Autores: Carlos André Studart Pereira, Rogério Filomeno Machado e Ricardo Marques de Almeida (*)
As gerações que hoje estão nos cargos da advocacia pública federal cresceram ou, pelo menos nasceram, sob influência do regime militar, que autoproclamou sua própria revolução em 1964, ao derrubar um presidente da República democraticamente eleito.
Nos porões da ditadura, no DOI-Codi, já se anunciava que “contra a pátria, não há diretos”. Não muito distante, nas faculdades de Direito, ainda se leciona, sem maiores reflexões, o princípio da supremacia do interesse público, que não transmite uma ideia errada no primeiro contato que a expressão propicia, mas cujo conteúdo vago deu azo a justificar toda sorte de abusos – e de defesas – dos atos do poder público.
O Estado também tem seus advogados. A administração federal tem muitos deles: os advogados da União, os procuradores Federais, os procuradores da Fazenda Nacional e os procuradores do Banco Central. Apesar dos mais diferentes nomes, todos estão a serviço da mesma causa: a representação da União (e de todos os seus poderes) e a consultoria e assessoramento do Poder Executivo.
A existência de quatro carreiras de advogados públicosfFederais, no ano de 2015, se justificou por uma contingência histórica. Antes da Constituição da República entrar em vigor, o papel de advogado da União cabia ao Ministério Público Federal; a execução da dívida ativa e a defesa da União em matéria tributária, à Procuradoria da Fazenda Nacional, que ganhoustatus constitucional como órgão de existência obrigatória na estrutura da Advocacia Pública. Existiam também os assistentes jurídicos e procuradores de autarquias e universidades públicas fundacionais mencionados no artigo 29 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que hoje desapareceram em prol de um projeto maior: o da Procuradoria-Geral Federal.
Dizer que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional tem assento constitucional é o mesmo que dizer que o Tribunal do Júri ou os Juizados Especiais também têm. São órgãos importantíssimos, cuja existência a Constituição tornou obrigatória. No entanto, não são órgãos cujos cargos devem, obrigatoriamente, ser ocupados por carreiras autônomas[1]. O Tribunal do Júri e os Juizados têm seus cargos ocupados por juízes de uma mesma carreira. E é assim que deve ser com relação aos órgãos que comporão a estrutura da Advocacia-Geral da União, que talvez precise mudar de nome para Advocacia-Geral da República.
No desempenho de sua missão constitucional, os advogados públicos são chamados a competir a todo tempo. Diante da atuação de outros órgãos, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, instituições sagradas para a democracia, que agem de forma autônoma, questionando inclusive as políticas e atos da Aadministração pública, que são frutos da decisão de um governo eleito, de tempos em tempos, pela vontade popular.
Os advogados públicos também se deparam com demandas de pequena relevância à enorme complexidade patrocinadas por cidadãos, entes da sociedade civil e empresas, Estados estrangeiros e até organizações terroristas e discussão de questões que se afastaram do Poder Judiciário, rumando à arbitragem. São diversos mundos em que têm de atuar os advogados públicos federais que, repita-se, são chamados, a todo tempo, a competir.
A unificação das carreiras remanescentes de advogados públicos racionalizará as estruturas da maquina pública aumentará a eficiência da autuação dos advogados públicos, que dará condições estruturais e institucionais, junto com a efetivação das prerrogativas da Lei 8.906/94, para uma atuação competitiva, com paridade de armas.
Trazendo o discurso conceitual para a realidade, parece muito apropriado levar os olhos da Advocacia Pública para um evento marcante deste final de semana: o Enem. O Exame Nacional do Ensino Médio, em traços largos, é uma política pública de avaliação dos estudantes e de acesso ao ensino superior levada a cabo pelo Ministério da Educação e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Nacionais Anísio Texeira (Inep).
O MEC e o Inep integram a Administração Pública Federal, recebem orçamento proveniente do mesmo orçamento e atuam, no que diz respeito ao Enem, a implementar a mesma política pública. Porém, quando algum evento relativo a esse exame é judicializado, é chamada a Advocacia-Geral da União, que é obrigada, necessariamente, a chamar dois órgãos distintos simplesmente porque existem carreiras distintas para atuar no mesmo caso. Os advogados da União, representando a União (mais precisamente o Ministério da Educação), e o procurador federal, que também representa a União (artigo 37 da Medida Provisória 2.229-43, de 6 de setembro de 2001), por conta do interesse do Inep.
