Membros do MP são imunes por atos praticados na atividade funcional

Autor: Celso Jerônimo de Souza (*)

 

Para os ocupantes de determinados cargos, qualificados como agentes políticos, considerada a relevância social das atividades cometidas à Instituição a que se vinculam, como ocorre com os membros do Ministério Público, Judiciário e do próprio Parlamento, tanto o constituinte quanto o legislador ordinário entendeu por bem conferir-lhes proteções especiais, exatamente para bem desempenhar suas graves funções, que no caso doParquet, foram significativamente ampliadas, a partir da Constituição Federal em vigor, a quem foi confiado a tutela dos interesses mais caros da sociedade, alçado ao patamar de instituição perene e imprescindível à função jurisdicional do Estado.

Aos integrantes do Ministério Público, assim como do Judiciário, são asseguradas as garantias da independência funcional, vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade vencimental, as quais em última análise pertencem à sociedade e não podem ser compreendidas ou apontadas como privilégios pessoais dos seus membros, mas como verdadeiras prerrogativas do cargo, deixando consignado que para os fins deste breve ensaio as garantias serão utilizadas como sinônimo de prerrogativas e sem qualquer preocupação em distinguir a instituição ministerial do seu agente.

Interessa, em particular, no presente estudo, abordar a prerrogativa da independência funcional, pela estreita relação que guarda com outra, a imunidade funcional, e as consequências jurídicas que dela resultam, gravitando em torno das demais garantias, a fim de evitar toda e qualquer forma de vulnerabilidade do agente político no escorreito exercício do seu mister institucional, abordando a problemática da sua (ir)responsabilidade civil e criminal, por dano ou lesão, que a atividade institucional eventualmente produzir, pois na bela lição de Prudente de Morais Filho, o “Ministério Público não recebe ordens do Governo, não presta obediência a juízes, pois age com autonomia, em nome da lei, da sociedade e da justiça”.

Responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana
Estabelece o Código Civil a obrigação de indenizar por danos causados a outrem resultantes de ato ilícito (artigos 186, 187 e 927), positivando as hipóteses em que estará afastada a ilicitude do ato (artigo 188) e, por conseguinte, a reparação civil.

Observa-se que o legislador, em matéria de responsabilidade civil aquiliana, exige a investigação da culpa ou dolo do agente causador da lesão. Sendo certo afirmar que a responsabilidade objetiva ou sem culpa é exceção.

Então parece não haver dúvidas que o dano decorre de uma ação humana voluntária positiva ou negativa (ação ou omissão).

Perquirindo o sentido etimológico e jurídico, cabe responder que a responsabilidade civil significa uma contraprestação, encargo e obrigação, mas não se confunde obrigação com responsabilidade. Aquela traduz num dever jurídico originário, enquanto esta, a responsabilidade, é um dever jurídico sucessivo consequente, como ensina Sérgio Cavalieri Filho[1].

Importante lição é oferecida por Rui Stoco, ilustre desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao defender que: A noção da responsabilidade pode ser haurida da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém pelos seus atos danosos. Essa imposição estabelecida pelo meio social regrado, através dos integrantes da sociedade humana, de impor a todos o dever de responder por seus atos, traduz a própria noção de justiça existente no grupo social estratificado. Revela-se, pois, como algo inarredável da natureza humana[2].

Reforça Silvio Rodrigues: “A responsabilidade civil é a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam”[3].

Lembra José de Aguiar Dias: “O dano é, dos elementos necessários à configuração da responsabilidade civil, o que suscita menos controvérsia. Com efeito, a unanimidade dos autores convém em que não pode haver responsabilidade sem a existência de um dano, e é verdadeiro truísmo sustentar esse princípio, porque, resultando a responsabilidade civil em obrigação de ressarcir, logicamente não pode concretizar-se onde nada há que reparar”[4].

Para existir a possibilidade de reparação de um dano ou lesão de um bem jurídico de cariz patrimonial ou moral, é imprescindível que entre o evento e a conduta ilícita do agente tenha relação de causalidade. Estabelecidas estas premissas que se apresentam inexoráveis, não havendo a conduta é impossível afirmar que se produziu uma lesão ou redução no patrimônio jurídico de alguém.

Na opinião de Maria Helena Diniz[5], configura-se ato ilícito que encerra a responsabilidade subjetiva quando houver fato lesivo voluntário, dano e relação de causalidade.

