Autora: Denise Provasi Vaz (*)
Aos 22 de outubro último, Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou parecer do relator deputado Manoel Junior sobre o PL 2960/15, vulgarmente denominado de projeto de “repatriação” de recursos mantidos no exterior, acatando também o substitutivo por ele apresentado.
O projeto de lei fora enviado pelo governo à Câmara dos Deputados em 10 de setembro passado, como alternativa ao PLS 298/15, do senador Randolfe Rodrigues, sobre o mesmo assunto, tendo em vista a sinalização do presidente da Câmara dos Deputados de que não analisaria proposta não apresentada diretamente pelo Governo.
Ele dispõe sobre o “Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária de recursos, bens ou direitos de origem lícita não declarados, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes ou domiciliados no país”, que constitui uma das medidas sugeridas para o ajuste fiscal, na busca de receitas para equilibrar as contas públicas. A proposta tem por base a estimativa de que existiriam cerca de R$ 200 bilhões — ou de US$ 400 bilhões, conforme a exposição de motivos do projeto —, mantidos por brasileiros no exterior de maneira não declarada.
Não obstante a desnecessidade de efetiva repatriação de recursos e a alíquota favorável do regime, inclusive reduzida no Substitutivo, a esperada adesão dos interessados em regularizar recursos, bens ou direitos não declarados dependerá, em grande parte, da confiança dos contribuintes no procedimento a ser implementado, que ainda deverá ser regulamentado pela Receita Federal.
O principal efeito da regularização encontra-se na esfera criminal, com a extinção da punibilidade dos crimes financeiros correlacionados. Aderindo ao regime, pode-se afastar o risco de investigações e processos criminais, que, assim como alertou o Procurador Geral da República recentemente, podem ser instaurados a partir de dados bancários fornecidos por meio de cooperação penal internacional, como já ocorreu no chamado caso Banestado.
Entretanto, verificam-se, no projeto de lei, lacunas e fatores de insegurança jurídica, além de contradições com disposições do ordenamento jurídico, que podem comprometer a sua eventual aplicação e o êxito da medida pretendida.
Assim, deve-se ver que o projeto abrange, consoante artigo 3º, vasta lista de recursos, bens e direitos para regularização, incluindo, por exemplo, ações de empresas estrangeiras e direitos da propriedade intelectual. Porém, a ausência da respectiva declaração não necessariamente configura o crime de “evasão de divisas” (em realidade, manutenção de depósitos não declarados) inscrito no parágrafo único do artigo 22 da Lei 7.492/86. Isso porque, embora o Banco Central determine a declaração de diversos ativos mantidos no exterior, como aplicações em portfólios, leasings e imóveis, dentre outros, o tipo penal em questão refere-se apenas a “depósitos”, que, segundo parte da doutrina e alguns julgados, podem ser entendidos como quantias mantidas em contas bancárias em instituições financeiras fora do país, excluindo-se os demais recursos, bens e direitos. Conforme as circunstâncias concretas, poderia, então, ser inconveniente a adesão ao regime em tais casos.
Do mesmo modo, o projeto isenta de multa de regularização somente valores disponíveis em conta no exterior até o limite de R$ 10 mil por pessoa, enquanto a exigência, pelo Banco Central, de declaração se aplica a valores superiores a US$ 100 mil, podendo-se sustentar, com base em doutrina e alguns julgados, que a ausência de declaração de valores inferiores a esse montante não caracteriza o delito.
Com efeito, é de se registrar que alguns pontos já foram corrigidos pelo Substitutivo ofertado pelo relator, contemplando as Emendas dos membros da Comissão Especial.
Nesse sentido, o Substitutivo ajustou a lista de crimes que permitem a extinção da punibilidade por meio da adesão ao regime, que incluía apenas os crimes de sonegação fiscal e de contribuição previdenciária, da respectiva falsidade, de evasão de divisas e de lavagem de dinheiro, esta quando o objeto do crime for bem, direito ou valor proveniente, direta ou indiretamente, dos crimes mencionados anteriormente.
Foi corretamente acrescido o crime de descaminho (artigo 334, CP), que, embora tratado diversamente pela jurisprudência, tem nítido caráter tributário e transnacional, podendo estar relacionado aos recursos almejados pelo Governo, mormente quando o projeto menciona veículos, aeronaves e embarcações, dentre os bens a serem regularizados. Assim também, o crime de quadrilha ou bando (artigo 288, CP), que pode estar relacionado à manutenção de ativos no exterior, como em hipótese de atuação de grupo de doleiros, por exemplo. Também foi acertada a inclusão do crime de uso de documento falso, cuja prática se mostra possível na situação aventada no projeto, principalmente nos casos de interposição de pessoas. Igualmente, justifica-se a inserção dos crimes financeiros referentes à contabilidade paralela, operação de instituição financeira sem autorização e falsa identidade ou informação falsa para operação de câmbio (artigos 11, 16 e 21 da Lei 7.492/86), comumente relacionados à remessa ilícita de divisas ou manutenção de ativos não declarados no exterior.
