Autor: Gustavo de Oliveira Quandt (*)
Foi publicada no dia 15 de novembro uma notícia[1] sobre decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região na qual se considerou inadmissível a apresentação, pela Defensoria Pública, de resposta à acusação criminal na qual esta é impugnada genericamente. Embora a decisão se referisse especificamente à Defensoria Pública, ela põe em evidência o problema mais geral de determinar se a defesa técnica, no processo penal, está obrigada a apresentar uma resposta substancial à acusação. Assim, o presente texto se propõe a abordar essa questão mais geral, retornando ao final ao caso específico da Defensoria Pública e dos advogados dativos.
A questão do conteúdo mínimo da resposta à acusação no Processo Criminal decorre da reforma operada no CPP pela Lei 11.719/08, que instituiu a obrigatoriedade daquela manifestação escrita da defesa (artigos 396 e 396-A do CPP), até então de apresentação facultativa (artigo 396 em sua redação original). Sendo obrigatória a apresentação de resposta à acusação, é possível exigir um conteúdo mínimo para ela?
A redação do artigo 396-A do CPP sugere que não. Ali se diz que, “na resposta, o acusado poderá [e não deverá!] arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas (…)”. O verbo escolhido pelo legislador transmite a clara ideia de faculdade ou ônus, e não de dever. Para avançar um pouco sobre a interpretação puramente literal, um possível critério é a preclusão: há algum tema referido no artigo 396-A que deva ser suscitado desde logo, sob pena de não ser conhecido em momento posterior? A apresentação de documentos certamente não é o caso, por expressa previsão legal (artigo 231). Entre as preliminares, aquela mais claramente sujeita à preclusão é a de incompetência relativa[2] — mas esta deve ser arguida em exceção ritual (artigo 95, II) e não em resposta à acusação. Mesmo as demais matérias objeto de exceção (litispendência, coisa julgada, incompetência absoluta) podem geralmente ser arguidas a qualquer tempo.
A bem da verdade, os principais temas sujeitos à preclusão dentre aqueles mencionados no artigo 396-A são o arrolamento de testemunhas e a indicação das provas a produzir. Assim, as alterações substanciais produzidas pelo novo artigo 396-A parecem ser apenas duas: contornar o angustiante impasse que surgia quando a defesa prévia, na qual o réu arrolava testemunhas, era oferecida fora do prazo legal[3], e garantir que, caso sejam arguidas matérias de defesa, elas sejam apreciadas desde logo pelo juiz[4]. No que concerne à defesa, fica a seu critério arguir desde logo aquelas outras matérias não sujeitas a preclusão ou deixar para o final. A lei processual penal não impõe sanções como aquelas previstas no § 3º do artigo 267 do CPC, dirigidas ao réu que posterga a arguição de matérias que podem ser alegadas a qualquer tempo.
E, na prática, pode haver várias vantagens em alegar apenas ao final certos temas: a incompetência absoluta, por exemplo, implica a nulidade ab initiodo processo, inclusive dos fatos interruptivos da prescrição[5], de modo que o retardamento de seu pronunciamento pode ser benéfico ao réu.
Convém ainda notar que nem sempre haverá matérias que possam ser conhecidas logo no início do processo: é de esperar que as ações penais em regra tenham justa causa, que as denúncias não sejam ineptas (artigo 43), que o juízo não seja absolutamente incompetente, que não haja manifesta causa de justificação ou exculpação (artigo 397). Exigir que toda resposta à acusação tenha preliminares ou alegações aptas a ensejar a absolvição sumária é incentivar a litigância de má fé.
No que se refere aos fatos e à versão do réu para eles, é manifestamente inadmissível exigir que a resposta à acusação os aborde. Além de que a própria Constituição da República assegura o direito ao silêncio (artigo 5º, LXIII), verifica-se que a tendência das reformas do CPP vem sendo permitir ao réu que fale apenas ao final. Até 2003, o interrogatório era realizado logo após a citação, sem a obrigatoriedade de advogado; não raro, o acusado comprometia irreversivelmente sua defesa nesse ato, e ao advogado que assumia sua defesa a partir de então só restava tentar minimizar o prejuízo. Com a Lei 10.792/03, que alterou o artigo 185 do CPP, o ato passou a ser acompanhado sempre por advogado e precedido por entrevista reservada do réu com este. Por fim, com a Lei 11.719/08 (a mesma lei que tornou obrigatória a resposta à acusação), o interrogatório passou ser realizado apenas ao final da instrução (artigo 400); essa mudança foi considerada tão significativa para o direito de defesa que o STF a estendeu aos processos de competência originária dos tribunais[6]. Nesse contexto, exigir que, na resposta à acusação, o réu (por seu defensor) se manifeste precisamente sobre os fatos narrados denúncia, tal como exige (sob pena de confissão) o artigo 302 do CPC para a contestação, é claramente contrário ao espírito da reforma de 2008.