Desse entendimento não diverge Washington de Barros Monteiro[6], reforçado por José Cretella Júnior[7] quando discorre que para haver ato ilícito, “necessária se faz a conjugação dos seguintes fatores: a existência de uma ação; violação da ordem jurídica; a imputabilidade; a penetração na esfera de outrem”, segundo os ensinamentos de Carlos Alberto Bittar, devendo, “o agente, recompor o patrimônio do lesado, desde que presente a subjetividade no ilícito”[8].

Pela hermenêutica dos dispositivos legais citados, a reparação de danos pelos membros do Ministério Público e do Judiciário é admitida apenas quando agirem com dolo ou fraude e mediante ação regressiva do Estado.

Danos eventualmente causados pela atividade institucional do Ministério Público
Se da atividade funcional dos membros do Parquet houver lesão ou prejuízo ao patrimônio jurídico de alguém, a responsabilidade civil será do Estado. Não parece ser outra a conclusão oferecida pelo artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, desde que tenham agido com dolo ou fraude, caso em que a obrigação de reparar ficará a cargo do agente causador, porém, mediante ação regressiva estatal, sendo parte ilegítima para figurar na polaridade passiva da ação ressarcitória originária (CF, artigo 37, § 6º; CPC, artigo 85).

O novo CPC, que passa a vigorar em 17/03/2016 foi mais especifico sobre a questão deixando positivado, nos seus artigos 143 e 181, que os membros do MP e do Judiciário responderão apenas em ação regressiva.

Com efeito, não teria o menor sentido imaginar que o Ministério Público, enquanto porta-voz da cidadania, “um dos órgãos, por meio dos quais o Estado manifesta sua soberania”, no dizer de Hugo Nigro Mazzilli, ao receber do constituinte a missão de defender a ordem jurídica, o regime democrático, os direitos sociais e individuais indisponíveis, considerados interesses essenciais à sociedade pudessem, seus membros, sentirem-se intimidados pelo infrator, por mais elevada que seja sua posição na pirâmide social.

Por isso que, ao lado e a partir das garantias da vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de subsídios e independência funcional, o legislador entendeu que era preciso, também, até como corolário da última, outorgar aos membros do Parquet a indispensável prerrogativa da imunidade funcional.

Na visão de José Cretella Júnior, reportando-se a atuação desses membros, “os atos danosos, que porventura pratiquem, empenham a responsabilidade civil do Estado, que arcará com a reparação”[9].

Por seu turno, Nelson Nery Júnior comentando o artigo 85, do CPC assevera que os “membros do MP são agentes políticos e, assim como ocorre com os juízes, somente respondem, quando agem com dolo ou fraude no exercício de sua função. Não estão sujeitos a responsabilidade quando agem com culpa. As hipóteses de responsabilidade dos juízes e do MP são arroladas em numerus clausus, taxativamente, não comportando ampliação, de forma que o prejudicado por ato doloso ou fraudulento praticado pelo MP tem direito de ressarcir-se por meio de ação dirigida contra o poder público (CF 37 § 6º)”[10].

Explica Paulo Salvador Frontini: “sempre que o órgão do Ministério Público agir com dolo ou fraude deverá pelos prejuízos responder o Estado. O órgão do Ministério Público responderá por via de regresso”[11].

A despeito desse tema, vale recordar as lições do professor José Afonso da Silva, que com percuciência pontua que: “A obrigação de indenizar é da pessoa jurídica a que pertencer o agente. O prejudicado há que mover a ação de indenização contra a Fazenda Pública respectiva ou contra a pessoa jurídica privada prestadora de serviço público, não contra o agente causador do dano. O princípio da impessoalidade vale aqui também”[12].

De igual modo, não se prescinde da preleção de Hely Lopes Meirelles ao sugerir que a Carta Republicana desautoriza “a responsabilização direta do servidor pelo lesado impondo seu chamamento a juízo não por este, mas pelo órgão público interessado em ressarcir-se, mas com a obrigação de demonstrar a culpa, em ação autônoma, porquanto o legislador constituinte bem separou as responsabilidades: o Estado indeniza a vítima; o agente indeniza o Estado, regressivamente”[13].