Assim também, no que concerne à proteção contra a autoincriminação, o Substitutivo corretamente previu que a declaração de regularização não pode ser utilizada como indício ou “elemento” na persecução penal ou em procedimento tributário ou cambial, ao contrário do projeto original, que somente proibia que fosse ela o único elemento de prova em tais feitos.
No entanto, não houve claro regramento sobre a possibilidade ou não de a declaração de regularização dar origem à persecução penal, assim como a respeito da eventual utilização e compartilhamento dos documentos apresentados para a adesão ao programa. Ao tratar da exclusão do programa, o Substitutivo manteve a imprecisa previsão de que a instauração ou continuidade do procedimento criminal depende de evidências documentais não relacionadas à declaração do contribuinte, o que não exclui expressamente os documentos apresentados com ela, nem documentos obtidos por outras fontes, mas com base no pedido de adesão ao regime.
Nesse passo, vale observar que foi mantida também a vedação de compartilhamento das informações prestadas pelos declarantes com os demais Entes Federativos (Estados, Distrito Federal e Municípios), sem menção, porém, aos órgãos da persecução penal, o que não afastaria a aplicação do artigo 28 da Lei 7.492/86, que determina que o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários comuniquem o Ministério Público Federal sobre a possível ocorrência de crime financeiro, remetendo-lhe os documentos pertinentes.
Apesar de a exposição de motivos fazer um paralelo com o tratamento conferido aos delitos tributários, cuja punibilidade é extinta mediante o pagamento, na situação visada pelo projeto, pode não haver, ainda, delineamento, pelas autoridades, da infração administrativa e da respectiva sanção, como ocorre no auto de infração tributário, que se faz imprescindível para a persecução penal do delito correspondente. Em verdade, alteração promovida pelo Substitutivo acabou por reduzir as hipóteses em que a adesão ao regime será feita em decorrência da caracterização das infrações pelas autoridades competentes, na pendência de procedimento administrativo ou criminal, pois excluiu da aplicação da futura Lei os casos em que já esteja constituído o respectivo crédito tributário (artigo 1º, §5º, II).
Nos casos abarcados pelo projeto, se não houver investigação ou processo criminal em curso, cabe ao contribuinte revelar os fatos e aguardar pela interpretação a ser conferida pelas autoridades públicas. Inclusive, o Substitutivo acrescentou, como item da declaração de regularização, na hipótese de inexistência de saldo de recursos, ou titularidade de bens ou direitos, em 31 de dezembro de 2014, “a descrição das condutas praticadas pelo declarante que se enquadrem nos crimes” passíveis de extinção da punibilidade, ou seja, verdadeira confissão sobre condutas ilícitas.
Contudo, o projeto não prevê adequadamente garantias contra a autoincriminação, como a determinação de que a adesão ao programa não importe confissão criminal sobre os fatos reportados.
A imprevisibilidade sobre os resultados da adesão ao programa também se manifesta em relação à extinção da extinção da punibilidade, eis que o projeto não esclarece qual será o procedimento para que haja a respectiva declaração. Deixa de estabelecer, por exemplo, se haverá uma decisão administrativa que defira a regularização, se ela será encaminhada ao juízo criminal para a correspondente extinção de punibilidade, se tal decisão será vinculante ao juízo criminal ou mesmo se poderá iniciar um procedimento criminal para verificação da ocorrência da extinção da punibilidade. Em realidade, da leitura do parágrafo 1º do artigo 5º, pode-se afirmar que a mera adesão ao programa e o pagamento do tributo e da multa ocasionariam a extinção da punibilidade, o que conflita com a permissão de instauração ou continuidade da persecução penal em caso de exclusão do programa (artigo 9º, §2º).
Para se complementar o cenário de insegurança, soma-se o fato de se exigir do contribuinte a comprovação da origem lícita dos recursos, o que depende da subjetividade da interpretação da autoridade administrativa, eis que, em hipóteses de remessa de divisas por “dólar-cabo” ou outras transferências de valores que configurassem lavagem de dinheiro, por exemplo, seria quase impossível comprovar a exata origem dos recursos e a inexistência de relação com outros crimes, abrindo margem para a exclusão do programa e demais consequências correlatas.
Portanto, notam-se pontos duvidosos no projeto, que não permitem definir claramente as regras atinentes às consequências penais da adesão ao regime especial de regularização de ativos, principalmente no que toca aos critérios e procedimento para consideração de enquadramento nas hipóteses legais e extinção da punibilidade, e às implicações decorrentes da rejeição do pedido de participação no programa. Tal fato pode acarretar a restrição da adesão ao regime aos casos já identificados pelas autoridades públicas, reduzindo, assim, a esperada abrangência do programa.
Autor: Denise Provasi Vaz é advogada do Provasi Vaz Sociedade de Advogados.