Decisão do STF mostra paradoxo sobre honorários de sucumbência

Autor:José Jácomo Gimenes (*)

 

O acesso ao Judiciário é direito expresso na Constituição Federal, cantado e decantado pela doutrina. Compreende o devido processo legal substantivo e a tutela jurisdicional justa, fundamentos da democracia. Apesar de tamanha importância e indiscutível aceitação teórica, vem encontrando resistências pontuais na aplicação prática, que precisam ser debatidas e enfrentadas com desprendimento e espírito público.

O Supremo Tribunal Federal produziu um precedente histórico sobre esse tema que, apesar da importância e atualidade, não tem sido objeto de debates. Trata-se do julgamento do Plenário, unânime, em 29 de junho de 2012, no Recurso Extraordinário 384.866 Goiás, que declarou a inconstitucionalidade do artigo 29-C da Lei 8.036/90, que excluía a Caixa Econômica Federal de pagar honorários de sucumbência nas ações de FGTS. A ementa do julgado é bastante clara e incisiva:

29/06/2012 PLENÁRIO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 384.866 GOIÁS
RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO

-RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ALÍNEA B DO INCISO III DO ARTIGO 102 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – ADEQUAÇÃO. Uma vez declarada, na origem, a inconstitucionalidade de ato normativo federal, cumpre reconhecer a adequação do recurso extraordinário.

-HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – ACESSO AO JUDICIÁRIO. A garantia constitucional relativa ao acesso ao Judiciário – inciso XXXV do artigo 5º da Carta de 1988 – é conducente a assentar-se, vencedora a parte, o direito aos honorários advocatícios.

-HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – JUIZADO ESPECIAL – LEI Nº 10.259/01. Uma vez interposto recurso para turma recursal, credenciado advogado, cabe o reconhecimento do direito aos honorários advocatícios.

-HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – ARTIGO 29-C DA LEI Nº 8.036/90 – EXCLUSÃO – INCONSTITUCIONALIDADE. A exclusão dos honorários advocatícios prevista no artigo 29-C da Lei nº 8.036/90 surge conflitante com a Constituição Federal, com o princípio segundo o qual o cidadão compelido a ingressar em juízo, se vencedor, não deve sofrer diminuição patrimonial.[i]

O eminente relator, ministro Marco Aurélio, no voto condutor, acompanhado por todos ministros, negou provimento ao recurso, que defendia a validade da lei, com os seguintes fundamentos: “Aquele compelido a ingressar em juízo não pode ter contra si, além da passagem do tempo sem que possa usufruir de imediato direito, a perda patrimonial, que estará configurada caso tenha de arcar com as despesas processuais, com ônus decorrente da necessária contratação de advogado para lograr a prestação jurisdicional, a eficácia do direito integrado ao patrimônio.”

Parece não haver dúvidas que temos um novo precedente do Supremo confirmando o óbvio, que nem precisava ser dito: o cidadão obrigado a ir ao Judiciário para realizar seu direito tem de ser reparado das despesas do processo, inclusive a despesa maior com a contratação de advogado. O CPC atual assim regula a matéria (artigo 20), determinando que o vencido pague honorários de sucumbência ao vencedor, mas não tem sido amplamente aplicado, por conta do artigo 23 do Estatuto da OAB, que declarou que os honorários de sucumbência pertencem ao advogado.

A respeito deste conflito — artigo 23 do Estatuto da OAB com o artigo 20 do CPC atual — o ilustre processualista Luiz Guilherme Marinoni, após justificar a necessidade da parte vencedora ser reembolsada de todas as despesas indispensáveis ao processo, incluindo as despesas com honorários advocatícios, vai direito ao ponto controvertido e afasta a transferência automática dos honorários de sucumbência para o advogado, conforme determinado pelo Estatuto da OAB, como segue:

“O art. 23 da EOAB, todavia, só incide se o advogado não recebeu qualquer valor a título de honorários de advocatícios de seu cliente (ou, então, recebeu apenas parcialmente) ou, ainda, contratou que receberia a verba prevista contratualmente e aquela decorrente da sucumbência da parte contrária. Fora desses casos cabe ao cliente a verba arbitrada a título de honorários advocatícios.”[ii]

A questão entretanto agrava-se, pois, apesar do citado precedente do Supremo (e indicativos claros na ADI 1194/DF), o novo CPC, mesmo acatando o princípio da reparação (§ 2º do artigo 82), também transfere os honorários de sucumbência ao advogado (artigo 85), além dos honorários contratuais (costumeiramente entre 10% a 30%), gerando novo confronto, inclusive ante a importante diretriz do mesmo novo CPC, que determina aos juízes e tribunais observarem as decisões do Supremo (artigos 927 e 928).

O acesso ao Judiciário determinado pela Constituição não está sendo atendido. O jurisdicionado, mesmo ganhando a causa integralmente, não tem seu direito realizado (tem recebido apenas 70% a 90% do crédito). Uma injustiça sistêmica está sendo perpetrada contra o cidadão comum em milhões de processos. O devido processo legal está defeituoso. A desconformidade está gerando uma situação estapafúrdia: o vencedor do processo ajuizando nova ação para receber os honorários contratuais de processo anterior. Um processo gerando outro.

A comparação dos fundamentos do precedente do Supremo, acima transcrito, com o artigo 85 do novo CPC indica uma desconformidade incontornável com a Constituição. Esta assertiva não tem qualquer intenção de ofender a honorabilidade da advocacia e, muito menos, o sagrado direito do advogado estipular seus honorários contratualmente, respeitado o direito (e dever) de reparação integral das despesas do processo à parte vencedora, especialmente os gastos com advogado.

O novo CPC determina que “A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou” (§2º do artigo 82). Mesmo sendo uma ordem para o juiz que vai assinar a sentença, também é o reconhecimento do direito de reparação integral ao vencedor do processo e, por consequência lógica, sustenta uma obrigação do procurador judicial juntar o contrato de honorários no processo e pedir o reembolso integral para o seu cliente, cumprindo exemplarmente a representação judicial e o justo acesso ao Judiciário.

É tempo dos constitucionalistas, processualistas, Ministério Público e operadores do direito, imbuídos do ideal de justiça, apresentarem uma solução honrosa para o paradoxo apresentado, reconstruindo o devido processo legal civil substantivo e a tutela jurisdicional justa, em cumprimento à ordem constitucional de acesso ao Judiciário com Justiça, acertando esta triste história do direito processual brasileiro.


i http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2613248

ii CPC comentado, art. 20, RT, 2008, segunda edição.

 

 

 

 

 

Autor:José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor universitário.


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