Na jurisprudência, o Tribunal de Justiça de São Paulo firmou entendimento que o Promotor de Justiça é parte ilegítima para figurar na polaridade passiva da relação processual (AC 86.922-4), reconhecendo o TJ do Distrito Federal, que a ação reparatória deve ser proposta em face da pessoa jurídica de direito público (EIC 506332000).

O STF no julgamento do RE 228.977-SP (Informativos 259 e 263) veiculando pleito indenizatório em desfavor de magistrado atestou que cabe ao Estado, com exclusividade, responder pelos eventuais danos resultantes da atividade judicante.

Imunidade funcional conferida aos membros do Ministério Público e repercussão na esfera civil e criminal
Os integrantes do Ministério Público são depositários da imunidade judiciária pelos atos praticados no exercício da atividade funcional, isto é, são invioláveis pelas opiniões ou manifestações lançadas, a exemplo do que acontece com a imunidade dos membros do Judiciário, do Parlamento e imunidade profissional dos advogados, afastando, tal prerrogativa, a responsabilidade civil e criminal do seu titular.

Disso resulta inferir que o ato praticado, uma vez integrando o acervo de atribuições do MP e inexistindo animus de difamar, injuriar, caluniar ou desmoralizar, afigura-se desautorizado ao Judiciário elevá-lo à condição de ilícito civil ou criminal, passível de reparação, a menos que se faça letra morta do disposto nos artigos 127 e 129, da Constituição Federal e artigo 41, V, da Lei 8.625, de 12 de fevereiro de 1993.

A imunidade material assegurada pelos textos do artigo 127, § 1º, in fine, da Lex Major e artigo 41, V, da Lei Federal nº 8.625/93 é irrenunciável e, por razões óbvias, não poderia ficar num patamar inferior (pela relevância das atribuições ministeriais) à imunidade profissional outorgada ao advogado pelo artigo 133, da Constituição Federal e artigo 7º, § 2º, da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994, como não difere da imunidade parlamentar conferida pelo artigo 53, caput, da mesma Carta Política, tudo para que o membro possa cumprir de forma plena, independente e altiva o seu grave mister.

Enfatiza Emerson Garcia com muita propriedade, ao comentar sobre a independência funcional, que os membros do Ministério Público “não podem ser responsabilizados pelos atos que praticarem no estrito exercício de suas funções, gozando de total independência para exercê-las em busca da consecução dos fins inerentes à atuação ministerial”[14].

Pondera Hugo Nigro Mazzilli que a independência funcional é prerrogativa e a imunidade é uma das suas vertentes assegurada aos membros doParquet para o “correto cumprimento dos misteres que a lei lhe confiou, ressaltando, porém, que ela pertence à própria instituição e não ao indivíduo”[15].

Sobre esse tema, anota, ainda, Pedro Roberto Decomain, que “não ficará o membro do Ministério Público sujeito a procedimento criminal, ou processo civil de eventual indenização por pretensos danos morais, em virtude de suas manifestações e posicionamentos nos feitos em que lhe caiba oficiar”[16].

A propósito, por falar em imunidade funcional, o Superior Tribunal de Justiça em decisão lapidar tirada do REsp 790.807-MG, confirmando acórdão do TJ de Minas Gerais, afastou os danos morais por manifestação de Promotor de Justiça contra decisão de Juiz.

O mesmo tribunal (HC 18.315-AC) trancou ação penal privada manejada contra Promotores de Justiça acusados por advogado de praticar crime de calúnia, demandado em ação civil pública por ato de improbidade administrativa.

De igual modo, a Corte negou trânsito a REsp corroborando acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que recusara indenização agitada contra a União, por conta da atuação do Ministério Público Federal (AREsp 232.884-RS).

Por fim, interessante e emblemático foi o julgamento do REsp 1.314.163-GO, em que veiculava ação reparatória de juiz contra membro do MP goiano. O especial restou provido, desconstituindo-se o decisório que condenara o Estado e o órgão ministerial a indenizar danos morais, isto porque o então Procurador-Geral de Justiça, “numa entrevista coletiva à imprensa local teria informado a existência de noticia criminis envolvendo a prática de crimes pelo autor (juiz)”.

Na instância singela, tanto o Estado quanto o chefe do Parquet findaram condenados por danos morais, afastados os materiais. Houve recurso e o Tribunal de Justiça local reformou a sentença apenas para reduzir o valor da indenização. A controvérsia foi submetida ao crivo do STJ onde a pretensão recursal formulada pelo membro do MP e do Estado findou acolhida.

