Autores: Aldemario Araujo Castro, Vanessa Affonso Rocha, Thirzzia Carvalho e Lademir Gomes da Rocha (*)
A advocacia pública federal vive tempos difíceis, marcados pela precariedade de sua estrutura, pela fragilidade das prerrogativas de seus membros, pelo abismo remuneratório e de vantagens na comparação com as demais funções essenciais à justiça e mesmo à advocacia pública dos Estados da Federação e de diversos municípios do país. Em suma, a AGU e os órgãos a ela vinculados vivem o drama de seu rebaixamento institucional, material e simbólico.
Metade dos jovens advogados que ingressaram nas quatro carreiras da advocacia pública federal, aprovados nos últimos três concursos, pediu exoneração. Escolhas estratégicas e prioridades equivocadas transformaram a advocacia de Estado no plano federal numa carreira de passagem, uma etapa que antecede a ida para a magistratura, o Ministério Público e a Defensoria Pública, escolha muitas vezes guiada, não por razões vocacionais, mas pela busca de remuneração mais atrativa, prerrogativas mais consistentes e autonomia institucional. Isso redunda no enfraquecimento da parcela do interesse público confiado aos advogados públicos federais, particularmente a legitimidade e a defesa das políticas públicas, das escolhas democráticas e dos recursos públicos.
O movimento histórico que eclodiu no final do primeiro trimestre quebrou os paradigmas estabelecidos em termos de mobilização. Os movimentos anteriores apresentaram pautas predominantemente remuneratórias e se utilizaram das estratégias habituais da greve e das operações-padrão. Desta vez, porém, o esgarçamento das diferenças remuneratórias e institucionais e a consequente disparidade de armas, inauguraram uma nova estratégia de mobilização, centrada na entrega dos cargos em comissão e das funções de confiança ocupadas pelos advogados públicos federais.
A mobilização evidenciou o esgotamento do modelo de estruturação e de gestão da advocacia de Estado no pleno federal e a necessidade de reinventá-la com base em três pilares fundamentais: autonomia institucional, pondo fim à lógica de governança da AGU-Ministério e aos aleijões das duplas vinculações ainda persistentes em relação a duas das quatro carreiras da advocacia pública federal; edificação de garantias institucionais dos advogados públicos, em reforço de sua independência profissional, e a paridade remuneratória com as demais funções essenciais à justiça.
As três bandeiras traduziram-se nas PECs 82 e 443, em tramitação no Congresso Nacional. O ápice do movimento ocorreu com a votação e a aprovação, em primeiro turno no âmbito da Câmara dos Deputados, da PEC 443, que consagra a paridade remuneratória.
É necessário reconhecer, porém, que o movimento que não conseguiu realizar todo o seu potencial de mudanças, devido fundamentalmente à relutância de diversos colegas em abandonar suas funções e cargos na estrutura de gestão. A compreensão dos limites impostos pelo modelo de gestão vigente na AGU e nos órgãos vinculados, caracterizado pelo excesso de níveis e poderes hierárquicos, pela falta de transparência nos critérios de nomeação, pela indefinição do período de exercício das designações, pela falta de mecanismos e procedimentos de participação dos membros das carreiras nos processos de escolha dos gestores e das prioridades estratégicas e na ausência de avaliação e prestação de contas dos designados, ampliou a pauta do movimento, que agregou às demandas originais o objetivo de por fim ao regime dos DAS no âmbito da advocacia pública federal e de rever a estrutura de governança da AGU. Neste momento, a divisão entre os advogados públicos que estão inseridos e os excluídos das estruturas e funções de gestão se tornou mais evidente, deteriorando o já combalido ambiente organizacional.
A proposta recentemente apresentada pelo MPOG à deliberação da carreira é reveladora da fragilidade institucional da advocacia pública federal. O reajuste escalonado em quatro anos, com vigência a partir de agosto de 2016, em percentuais que cobrem metade da inflação oficial projetada, contrasta com o reajuste de 18% que beneficiará a Magistratura e o Ministério Público Federal a partir de janeiro do próximo ano. O quadro preocupante é complementado com o status institucional alcançado pela Defensoria Pública Federal, a partir da Emenda Constitucional 80, de 2014, e a quebra da promessa feita pelo Advogado-Geral da União, na reunião que criou o Grupo de Ação Institucional, de que, enquanto ele fosse ministro, não admitiria que os advogados públicos federais recebessem tratamento institucional distinto dos defensores.