Não se trata, evidentemente, de uma atuação especializada, mas de uma atuação sobreposta. A especialização pode ser obtida numa única carreira, mantendo-se órgãos específicos de atuação, como já existe dentro da AGU, com as Procuradorias Federais Especializadas junto a autarquias e fundações, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a Procuradoria do Banco Central etc. O regime jurídico pelo qual se estrutura a Administração Pública, aliás, não é um direito estanque, mas resultado de uma decisão político-governamental com base na Constituição.
A grosso modo, nos casos em que há atuação sobreposta, além do retrabalho, há também a comunicação interna entre as diferentes carreiras de advogados, uma demandando da outra subsídios e elementos para defesa de uma mesma causa.
É como se uma grande rede de lojas de varejo montasse um escritório de advogados em Copacabana e outro escritório de advogados em Botafogo para atender as demandas jurídicas de lojas que trabalham da mesma forma, vendem os mesmos produtos e respondem aos mesmos tipos de demanda. Isso não faz o menor sentido.
Na AGU, a divisão interna já causou erro inclusive entre os Advogados Públicos. Num caso emblemático (REsp 1.037.563-SC), o STJ analisou se haveria nulidade na atuação de Advogado da União no lugar de um Procurador da Fazenda Nacional, em causa envolvendo a União. Naquele julgamento, a Corte Superior entendeu que “ainda que se reconheça, na hipótese em análise, o erro consistente na atuação da PGFN em causa de natureza não fiscal de competência da PGU, deve prevalecer a consideração de que a parte representada pelos dois órgãos é a mesma, a União, e teve ela a oportunidade de realizar o seu direito de defesa, o que efetivamente fez de modo pleno, mediante arguições competentes e oportunas, deduzindo diversas teses defensivas, todas eloquentes e bem articuladas, desde a primeira instância e em todos os momentos processuais. Assim, não resta espaço algum para enxergar nódoa no direito constitucional que assegura o contraditório e a ampla defesa”.
A Advocacia-Geral da União está diante de uma oportunidade histórica de consolidar suas estruturas, de melhorar ainda mais seus resultados e de se mostrar, à sociedade brasileira, a quem todos devem servir, como um exemplo de avanço que se espera dos órgãos do Estado.
Espera-se que, não obstante entendimentos contrários, baseados em fundamentos preponderantemente egoístas, o governo adote a decisão correta, unificando as quatro carreiras da AGU, respeitando-se, é claro, a situação do membro no que diz respeito à promoção na carreira e na remoção. E não se venha duvidar da constitucionalidade desse ato, já que o Supremo Tribunal Federal já apreciou questão sobremodo semelhante, julgando improcedente o pleito formulado na ADI 2.713, proposta pela Associação Nacional dos Advogados da União (Anauni).[2]
[1] A unificação das carreiras e os direitos de seus membros é matéria legal e pode ser tratada por Medida Provisória. Questões atinentes à organização e funcionamento da AGU, a exemplo da sua estruturação em órgãos especializados, é matéria de Lei Complementar, que não poderá suprimir a PGFN, nem a sua competência prevista no art. 131, §3º, da Constituição, pois isso só poderia ocorrer por Emenda Constitucional. Assim, se for criada a carreira de procurador da União, seus membros poderão atuar na PGFN, na PGBACEN, na PGF etc, como ocorre com os juízes de Direito lotados em Varas Especializadas.
A constitucionalidade da unificação já foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal e pela própria Advocacia-Geral da União tendo por objeto as experiências pretéritas. Nesse sentido, a transformação dos cargos de Assistente Jurídico da Advocacia-Geral da União em cargos de Advogado da União é tema que foi tratado pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2002, na ADI nº 2.713-1, da relatoria da Ministra Ellen Gracie. Vale a transcrição de trecho da ementa:
Rejeição, ademais, da alegação de violação ao princípio do concurso público (CF, arts. 37, II, e 131, parágrafo 2º). É que a análise do regime normativo das carreiras da AGU em exame apontam para uma racionalização, no âmbito da AGU, do desempenho de seu papel constitucional por meio de uma completa identidade substancial entre os cargos em exame, verificada a compatibilidade funcional e remuneratória, além da equivalência dos requisitos exigidos em concurso. Precedente: ADI nº1.591, Rel. Min. Octavio Gallotti
Autores: Carlos André Studart Pereira é procurador federal.
Rogério Filomeno Machado é procurador federal, presidente da Associação Nacional dos Procuradores Federais (Anpaf).
Ricardo Marques de Almeida é procurador federal.