A bem da verdade, o único caso em que se pode exigir algum esclarecimento fático na resposta à acusação é para demonstrar que determinada prova cuja produção se requereu não é impertinente nem irrelevante, caso em que o juiz poderia indeferi-la (artigo 400, § 1º). De toda forma, tal exigência não parece se estender à prova testemunhal, claramente destacada das demais provas no texto do artigo 396-A; a interpretação a contrario sensu do artigo 222-A, relativo às cartas rogatórias, também parece sugerir que o réu normalmente não precisa esclarecer, na resposta à acusação, o que espera provar com cada testemunha. Por fim, a exigência generalizada de esclarecimento prévio do teor dos testemunhos, exigência esta que não se faz à acusação[7], não parece ajustar-se ao disposto no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.[8] De toda forma, é evidente que o réu não tem o dever de protestar pela produção de prova, e o arrolamento de testemunhas é uma simples faculdade.
Já a arguição de matéria de fato em resposta à acusação geralmente não oferece vantagem alguma ao réu, pois elas quase sempre dependem da produção de provas. É o que ocorre com as causas de justificação e exculpação, o álibi, o erro.
Tudo isso indica que não há razão para exigir do acusado que adiante na resposta à acusação suas teses de defesa. Mas é possível ir além e postular que esse adiantamento pode ser prejudicial ao réu, na medida em que lhe subtrai o elemento-surpresa de que dispõe ao inquirir suas testemunhas após as arroladas pela acusação, de prestar seu próprio depoimento apenas ao final, e de apresentar memoriais por último – elemento-surpresa que constitui uma das poucas contrapartidas do fato de que a acusação pública conta com um completo aparato voltado a comprovar a culpa do acusado, e tem todo o prazo prescricional para formular a denúncia (ao passo que o réu tem 10 dias para respondê-la). Na doutrina, Vicente Greco Filho expressou sua descrença na conveniência de antecipar as teses de defesa.[9]
Como se vê, a exigência de que o advogado constituído pelo réu apresente uma resposta substancial à acusação não tem amparo legal algum. O que se altera quando o defensor é dativo ou público?
Em princípio, a situação desses profissionais seria a mesma, não fosse a existência de um dispositivo específico a exigir deles que sempre se manifestem de forma fundamentada (art. 261, parágrafo único). A questão é determinar o alcance e sentido desse dispositivo.
A possibilidade de uma interpretação restritiva do termo “sempre” não deve surpreender. A Constituição da República exige que todas as decisões judiciais sejam fundamentadas (artigo 93, IX), e isso nunca impediu pronunciamentos como “defiro o benefício da assistência judiciária gratuita”, ou “analisarei o pedido de antecipação da tutela após a contestação”. Não se tem notícia de defensor dativo ou público que justifique no processo judicial as suas razões para não interpor recurso[10]. O que a lei pareceu tentar evitar, ao exigir a fundamentação das manifestações dos defensores públicos e dativos, foram aquelas alegações finais de uma página que não passavam de pedidos de clemência. Exigir que cada manifestação desses profissionais seja substanciosa e percuciente não condiz com a jurisprudência dos tribunais de todo o país, que só reconhecem nulidade da condenação por ausência de defesa em casos de absoluta inércia e letargo do profissional.
É certo que o fato de que o defensor dativo ou público não é escolhido pelo acusado e não necessariamente recebe a confiança dele exige certas cautelas, especialmente no caso de revelia do réu, que talvez fique sem contato com seu defensor durante todo o processo. Além disso, ao exercer uma função ou múnus público, o defensor dativo ou público está sujeito à fiscalização da sociedade.[11] Contudo, essas circunstâncias desfavoráveis não são compensadas pela exigência de uma resposta substancial à acusação: o fundamental não é uma peça que diga qualquer coisa, mas sim que aquilo que seria vantajoso alegar naquele momento efetivamente o seja. Exigir uma peça que diga algo não garante que as questões realmente relevantes porventura existentes venham a ser alegadas.
