Entre o dever de fundamentação das decisões e a jurisprudência lotérica

Autor: Ulisses César Martins de Sousa (*)

 

Na semana passada, um jornal de grande circulação nacional noticiava que “para aumentar suas chances de reverter uma condenação de primeira instância apelando ao Tribunal de Justiça de São Paulo, uma pessoa acusada de cometer um crime precisa, além de uma boa defesa, de um bocado de sorte”[1]. Embora a notícia fizesse referência ao julgamento de ações penais, nos processos civis a realidade não é muito diferente. Muitas vezes o destino do cidadão é definido com base na sorte — ou azar — na distribuição do processo.

De imediato veio a lembrança do fenômeno que a doutrina nacional já aborda há mais de uma década e denomina de “jurisprudência lotérica” ou de “jurisIMprudência”. Em razão desse triste fenômeno, no Brasil atual, “se a parte tiver a sorte de a causa ser distribuída a determinado juiz, que tenha entendimento favorável da matéria jurídica envolvida, obtém a tutela jurisdicional; caso contrário, a decisão não lhe reconhece o direito pleiteado”[2].

É a Constituição Federal que diz que todos são iguais perante a lei (artigo 5º) e que todas as decisões judiciais serão fundamentadas, sob pena de nulidade (artigo 93, IX). Tais princípios são garantias do cidadão. Contudo, na realidade forense, parecem não existir.

Não é incomum a existência de casos semelhantes julgados de forma absolutamente diversa. Em algumas vezes, tal divergência se dá no âmbito do mesmo tribunal. Em outras, é o mesmo juiz que julga casos semelhantes de formas distintas.

Tal situação é possível em razão da frouxidão do sistema processual atual que, embora reconheça que as decisões judiciais deverão ser fundamentadas e que o juiz deverá declinar os fundamentos que levaram à formação de seu convencimento, permite que sejam considerados válidos atos judiciais, com conteúdo decisório, que se utilizam de fundamentos tão genéricos que serviriam para julgar qualquer caso.

O novo Código de Processo Civil busca mudar a realidade atual. Estabelece no artigo 489, de forma clara e didática, os requisitos que deverão se fazer presentes para que possa ser atendida a exigência de fundamentação das decisões judiciais. Tal norma — que ainda nem entrou em vigor — tem sido duramente criticada por algumas associações de magistrados, já tendo alguns de seus integrantes proclamado que não a aplicarão. Para esses magistrados — poucos, eu espero — parece que a aplicação da norma contida no artigo 93, IX da CF é opcional.

O novo CPC (artigo 489, parágrafo 1º), além de repelir as decisões genéricas, ao determinar que na sentença sejam enfrentados “todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”, veda que a sentença — ou acórdão — se limite “a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” e recomenda — ou proíbe — que o magistrado, ao julgar, deixe de “seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

As mudanças trazidas pelo novo CPC, visando o combate da jurisprudência lotérica, se tornam ainda mais animadoras quando se examina a regra contida no artigo 926, segundo a qual “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

A adequada compreensão das normas acima exige que seja feita a distinção entre precedente e jurisprudência, termos muitas vezes erroneamente utilizados como sinônimos no dia a dia forense. A doutrina faz bem essa separação, afirmando que “quando se fala do precedente se faz normalmente referência a uma decisão relativa a um caso particular, enquanto que quando se fala da jurisprudência se faz normalmente referência a uma pluralidade, frequentemente bastante ampla, de decisões relativas a vários e diversos casos concretos”[3].

O entendimento do Judiciário acerca de um determinado tema não pode — pelo menos não deve — ser arbitrariamente modificado. Isso privaria o cidadão da necessária segurança jurídica, que, nas palavras de Canotilho, “é a garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e a realização do Direito”[4].

A insegurança jurídica, dentre outros males, prejudica o ambiente de negócios no Brasil. Como um empresário nacional pode tomar uma decisão quando uma mesma norma é interpretada de forma diversa nas várias comarcas e estados da federação nos quais ele atua? Como escolher qual o padrão correto de comportamento?

E nem venham me falar, em se tratando de normas de lei federal, que existe um tribunal — o egrégio STJ — cuja missão é uniformizar a interpretação dessas leis. A uma, em razão da extrema dificuldade em se acessar esse tribunal, ultrapassando os obstáculos criados pela chamada jurisprudência defensiva. A duas, em razão da existência de divergências de entendimento até mesmo no âmbito do STJ, onde, com uma certa frequência, casos semelhantes são tratados de forma diversa. Aliás, foi no STJ que foi cunhada a expressão “jurisprudência banana boat”.