Inconformado, o juiz opôs embargos de divergência que foram negados; agravo regimental, desprovido; embargos de declaração, rejeitados; por fim, recurso extraordinário, indeferido liminarmente pela vice-presidência da corte, decisão que transitou em julgado.

No julgamento do RE 228.977, o STF decidiu que magistrado não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais, eis que protegido pela imunidade funcional, bem como afastou, no RE 445.906, 430.836, 436.681 e AI 473.091, em razão da imunidade parlamentar, a obrigação de deputado reparar danos morais.

Por esse conjunto de ideias, pode se afirmar que a imunidade judiciária integra o acervo de atributos do cargo de Promotor e Procurador de Justiça ou da República, conferindo ao seu titular a prerrogativa da inviolabilidade pelas opiniões ou manifestações, nos limites da sua independência funcional, não podendo ser responsabilizado seja na esfera criminal envolvendo os delitos de opinião, seja na civil, sob pena de tolher sua liberdade funcional e vulnerar, em análise derradeira, a própria defesa dos direitos e interesses mais sensíveis da sociedade e eventual dano moral resultante da sua atuação deverá ser suportado pelo Estado.

Conclusões
Os membros do Ministério Público são depositários das garantias da vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de subsidio e independência funcional, não se tratando de privilégios pessoais do titular do cargo, mas funciona como atributo de proteção da própria sociedade.

Como corolário da independência funcional, o legislador conferiu ainda, aos membros da Instituição, a prerrogativa da imunidade funcional ou judiciária, a exemplo da imunidade material assegurada aos integrantes do parlamento e imunidade profissional alocada aos advogados.

Por força da imunidade funcional, os membros do Ministério Público, no exercício das suas atividades institucionais, não ficam sujeitos à responsabilidade criminal pelos intitulados delitos de opinião e civil, devendo eventual lesão ou dano moral produzido em razão da sua atuação funcional, no âmbito ou fora do processo, ser suportado pelo Estado, sendo parte ilegítima para figurar na polaridade passiva de eventual ação civil reparatória.

A responsabilização civil somente ocorrerá, quando ficar demonstrado que o membro agiu com dolo ou fraude, mediante ação regressiva do Estado, ficando afastada na hipótese de culpa.


[1] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010, p. 3.

[2] STOCO, Rui. Responsabilidade Civil: Doutrina e Jurisprudência. 7ª edição. São Paulo: RT, 2007, p 114.

[3] RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil.Responsabilidade Civil. 18ª edição, volume 4. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 5.

[4] DIAS, José Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 12ª edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. 2011, p. 819.

[5] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito das Obrigações, 20ª edição, 3º vol., Saraiva, p.p. 794/5.

[6] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Direito das Obrigações, 20ª edição, 5º vol., Saraiva, p.392.

[7] CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar, Saraiva, São Paulo, 1980, p. 5; 7-8

[8] BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil nas atividades perigosas, in Responsabilidade Civil – Doutrina e Jurisprudência, 2ª edição,  Saraiva, coordenação de Yussef Said Cahali, p 93-95.

[9] CRETELLA JÚNIOR, José.  O Estado e a obrigação de indenizar. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

[10] NERY JÚNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado, 9ª edição, São Paulo: RT, p. 277.

[11] FRONTINI, Paulo Salvador. A responsabilidade civil do órgão do Ministério Público. Justitia 83/35.

[12] SILVA, José Afonso da.  Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª edição. São Paulo: Malheiros, p. 575.

[13] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 27ª edição. São Paulo: Malheiros , pp. 470 e 627.

[14] GARCIA, Emerson.  Ministério Público Organização, Atribuições e Regime Jurídico, 3º edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 63.

[15] MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público, 3ª edição. São Paulo  Saraiva, 1996, p. 149.

[16] DECOMAIN, Pedro Roberto. Comentários à Lei Orgânica Nacional do Ministério Público. Florianópolis: Obra Jurídica, 1996, p. 350.

 

 

 

 

Autor: Celso Jerônimo de Souza  é promotor de Justiça e secretário-geral do Ministério Público do Acre. Pós-Graduado em Direito Processual Civil e Direito Público.

 

 


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