Em meio a este cenário caótico, estabelece-se o debate sobre a unificação. Os advogados públicos e as associações contrárias à unificação denunciam o caráter precipitado e inoportuno do debate. Entendemos que, ao contrário de ser inoportuno ou precipitado, o debate é tardio, haja vista que o quadro de multiplicidade de carreiras, com todos os problemas decorrentes perdura por anos, em que pese terem ocorrido unificações exitosas, não só em outras carreiras da advocacia pública nos estados e nos municípios, como na própria AGU, como retratam os casos da fusão dos advogados da União aos assistentes jurídicos e da criação da Procuradoria-Geral Federal, que reuniu numa só carreira as antigas carreiras e cargos de procuradores das autarquias e fundações, com a exceção injustificável dos Procuradores do Banco Central.
De qualquer forma, o debate está em pauta. Somos desafiados a fazê-lo esgrimindo com maturidade e tolerância os nossos argumentos, sem nos deixar guiar pelo medo atávico das mudanças. Mais do que uma questão de dogmática jurídica, trata-se de uma decisão política, que deve ser orientada pela prevalência do interesse público, desde que sejam resguardados direitos e expectativas legítimas dos membros das carreiras. Ao contrário dos adeptos de certa hermenêutica ventríloqua — que a pretexto de interpretar a Constituição, tenta cristalizar seus preconceitos e vontade política — a deliberação acerca da existência de uma ou mais carreiras de membros da advocacia pública federal é de competência final do Parlamento, que deve, contudo, observar a necessidade de tratamento jurídico uniforme dos advogados públicos, no que toca aos direitos, às prerrogativas institucionais e à remuneração.
Por outro lado, é importante registrar que a pluralidade de carreiras não tem rendido resultados favoráveis à advocacia pública federal, exceto para um grupo minoritário, mas significativo de os advogados que priorizam suas carreiras particulares em detrimento dos avanços institucionais que beneficiariam o conjunto dos advogados públicos.
A multiplicação de carreiras tem se traduzido em arranjos assimétricos e incoerentes. Não é incomum a existência de normas distintas e mesmo de interpretações divergentes de normas comuns, redundando no tratamento desigual entre os membros da AGU e dos órgãos vinculados. A defesa da pluralidade de carreiras como modo de realizar de modo eficiente a especialidade no exercício das funções ignora o modelo exitoso da PGF, em que tem sido possível conciliar a proteção do interesse público confiado a cada ente ou órgão da Administração, mediante atuação harmônica dos advogados públicos, tanto na consultoria como na representação judicial e extrajudicial. Se a especialidade fosse determinante para a existência de carreiras distintas, como explicar que a Consultoria-Geral da União tivesse sido chefiada até bem pouco tempo por um Procurador da Fazenda, contraditoriamente autor de um manifesto contra a unificação? Por acaso, não há, nas consultorias dos ministérios e das autarquias e fundações públicas, advogados públicos egressos das quatro carreiras, realizando atribuições similares? Como se explica que na PGF, PGFN e PGBC haja advogados atuando em execuções fiscais ou prestando consultoria em licitações e contratos? Como explicam os adversários da unificação e os que se opuseram à junção dos advogados da União aos assistentes jurídicos numa nova carreira unificada, que diversos órgãos de consultoria da União sejam chefiados hoje em dia por antigos advogados da União?
Defender a unificação não é ação conflitante com os objetivos originais do movimento, mas evolução daquela pauta, como foi a extinção dos DAS no âmbito da AGU. A receita do bolo da #NovaAGu é feita de vários ingredientes: autonomia institucional, prerrogativas do advogado público, paridade remuneratória, nova estrutura governança e unificação são variáveis que combinam harmonicamente. Aos avanços que a unificação realizará internamente, somam-se razões baseadas no interesse público, assentadas na eficiência, na eficácia e na racionalidade da atuação dos órgãos de representação e consultoria jurídica.
A unificação não é uma panaceia, nem resolverá, num passe de mágica, os problemas acumulados ao longo do tempo. Mas é uma etapa importante na construção de uma entidade republicana, transparente, eficiente e governada pelo interesse público e formada por advogados públicos selecionados em disputadíssimos concursos de provas e títulos, reunidos numa carreira única e fortalecida por laços de identidade e pertencimento. Para tanto, são necessários visão e certa dose de ousadia para abandonar a segurança aparente dos pequenos e mal acabados feudos que habitamos, seus tronos de caixote e suas coroas de latão.
Queremos menos carreiras e mais advocacia de Estado, advogado. Podemos contar com você?
Autores: Aldemario Araujo Castro é procurador da Fazenda Nacional.
Vanessa Affonso Rocha é advogada da União.
Thirzzia Carvalho é procuradora federal.
Lademir Gomes da Rocha é procurador do Banco Central.