O novo, ao emprestar um maior valor aos precedentes e ao dever de fundamentação das decisões judiciais, faz nitidamente uma opção pela segurança jurídica, ao fixar os precedentes como pontos de referência para decisões de outros juízes, exigindo que o afastamento — ou a superação — de um precedente invocado pela parte seja devidamente fundamentada.

A existência de múltiplos entendimentos acerca de um mesmo tema de Direito gera descrédito para o Judiciário, insegurança para o jurisdicionado, estimula a litigiosidade e o uso de recursos. Muitas vezes as partes, mesmo diante da existência de entendimento jurisprudencial desfavorável acerca de um determinado tema, resolvem tentar a sorte, apostando na possibilidade de uma mudança, como acertadamente apontou Lenio Streck[5] em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Várias das instituições que criticam a norma do artigo 489 do novo CPC esquecem que a jurisprudência lotérica é uma das causas do número excessivo de recursos que hoje os tribunais são obrigados a julgar. Preferem não enfrentar o problema da violação aos princípios da igualdade e da segurança jurídica causada pela “jurisimprudência”.

Não estamos aqui a defender o fim da independência dos juízes, muito menos advogando a tese de que os magistrados devem se limitar a aplicar o entendimento fixado pelos tribunais. O que se defende é a impossibilidade de que pessoas iguais, com casos iguais, sejam julgadas de forma diferente, sem que a decisão, de maneira devidamente fundamentada, explique as razões da distinção. Nesse ponto concordo — e aplaudo — Lenio Streck quando defende que decisão judicial “não pode ser entendida como um ato em que o juiz, diante de várias possibilidades possíveis para a solução de um caso concreto, escolhe aquela que lhe parece mais adequada”, concluindo que, “decidir não é sinônimo de escolher”[6].

Vale lembrar que “submeter os juízes aos limites da lei e da Constituição é decorrência do regime democrático e não constituiu negação à garantia da independência judicial”[7].

O livre convencimento do magistrado não pode ser utilizado como fundamento para permitir que as decisões sejam proferidas sem fundamentação adequada, em desobediência à lei e à Constituição e sem observância dos precedentes. A independência dos magistrados é uma garantia contra pressões externas, mas não lhes confere o direito de tornar o ato de julgar uma escolha.

Concordo com Alexandre Freire e Alonso Freire[8] — dois jovens e talentosos processualistas do meu querido Maranhão — quando sustentam que “a função mais nobre de uma jurisprudência digna de respeito é servir de guia seguro para os cursos de ação futuros”, defendendo que “a interpretação do que a lei determina não pode estar sujeita a caprichos e idiossincrasias dos intérpretes do momento. É preciso que se dê às interpretações feitas da lei um mínimo de estabilidade, em respeito à segurança jurídica e à proteção da confiança”.

O respeito aos precedentes e a adequada fundamentação das decisões judiciais é uma forma de aumentar a tão desejada — e necessária — segurança jurídica e de tornar concreto o direito à igualdade perante a lei. Já chega de “jurisimprudência”.


[1]Folha de S.Paulo. 26.10.2015.
[2] CAMBI, Eduardo. JURISPRUDÊNCIA LOTÉRICA. Revista dos Tribunais | vol. 786/2001 | p. 108 – 128 | Abr / 2001.
[3] TARUFFO, Michele. PRECEDENTE E JURISPRUDÊNCIA. Revista de Processo | vol. 199/2011 | p. 139 – 155 | Set / 2011.
[4] Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria daConstituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2003.2003, p. 257.
[5]http://www.conjur.com.br/2015-mai-30/entrevista-lenio-luiz-streck-jurista-professor.
[6] STRECK, Lenio Luiz. O Que é Isto – Decido Conforme minha Consciência?. 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 107.
[7] CAMBI. Eduardo. JURISIMPRUDÊNCIA – A INDEPENDÊNCIA DO JUIZ ANTE OS PRECEDENTES JUDICIAIS COMO OBSTÁCULO À IGUALDADE E A SEGURANÇA JURÍDICAS. Revista de Processo | vol. 231/2014 | p. 349 – 363 | Mai / 2014.
[8] ELEMENTOS NORMATIVOS PARA A COMPREENSÃO DO SISTEMA DE PRECEDENTES JUDICIAIS NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO. Revista dos Tribunais | vol. 950/2014 | p. 199 |.

 

 

 

 

Autor:  é secretário-geral da OAB-MA e sócio de Ulisses Sousa Advogados Associados.


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