Ao exigir que a peça diga alguma coisa, seja lá o que for, o juiz apenas empreende uma tentativa de fiscalizar o trabalho do defensor e assegurar que ele ao menos tenha lido a denúncia e o inquérito; tentativa bem-intencionada, mas claramente fadada ao fracasso. Com isso, confunde-se a fiscalização da validade do processo, que incumbe ao juiz, com a fiscalização do trabalho dos demais sujeitos processuais. A realidade é que essa inserção de uma atividade quase correcional no processo apenas em aparência beneficia o réu. Se adiantar as teses de defesa nem sempre traz vantagens e pode mesmo trazer desvantagens, não há como evitar que o profissional a quem a lei comete a defesa técnica possa optar, em cada caso, pela estratégia que julgar mais prudente. Geralmente, nada impedirá o juiz de conhecer de ofício das matérias que o defensor poderia ter suscitado e não o fez, e os profissionais relapsos deverão ser julgados pelos órgãos de classe se, ao final do processo, for constatada sua desídia. Talvez essa solução não soe satisfatória, mas não existe fórmula mágica: o próprio Poder Judiciário não se submete senão à autocensura (artigos 95, I, e 103-B, § 4º, III, da CF)[12].
Por fim, pode-se perfeitamente postular que a exigência de manifestação fundamentada do artigo 261, parágrafo único, do CPP, é suprida quando o defensor esclarece que não arrolou testemunhas porque o réu informou não as possuir, ou porque não pôde travar contato com ele. Desse modo, embora exista um dispositivo específico a reger a atuação dos defensores públicos e dativos no Processo Penal, ele não conduz à conclusão de que a resposta à acusação deva ser substancial.
Como se vê, a exigência de resposta à acusação substancial dos advogados em geral não tem o menor fundamento legal, e a mesma exigência em relação aos defensores públicos e dativos, baseada agora no artigo 261, parágrafo único do CPP, é tão bem-intencionada quanto pouco esclarecida.
1 Defensoria não pode discordar das acusações sem apresentar fundamentos, disponível em http://www.conjur.com.br/2015-nov-15/defensoria-nao-discordar-acusacoes-apresentar-fundamentos.
2 Jurisprudência dominante: STJ, AgRg no AREsp 146568, 6ª T., min. Rogério Schietti Cruz, j. 20/8/2015.
3 Como a peça era facultativa – isto é, o réu poderia preferir sequer apresentá-la – a defesa prévia intempestiva, embora materializasse o inequívoco desejo do acusado de se defender por escrito, podia ser rejeitada, e com ela o rol de testemunhas da defesa (v., p. ex., no STJ, o HC 254373, 5ª T., rel. Laurita Vaz, j. 6/2/2014).
4 STJ, HC 232842, 6ª T., min. Og Fernandes, j. 11/9/2012.
5 STF, HC 104907, 2ª T., min. Celso de Mello, j. 10/5/2011.
6 AP 528, cf. noticiado no informativo semanal de jurisprudência nº. 620 daquele Tribunal.
7 Observe-se que o CPP já é suficientemente prejudicial à defesa ao insinuar o ônus de fazer comparecer em audiência as testemunhas que arrolar (art. 396-A). Cabe aos tribunais interpretar essa disposição, que não aparece no art. 41, relativo à denúncia, de forma compatível com o princípio da paridade das armas.
8 Art. 14. (…) 3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias: (…) e) De interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e de obter o comparecimento e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as de acusação; (…).
9 “Somos céticos quanto à utilidade da resposta preliminar do réu quanto ao mérito principal da acusação e mesmo quanto à questão de preliminares que no processo penal, quase na unanimidade, não precluem, de modo que na estratégia da defesa pode não convir antecipá-la para discussão imediata. (…) A resposta preliminar limitar-se-á, portanto, à apresentação do rol de testemunhas e negativa geral da acusação, visto que o acusado não tem o ônus de impugnar especificadamente os fatos imputados nem a consequência de preclusão por falta de apresentação de questões de ordem pública que, na verdade, são praticamente todas, quando em favor do acusado” (Manual de Processo Penal, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 426).
10 Embora o defensor público possa ser compelido a prestar tais esclarecimentos no âmbito interno da Defensoria, cf. o inciso VII dos arts. 45, 90 e 129 da LC nº. 80/94.
11 O defensor público, aprovado em concurso público de provas e títulos, exerce clara função pública. Em relação ao defensor dativo, a opção entre função e múnus não é tão evidente (se é que tal distinção faz muito sentido): vejam-se nossas breves considerações em Quandt, Algumas considerações sobre os crimes de corrupção ativa e passiva. A propósito do julgamento do ‘Mensalão’ (APn 470/MG do STF), in Revista Brasileira de Ciências Criminais 106, jan.-fev. 2014, p. 192.
12 Exceto no caso especialíssimo dos crimes de responsabilidade dos Ministros do STF e membros do CNJ (art. 52, II).
Autor: Gustavo de Oliveira Quandt é defensor público federal e mestrando em Direito na UFPR.