusões dos enunciados, seja para corroborar o que está correto, seja para questionar o que está errado. A discussão antecipada acerca de certos dispositivos — inclusive com a criação de enunciados interpretativos, que constituem somente as conclusões obtidas durante o debate —, é louvável justamente porque permite a discussão acadêmica e possibilita o aperfeiçoamento do raciocínio jurídico — o que, ao final, gerará uma prestação jurisdicional mais efetiva, jurídica/correta e célere.
Dessarte, o próprio Lenio redigiu alguns enunciados interpretativos — que ele chama de “contraenunciados” (sic) —, e o fez com a ressalva de que isso, seguindo-se a sua linha de pensamento, “não será visto como inconveniente ou indevido stricto sensu”viii (sic). Ora, ao final, o próprio colunista gaúcho reconhece que a discussão deve se concentrar no teor dos enunciados, nos respectivos conteúdos, com o que concordamos integralmente.
Por fim, frise-se que talvez Lenio Streck pense que não é obrigado a enfrentar todos os fundamentos deduzidos pelos debatedores, bastando a ele escolher um argumento para questionar — esquecendo-se dos outros —, para então formar seu “livre convencimento”. Mas tal raciocínio, que não é possível ao juiz no momento da sentença, sobretudo diante do novo CPC, também não cabe a um jurista, ao menos se pretende discutir seriamente.
i STRECK, Lenio Luiz. Por que os enunciados representam um retrocesso na teoria do Direito. Publicado no site Consultor Jurídico: http://www.conjur.com.br/2015-out-15/senso-incomum-professor-aluno-jornalista-selfie-velorio-fujamos
ii MARANHÃO, Clayton de Albuquerque; VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. Criação de enunciados interpretativos sobre novo CPC é iniciativa louvável. Publicado no site Consultor Jurídico: http://www.conjur.com.br/2015-out-09/criacao-enunciados-interpretativos-cpc-louvavel
iii STRECK, Lenio. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista? Revista NEJ – Eletrônica. Vol. 15 – n. 1, p. 162.
iv MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2. ed. Trad. Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 54-55.
v MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho…, op. cit.. p. 92.
viMARANHÃO, Clayton de Albuquerque; VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. Criação de enunciados interpretativos sobre novo CPC é iniciativa louvável. Publicado no site Consultor Jurídico: http://www.conjur.com.br/2015-out-09/criacao-enunciados-interpretativos-cpc-louvavel
vii STRECK, Lenio. A febre dos enunciados e a constitucionalidade do ofurô! Onde está o furo? Publicado no site Consultor Jurídico: http://www.conjur.com.br/2015-set-10/senso-incomum-febre-enunciados-ncpc-inconstitucionalidade-ofuro
viii STRECK, Lenio. A febre dos enunciados e a constitucionalidade do ofurô! Onde está o furo? Publicado no site Consultor Jurídico: http://www.conjur.com.br/2015-set-10/senso-incomum-febre-enunciados-ncpc-inconstitucionalidade-ofuro
Autores: Clayton de Albuquerque Maranhão é desembargador no Tribunal de Justiça do Paraná. Doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, onde é Professor de Processo Civil.
Fernando Andreoni Vasconcellos é juiz de Direito em Curitiba. Doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná.