Sonegação fiscal supera em muito os valores da corrupção pública

Autor: Marcos de Aguiar Villas-Bôas (*)

 

Como destacam alguns autores[1], é comum se deixar de lado a sonegação fiscal nos estudos sobre tributação, o que dificulta uma compreensão macro do sistema tributário e seus gargalos. A informalidade e a sonegação são variáveis importantes nas decisões de política tributária, sobretudo em países em desenvolvimento, pois podem alterar gravemente os resultados calculados no momento da tomada de decisão.

A detecção e a dura punição da sonegação fiscal são essenciais para a redução dos atos ilícitos[2]. A sonegação é um problema social que tende a crescer bastante na medida em que ele se torna moralmente aceitável, em que a capacidade do fisco de identificá-lo é baixa e em que a punição não ocorre ou é muito branda. A decisão por sonegar ou não é baseada nos riscos aos quais o contribuinte está sujeito[3]. Se eles são apenas financeiros e se há saídas para eles, entram no cálculo da sonegação e são assumidos pelo contribuinte.

A sonegação é hoje um dos principais alvos de estudos e medidas concretas dos países mais desenvolvidos do mundo. Segundo a OECD, os Estados Unidos estimam uma perda de US$ 100 bilhões de dólares ao ano por conta da sonegação[4]. Num país como o Brasil, onde sonegar tributos é visto largamente como uma atitude esperta e moralmente aceitável, talvez esse número seja muito maior.

A Procuradoria da Fazenda Nacional estima que a sonegação gire em torno de R$ 500 bilhões ao ano[5]. Se essa corrupção tributária fosse reduzida drasticamente, daria provavelmente para fazer o ajuste fiscal, diminuir tributos incidentes sobre a indústria, de modo a estimular a economia, e ainda gerar um superávit primário considerável.

A sonegação fiscal supera em muito os valores da corrupção pública. Tanto o sonegador quanto o político corrupto são criminosos e devem pagar por isso, se for o caso, em regime fechado. Não é só o ladrão pobre que deve ir para a prisão. Não cabe ao cidadão achar que, por conta dos erros estatais, ele pode se tornar um criminoso. O indivíduo sem moral é aquele que usa os erros dos outros para justificar erros próprios. Se Estado e cidadão querem uma resposta mais cooperativa um do outro, eles precisam começar a atuar mais cooperativamente.

A sociedade brasileira é mestra em imputar os problemas do país, como a corrupção, à classe política ou a partidos determinados, porém ela própria é, de um modo geral, corrupta e conivente com a corrupção. O crime de sonegação, dentro da cultura brasileira, é visto por boa parte da sociedade como uma proteção, um troco do cidadão perante os desmandos do Estado Brasileiro.

Não se pode negar que ele é, muitas vezes, arbitrário e que age de forma extremamente vertical com cidadãos cumpridores dos seus deveres sob o preconceito de que todos seriam sonegadores. Sobre esse ponto, defendo há algum tempo que é preciso criar um programa de Cooperative Complianceno Brasil, assim como feito em vários países do mundo, mas esse é um assunto para outros textos[6].

Os problemas no regramento do crime de sonegação vêm desde a Lei 4.279/1965. As sanções ali previstas são brandas e já tinham sido objeto de crítica por Roberto Mangabeira Unger e Ciro Gomes em livro publicado no ano de 1996[7]. Até então, praticamente ninguém era preso no Brasil por sonegação fiscal, que significa, dentre outras coisas, prestar declaração falsa, inserir elementos inexatos ou omitir informações com o fim de eximir-se do pagamento total ou parcial de tributos.

A Lei 4.279/1965 estabelece que a pena para o crime é de detenção de 6 meses a 2 anos, e multa de 2 a 5 vezes o valor do tributo. Em se tratando de um réu primário, a pena seria de 10 vezes o valor do tributo, sem previsão de detenção. Em outras palavras, caso o indivíduo nunca tivesse cometido outro crime, não haveria qualquer risco de prisão em caso de uma ardilosa sonegação fiscal.

A Lei 8.137/1990 trouxe uma pena menos branda: de 2 a 5 anos de reclusão, e multa; no entanto, como explica o Promotor de Justiça de São Paulo, Fernando Arruda, devido às demais leis que tratam do tema e devido às interpretações dos tribunais, a situação apenas piorou: é raríssima uma prisão no Brasil por conta de sonegação fiscal[8].

Com a pena de 2 a 5 anos, o réu primário é condenado a regime aberto ou a um regime semiaberto sobre o qual ele consegue a suspensão condicional ou a substituição da pena de reclusão por serviços prestados à comunidade. Se, de fato, isso acontecesse com frequência, já seria um começo. Só o fato de o sonegador deixar de ser réu primário, de poder ter que passar pela situação de ser condenado e ficar em condicional, ou de ter que prestar serviços à comunidade por condenação criminal, já se criaria um maior receio de cometer o crime de sonegação.

Acontece que a Lei 9.249/1995, no seu artigo 34, estabeleceu que o pagamento do tributo extinguiria a punibilidade em relação a todos os crimes previstos tanto na Lei 4.729/1965, como na Lei 8.137/1990. Neste momento, o legislador enviou uma mensagem para a sociedade: “o crime de sonegação fiscal compensa”. Ninguém seria mais preso por cometer o crime, pois bastaria pagar o tributo em seguida.

É algo como extinguir a punibilidade do furto quando o ladrão devolve o bem depois de ser pego. O sonegador fiscal — aquele que se acha no direito de, fraudulentamente, contribuir menos do que deveria para as receitas do Estado, obrigando um aumento da tributação para cobrir o rombo deixado por ele — nunca é preso, pois, se pego, pode fazer o que já deveria ter feito antes e não ser punido, tornando inútil todo o trabalho da Polícia, do MP e, eventualmente, do Judiciário.

Para piorar mais o cenário, a Lei 9.430/1996, no seu artigo 83, além de ter reforçado a extinção da punibilidade por meio do pagamento do tributo, trouxe a possibilidade de suspensão da pretensão punitiva pelo parcelamento do débito tributário. Neste momento, qualquer chance de punir o sonegador desapareceu. A Lei 12.382/2011, ao menos, firmou que o parcelamento suspende a punibilidade somente no caso de ser realizado antes do oferecimento da denúncia penal, porém isto ainda é pouco.

Apesar de muitos países também possuírem, como é natural, penas alternativas para o caso de sonegações mais leves, como a prestação de serviços à comunidade prevista na Austrália e em outras nações; a regra nos países desenvolvidos é não haver a possibilidade de o sonegador escapar da punição criminal por conta do pagamento ou do parcelamento do tributo.

Não é raro ver no Brasil casos em que contribuintes, por exemplo, criam esquemas de envio de notas fiscais sem mercadorias para geração de créditos inexistentes de ICMS; realizam operações com preços artificiais para gerar despesas inexistentes e reduzir a base de cálculo do IRPJ e da CSLL; não registram operações que são mais difíceis de se detectar, como a venda de refeições em restaurantes etc.

Da forma como é hoje no Brasil, vale a pena fraudar as declarações fiscais e sonegar, pois o risco de prejuízo é, no máximo, financeiro, que pode ser calculado. O crime de sonegação fiscal e sua pena vão pelo ralo e funcionam apenas como uma ameaça para que, uma vez detectada a sonegação, haja, enfim, o pagamento do tributo.

A sonegação é uma das maiores causas de ineficiência e injustiça no sistema tributário brasileiro, uma vez que o Estado, despreparado para lidar adequadamente com políticas tributárias, quando vê sua arrecadação em níveis não satisfatórios, começa a aumentar ou criar novos tributos sem o planejamento devido. Isso não é justificativa para o trabalho ruim do Estado, mas, sem dúvida, a sonegação é uma das causas pelas quais o Brasil se encontra, volta e meia, em situação fiscal complicada.

O tratamento brando dado à sonegação é muito curioso. Ela é tipificada como crime, porém são dados todos os meios para que ninguém seja punido. Enquanto se cria inúmeros procedimentos e regras para facilitar a fiscalização, que são, muitas vezes, prejudiciais à economia do país, pois geram complexidade desnecessária no sistema tributário, o fato de alguém criminosamente fraudar uma declaração de imposto é tratado com desleixo pelo Estado.

Qual a proposta para mudar esse cenário, fazendo com que haja aumento da arrecadação, cumprimento dos deveres de forma adequada, justiça tributária e punição dos criminosos? O primeiro passo é instituir uma lei que, a um só tempo, aumente um pouco a pena máxima atribuída ao crime de sonegação fiscal e elimine as regras antes mencionadas de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo ou suspensão da punibilidade pelo seu parcelamento.

O aumento da pena máxima não precisa ser grande, mas é necessário que, em casos de clara sonegação fiscal de valores altíssimos, haja aplicação de pena de reclusão em regime fechado mesmo para réus primários. Deste modo, o aumento da pena máxima poderia ser dos atuais 5 anos para 8 anos, pena esta que impõe o cumprimento inicial em regime fechado.

No Reino Unido, a pena máxima é de 7 anos; em Portugal, ela é de 8 anos; na Alemanha, é de 10 anos. O Brasil estaria, então, se alinhando a alguns dos países desenvolvidos. No Código Penal Brasileiro, o crime de furto qualificado está sujeito a uma pena de 2 a 8 anos, e multa, ou seja, se alguém arromba a porta de uma residência e furta um bem no valor de R$ 1.000,00, ele está sujeito à aplicação de uma pena de 2 a 8 anos, mas aquele que emite declarações fraudulentas para sonegar ao fisco milhares ou milhões de reais em tributos apenas poderá ser alvo de uma pena de 2 a 5 anos.

Agora vamos olhar o tema sob outra perspectiva. É claro que o Estado também comete inúmeras irregularidades e o próprio crime de sonegação fiscal foi e é usado, às vezes, como forma de amedrontar o cidadão e forçá-lo a pagar o tributo, ou como forma de o servidor público exercer sua fúria sobre o cidadão por qualquer outra razão.

Desvincular a aplicação de pena por crime de sonegação fiscal do pagamento ou do parcelamento do tributo iria impedir que certos agentes fiscais inserissem nos autos de infração o envio de informações ao Ministério Público e pedissem auxílio investigativo à polícia com o objetivo único de coagir o contribuinte a pagar ou parcelar. Se o pagamento e o parcelamento deixarem de afetar a punição criminal, não fará mais sentido esse tipo de coação.

No caso de um endurecimento do crime de sonegação fiscal, o cuidado deverá ser ainda maior de agentes fiscais, policiais, promotores, juízes e demais envolvidos para que pessoas inocentes não sejam indevidamente processadas, nem muito menos punidas, como aqueles que declararam errado por mero desconhecimento da complexa legislação tributária, por divergirem da interpretação do fisco ou em outro caso no qual não se decidiu dolosamente por não pagar o tributo devido.

Muitos dos problemas vividos pela sociedade brasileira são causados por ela própria. A enorme burocracia é, em grande medida, consequência da atitude corrupta de inúmeros brasileiros. No caso de indivíduos nos quais não se pode confiar, mais procedimentos burocráticos terminam sendo exigidos deles para que se evite fraudes. Na Suécia, exige-se apenas a assinatura de qualquer outro cidadão para que uma firma esteja reconhecida. Não há necessidade de ir a um cartório e pagar uma taxa para obter o reconhecimento da firma por uma autoridade específica.

Deixar de pagar os tributos devidos é obrigar o seu parente, o seu amigo ou uma pessoa qualquer mais necessitada a pagá-lo por via indireta[9]. A sonegação fiscal deve ser tratada como crime grave e, quando isso acontecer, será mais fácil enxugar o sistema tributário brasileiro e reduzir a sua carga sobre a sociedade.

A carga tributária dos países é medida a partir de uma proporção entre o valor arrecadado e o Produto Interno Bruto – PIB. Como a sonegação fiscal no Brasil é gigantesca, a arrecadação é muito menor do que poderia ser, de modo que a carga tributária efetivamente exigida da sociedade é ainda muito maior do que realmente se pensa. A mudança de tratamento dos crimes de sonegação fiscal interessa à maioria da sociedade, é um avanço para o país. Ela apenas não é do interesse daqueles que pretendem continuar praticando esse crime.


Agradecimentos: Este texto foi elaborado dentro do período de pesquisas realizado sob a orientação do Prof. Roberto Mangabeira Unger em Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos. Meus agradecimentos ao mestre por toda a sua atenção. Agradecimentos pela leitura do texto e realização de apontamentos aos amigos Bernardo Montalvão, Fábio Roque Araújo, João Gustavo Seixas, Rodrigo Massud e Marlisson Santos.

[1] SANDMO, Agnar. The theory of tax evasion, a retrospective view. Disponível em: <http://www.ntanet.org/NTJ/58/4/ntj-v58n04p643-63-theory-tax-evasion-retrospective.pdf>. Acesso em: 9. nov. 2015, p. 644.

[2]Ibidem, 655-656.

[3] SLEMROD, Joel; YITZHAKI, Shlomo. Tax avoidance, evasion, and administration. Disponível em: <http://www.nber.org/papers/w7473>. Acesso em: 11. nov. 2015.

[4] Disponível em: <http://www.oecd.org/ctp/fightingtaxevasion.htm>. Acesso em: 9. nov. 2015.

[5]Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/economia/sonegacao-de-impostos-e-sete-vezes-maior-que-a-corrupcao-9109.html>. Acesso em: 10. nov. 2015. No mesmo sentido, ver artigo da BBC disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150415_brasil_zelotes_evade_fd>. Acesso em: 10. nov. 2015.

[6] Já escrevi sobre o tema, por exemplo, em: VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. MP 685/2015: relações reforçadas e compliance cooperativo. Disponível em: <http://optimaltaxationtheory.com/assets/MP_68574936.pdf>. Acesso em: 9. nov. 2015).

[7] “Há, porém, uma condição elementar para a pertinência dessa argumentação: a cobrança efetiva dos impostos e o sancionamento exemplar da evasão fiscal. Há um fato singelo que desmente todos os protestos de seriedade na administração tributária: em todo o território de um país em que se sonegam, escancaradamente, os impostos, e em que alguns dos homens mais ricos do Brasil ocupam os primeiros lugares no rol de sonegadores, nem uma só pessoa está na cadeia por sonegação fiscal. Muitas precisam estar, começando pelos graúdos” (GOMES, Ciro; UNGER, Roberto Mangabeira. O próximo passo: uma alternativa prática ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 70).

[8] “E se o leitor me perguntar: ‘E que cara ficam os Promotores, os Delegados de Polícia e os contribuintes que pagam em dia seus impostos, diante de tudo isto e principalmente nos casos de fraudes milionárias tão corriqueiras hoje em dia’? Eu responderia: Eu não sei a cara deles, mas eu fico com a cara igual daqueles artistas que fazem graças para crianças nos circos e usam uma bolinha vermelha na ponta do nariz” (ARRUDA, Fernando. No Brasil, sonegar criminosamente tributo dá cadeia?. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/noticias/publicacao_noticias/2008/Setembro/570B1AE401ADD720E040A8C02B01759F>. Acesso em: 8. nov. 2015).

[9] “It is obviously realistic to assume that increases in the expected utility of the tax evaders will be accompanied by decreases in utility on the part of the non–evaders; in this particular example, the non–evaders might, e.g., have to pay more taxes” (SANDMO, Agnar. The theory of tax evasion, a retrospective view. Disponível em: <http://www.ntanet.org/NTJ/58/4/ntj-v58n04p643-63-theory-tax-evasion-retrospective.pdf>. Acesso em: 9. nov. 2015, p. 657).

 

 

 

 

 

 

Autor: Marcos de Aguiar Villas-Bôas é advogado, conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.


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